“Não me arriscaria a dizer
quantos são (os excluídos).
Mas, não nego que,
Provavelmente, na dinâmica
atual, não há força para
incorporar todo mundo”
Fernando Henrique Cardoso,
em entrevista à Folha de S. Paulo
(Caderno “Mais!”, 13-10-1996)

Economistas oficiais e altas autoridades do atual governo se empenham em desqualificar ou fugir de um grande debate político que se trava em todo o país: qual a natureza do projeto que o governo FHC está implantando no Brasil?

Nas últimas eleições municipais, diversos candidatos da oposição bateram na tecla de que o projeto de FHC é neoliberal porque, entre outras coisas, está provocando mais crise, desemprego e exclusão social. Em uma famosa entrevista, que deu à Folha de S. Paulo, o presidente mostrou-se irritado com a acusação: “Veja a crítica ao governo que se resume na definição ‘neoliberal’. É puro principismo, é puro plano ético. E daí? É mesmo? Não é nada. É só uma condenação moral. Não vêem a realidade, não vêem as articulações, não vêem o que está mudando”.

Ao contrário do que acha o presidente, nosso entendimento sobre o termo neoliberal parte exatamente de uma visão crítica face às mudanças e transformações que ocorreram e estão ocorrendo no mundo. Vale a pena lembrar algumas delas.

Os anos 1990 foram marcados por uma ofensiva sem precedentes do pensamento conservador em todo o mundo, impulsionada pelo desmoronamento final da URSS e dos regimes do Leste europeu e por uma grande onda do capital financeiro em escala mundial, batizada de “globalização”. Na verdade, a desintegração da URSS significou a vitória final da guerra fria pelos Estados Unidos e o estabelecimento de uma ordem mundial unipolar, completamente hegemonizada pela superpotência norte-americana. Muito antes disso, no final da década de 1950, o sistema socialista já havia entrado em profunda crise, época em que surgiu o chamado conflito sino-soviético: o Partido Comunista Chinês assumiu uma posição de enfrentamento ideológico e político face à URSS em relação aos problemas da construção do socialismo, o caminho da revolução, a natureza das condições entre o campo socialista e o capitalista, a possibilidade ou não de uma longa cooperação e coexistência pacíficas entre os dois sistemas, etc. Já nesse período, a URSS foi acusada de ter abandonado o caminho do socialismo e da revolução. Data daí um primeiro recrudescimento do conservadorismo, que estava isolado e na defensiva desde o final da Segunda Guerra Mundial.

A partir dos anos 1970, a onda conservadora foi decisivamente fortalecida pela vitória de Margareth Thatcher na Grã-Bretanha e, em seguida, de Ronald Reagan nos Estados Unidos. Premiada pela grande crise que os países capitalistas centrais enfrentavam – com recessão econômica e inflação ascendente – Thatcher investiu contra o chamado “welfare state” (Estado de bem-estar social), culpando os gastos públicos nas áreas sociais e as reivindicações dos como as causas básicas da crise. Por seu lado, Reagan intensificou a ofensiva político militar contra a União Soviética, aumentando enormemente os gastos militares e promovendo, ao mesmo tempo, um crescimento espetacular da dívida pública norte-americana e o aumento dos ganhos do setor financeiro; fatos que estão na origem da atual globalização. Na década de 80, conhecida nos EUA como "década da ganância”, o pagamento de juros pelo governo norte-americano passou de US$ 52 bilhões, em 1980, para US$ 142 bilhões, em 1986, e mais de US$ 200 bilhões no começo dos anos 1990. Na América Latina, esta onda se iniciou muito prematuramente, a partir da derrubada violenta do governo do presidente Allende, em 1973, e pela adoção, por parte do governo Pinochet, de um receituário que, anos mais tarde, seria generalizado em toda a região: privatização do patrimônio público, ataque aos direitos sociais, prioridade total à estabilidade monetária como condição básica para atração de capitais externos, diminuição drástica dos gastos sociais do Estado.

“O neoliberalismo é a manifestação triunfalista atual do capital financeiro, ideologia anti-socialista e anti-social, que procura justificar o desemprego e a exclusão social como mal necessário à modernização econômica”

O receituário neoliberal disseminou-se amplamente, atingindo os Estados Unidos, a Europa Ocidental, o Leste Europeu, a antiga URSS e a América Latina. Em todo o mundo capitalista a renda se concentrou, os gastos financeiros do Estado cresceram e os gastos sociais diminuíram. Um novo surto capitalista se iniciou, caracterizado pela ordem mundial unipolar dominada pelos Estados Unidos, por uma nova onda de globalização dos mercados, por gigantescas fusões patrocinadas pelo capital financeiro e por uma grande crise social e de desemprego em escala mundial, acompanhada por um ataque às organizações dos trabalhadores e aos direitos sociais duramente conquistados.

A oligarquia financeira internacional parecia estar no melhor dos mundos: destruíra, em grande parte, o campo socialista; ganhara a guerra fria; iniciara o desmantelamento dos “welfare state” na Europa Ocidental; na América Latina, avançara no desmanche do capitalismo de Estado desenvolvido, de forma diferenciada, pelos países da região; e passara a pregar que só o capitalismo e o livre mercado são viáveis e que não existe nem segunda nem terceira vias. Seus teóricos triunfalistas proclamavam, até mesmo, o “fim da história”, no sentido de que a ideologia do livre mercado e a democracia burguesa constituíram o coroamento final da história da humanidade.

