O VIII Congresso do PCdoB, realizado em 1992, elevou o pensamento partidário a um nível superior. A mais importante resolução desse evento se refere à elaboração de um novo Programa de caráter socialista. A partir dessa definição, a Comissão encarregada de produzir o primeiro projeto realizou um trabalho concentrado visando a esse objetivo.

Nosso esforço consistiu em apurar aquilo que é essencial no marxismo e no seu desenvolvimento leninista, como guia na elaboração programática, tendo em vista as peculiaridades da sociedade brasileira, nas condições históricas atuais.

A comissão seguiu algum modelo? Não. Procurou levar em conta nossa experiência na evolução do pensamento programático, considerar as lições da derrota do socialismo e avançar no domínio mais acurado das particularidades do nosso País. O esforço da Comissão se estendeu à pesquisa da base teórica marxista-leninista que fornecesse categorias e métodos de análise que orientassem na definição de um projeto viável de socialismo científico para o Brasil. Mereceu atenção o período do século passado, da contribuição de Marx e Engels, desde o Manifesto Comunista de 1864, Crítica ao Programa de Gotha e de Erfurt (1875-1891), o Programa de 1903 na Rússia, o Programa da Internacional Comunista e vários programas revolucionários e socialistas desse século. Porém, o ponto de partida foi encontrado na contribuição multifacética de Lênin, no período de 1917 a 1923, na riqueza dos temas como abordou a transição do capitalismo ao socialismo. Essa importante constatação é expressa por João Amazonas, no seu trabalho, “Capitalismo de Estado na transição ao socialismo” (Princípios n. 29). O autor demonstra que primeiro Lênin construiu uma teoria completa (evidentemente não acabada) sobre a transição para o socialismo, sobretudo para os países de capitalismo retardatário. É importante notar que esse aporte leninista foi marginalizado e pouco divulgado no seio do movimento operário e comunista.

As revoluções proletárias que principiaram neste século relevaram várias formas e caminhos para alcançar o poder político, tomando curso prolongado, ou de decisão rápida, com maior ou menor grau de complexidade conforme as circunstâncias. São muitos os exemplos. Os problemas teóricos fundamentais são conhecidos. No estágio em que chegamos, para o proletariado atingir o poder, depende principalmente da formação de um Partido Comunista influente e forte, que conheça a realidade concreta e domine a arte de explicitar uma política revolucionária, ampla e flexível tendo presente unir a classe operária e ganhar a maioria do povo, nas condições desiguais da sociedade burguesa. Entretanto, o mais difícil mesmo tem sido consolidar o poder conquistado. A grande questão situa-se ainda na edificação do novo regime, distinto do capitalismo. Ou mais precisamente, na capacidade das novas forças sociais, com a classe operária à frente, para fazer progredir a transição para um sistema superior – o socialismo – tornando-o predominante em escala mundial. Este é o marcante desafio histórico de nossa época.

“Consolidar o poder conquistado é a fase mais difícil da transição para o socialismo”.

Torna-se, assim, primordial resgatar a contribuição de Marx e Lênin sobre a transição do capitalismo ao socialismo, cuja essência está em que a construção da nova sociedade é incompatível com o simplismo, o reducionismo filosófico e o voluntarismo. Não existe modelo único de socialismo. Ele se desenvolve a partir da realidade existente da velha sociedade, com base nas leis objetivas e da participação crescente e criativa das massas operárias e populares. A esse respeito o pensamento de Marx é muito claro. Ele afirma que o socialismo não é “(…) um ideal pelo qual a realidade terá de se regular” e “não se desenvolve sobre sua própria base”. Mas, ao contrário, ele resulta de premissas da sociedade capitalista que, por isso, vai se desenvolver com “as marcas da velha sociedade de cujas entranhas procede”. E, neste século, Lênin, diante da etapa do imperialismo, nas condições do desenvolvimento desigual do capitalismo, amplia a visão materialista-histórica do marxismo, quando diz: “Todas as nações chegarão ao socialismo, isto é inevitável, porém não todas o farão exatamente da mesma maneira, cada uma contribuirá com algo próprio, a tal ou qual forma de democracia, a tal ou qual variedade de ditadura do proletariado, a tal ou qual variação no ritmo das transformações socialistas nos diferentes aspectos da vida social”. Essa profunda compreensão do marxismo-leninismo sobre a transição para o socialismo leva em consideração o lugar e o tempo – as condições históricas determinadas e o nível do desenvolvimento capitalista encontrado – definindo com base nisso os componentes, a dinâmica e o ritmo transformador para a nova sociedade.