E, no Brasil, como se iniciou o ajuste neoliberal? Vínhamos de um período de enorme crise social, fruto do esgotamento do modelo implantado, à ferro e fogo, pelo regime ditatorial. Inaugurado com o golpe militar de 1964, ele pusera fim a um governo com propósitos reformistas como a reforma agrária. O golpe não somente enterrara qualquer perspectiva de modernização do país por um caminho nacional e popular, mas “ajustara” o país à ordem mundial capitalista de então, endividando-o até os ossos.

Na verdade, aqui, o “novo ajuste” começou pelo Plano Real, cujo princípio básico foi a implementação de uma estabilidade monetária sustentada nas reservas em dólar acumuladas pelo país. Esta foi a grande garantia oferecida pelo plano arquitetado por FHC e sua equipe ao capital internacional, hegemonizado pelos Estados Unidos (não por acaso, o real foi ancorado no dólar, e não no iene japonês ou no marco alemão): o governo, depois de efetuar um acordo com o chamado comitê dos credores, altamente lesivo ao país, referente à dívida antiga (fechado em 15 de abril de 1994), e que implicou em duplicar os pagamentos até então feitos pelo Brasil a seus credores externos, passou a garantir a estabilidade de uma nova moeda – o real –, ancorada no dólar, como principal atrativo para atrair dívida nova dos investidores internacionais. Comprometeu-se, ao mesmo tempo, em realizar as denominadas “reformas estruturais” no aparelho de Estado, promovendo um equilíbrio fiscal pelo corte de gastos sociais, privatizando o patrimônio público – representado principalmente pelas empresas estatais – em um irresponsável programa de desestatização (que, aliás, for a iniciado pelo governo Collor). Tudo isso implicava, praticamente, em escrever uma nova constituição e, assim, de repente, alguns princípios sociais consagrados no texto da Constituição de 1988, que nem bem saíra do forno, foram apontados como os principais obstáculos à modernização do país. Em nome da “modernidade”, o soi-disant Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que elaborou e lançou o Plano Real e que hegemoniza o atual esquema de forças do governo FHC, desencadeou um ataque furioso aos direitos sociais e ao movimento organizado dos trabalhadores, isto num país que disputa, no plano mundial, o primeiro lugar em matéria de concentração de renda e da riqueza e em desigualdade social. Tudo isso em nome de quê? Da necessidade de integrar o Brasil à nova ordem mundial, de tomar carona na atual “globalização” em curso e de atrair, para cá, um poderoso fluxo de capitais que financiariam o nosso desenvolvimento, repetindo-se assim, guardadas certas diferenças, a mesma teoria do regime militar, de “crescimento econômico com endividamento externo”, que já arruinou o país.

“O neoliberalismo fundamenta a criação de um verdadeiro Estado do mal-estar social, em que os cidadãos não têm mais direitos sociais básicos assegurados e ficam a mercê das forças selvagens do mercado” Pode-se, portanto, definir o neoliberalismo como a manifestação triunfalista atual do capital financeiro, ideologia abertamente anti-socialista e anti-social, que procura justificar o desemprego em massa e a exclusão social de milhões de pessoas como “mal necessário” à modernização econômica.

É esta ideologia que leva o presidente Fernando Henrique reconhecer tranquilamente que, nos caminhos que o país hoje trilha, definidos por seu governo, “não há força para incorporar todo mundo”.
O neoliberalismo, em suma, é a nova ideologia que fundamenta a criação de um verdadeiro “Estado do mal-estar social”, em que os cidadãos não têm mais direitos sociais básicos assegurados e ficam à mercê das forças selvagens do mercado. Ele reflete uma tremenda regressão histórica, pois há cinquenta anos, ao final da Segunda Guerra Mundial, a idéia de que o Estado é o responsável pelo bem-estar das pessoas transformou-se num consenso generalizado, o que explica o porquê de o socialismo ter saído tão fortalecido do conflito e, mais tarde, nos países capitalistas centrais, o chamado “welfare state” ter sido adotado de forma mais ou menos generalizada. Foi uma resposta aos trágicos resultados da história do século XX, marcada por dois conflitos mundiais, que provocaram mais de 60 milhões de vítimas diretas, entremeados por uma terrível depressão econômica que levara outros milhões de seres humanos ao desemprego e ao desespero.

No Brasil, onde nunca houve um Estado socialista e nem mesmo, nos marcos do capitalismo, nada que se assemelhasse a um Estado do bem-estar social que foi a grande bandeira da social democracia no pós-guerra, não deixa de ser surpreendente que este verdadeiro “Estado do mal-estar social” esteja sendo implantado pelo denominado Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), liderando um bloco de forças conservador.

* Economista e jornalista. Foi editor de economia dos semanários Opinião e Movimento e membro do Conselho Federal de Economia de 1987 a 1989.

EDIÇÃO 43, NOV/DEZ/JAN, 1996-1997, PÁGINAS 39, 40, 41