Entretanto, quanto ao tema que perseguimos, a contribuição mais notável vamos encontrar com a primeira experiência de poder socialista deste século, vivida e aprofundada magistralmente por Lênin. Da visão leninista podemos destacar nas suas partes constitutivas mais importantes o seguinte:

– Relação entre poder popular e crescimento econômico. Em primeiro lugar, podemos dizer que a questão fundamental demonstrada a partir de Marx é que o início e a prevalência da tendência da transição a favor do socialismo só são possíveis com a existência do poder dominante da classe operária e seus aliados, o qual pode assumir formas variadas conforme a situação concreta.

Encontra-se na mudança do poder político o ponto de viragem entre a velha e a nova sociedade que vai surgindo. Contudo, não basta o poder estar nas mãos das novas forças sociais. Nas condições históricas em que o capitalismo predomina mundialmente e sendo ainda necessário economicamente em muitos países, as novas classes vão estar diante do grande desafio de manter, ampliar e desenvolver as forças produtivas e a produtividade do trabalho a partir do sistema herdado. Assim o trânsito à construção socialista não acontece de maneira direta ou simples. Torna-se necessário e vantajoso para o poder popular utilizar ainda o capitalismo, tendo presente a necessidade premente do crescimento econômico. Desse modo, vai despontar um sistema heterogêneo com componentes de socialismo e capitalismo, que pode perdurar por longo período, segundo o quadro da realidade.

– Justa teoria econômica para o período de transição. Como pode ser esse sistema econômico heterogêneo? A correta solução desse problema não passa por dogmas ou fórmulas prontas. Deve obedecer a leis objetivas e compreender a singularidade de cada sociedade. Sobre esse importante tema, Lênin nos transmite uma compreensão avançada, de valor universal, uma nova teoria econômica para enfrentar a realidade da transição para o socialismo, sintetizada na idéia: capitalismo de Estado, cuja noção essencial está no “(…) desenvolvimento do capitalismo controlado e regulado pelo Estado proletário”, distinto, portanto, do capitalismo de Estado onde a classe dominante é a burguesia. As formas exatas que esse tipo de capitalismo vai adquirir e seu período de duração dependem de cada caso, ou seja, do nível de desenvolvimento encontrado, do grau de dependência econômica ao imperialismo, do tipo de questão agrária, da extensão do capitalismo pequeno-burguês.

“No período de transição ao socialismo a luta de classes não acaba. Ela assume outras formas”.

– A evolução da transição visa à predominância do socialismo. No período de transição ao socialismo, constituído de um sistema heterogêneo, o capitalismo ainda pode liquidar o sistema nascente, retrocedendo o processo de edificação da nova sociedade. Não está resolvido a priori “quem ganha de quem”. A luta de classe não deixa de existir, assumindo novas formas. É imprescindível que o proletariado como classe assuma o processo da construção em todos os seus domínios e ganhe a maioria para o seu projeto. Para isso, as formas políticas e institucionais adequadas à nova democracia devem ser procuradas criativamente, tendo como objetivo a estabilidade política. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento das forças produtivas, o crescimento econômico, necessários para a transição ao socialismo, têm um objetivo determinado: dar base de sustentação ao novo poder e fazer prevalecer o sistema socialista.

Como consequência disso, os componentes e formas socialistas têm que ser apropriados à situação objetiva, com a finalidade de superar a parte capitalista. Esta, por conseguinte, tem limites e prazos situados no lugar e no tempo.

Essas são as pilastras que assentam nossa base teórica programática, as quais procurou-se aplicar à realidade brasileira.

Podemos dizer que a linha fundamental, o novo perfil do programa se resume em: 1) O novo Poder – República de trabalhadores e de amplas massas do povo – tem caráter democrático, não liberal, para isso busca formas adequadas do Estado de direito para a mais ativa participação popular na transição ao socialismo; 2) o Poder popular utiliza o capitalismo sempre que possibilite o desenvolvimento das forças produtivas; 3) o conjunto dos componentes capitalistas no período de transição é regulado pelo poder socialista; 4) a parte socialista erguida é fortalecida e desenvolvida como dirigente da economia; 5) o tempo de vigência das concessões ao capitalismo tem limite.

* Vice-presidente nacional do PCdoB.

EDIÇÃO 31, NOV/DEZ/JAN, 1993-1994, PÁGINAS 52, 53