Há uma inquietação nas camadas politicamente avançadas da sociedade brasileira relativa às eleições de outubro que diz respeito ao efeito da vigência da cláusula de barreira no desempenho de legendas como o PCdoB.

Essa barreira foi estabelecida para este ano no âmbito das iniciativas conduzidas sob a orientação do governo FHC de restringir a democracia no país, buscando estabelecer um sistema elitista de representação partidária. Acompanhou, assim, o mesmo rumo estabelecido pela ofensiva neoliberal no mundo: medidas restritivas foram adotadas em diversos países na década de 1990. No Chile, cuja ofensiva nesse sentido data do período pós-Pinochet, o voto distrital binominal tem conseguido suprimir reiteradamente a representação de forças avançadas como o PC chileno. Na Itália as medidas foram adotadas e refluiu-se como parte do combate associado a forças mais democráticas.

Juntamente com a introdução do direito de re-eleição, em 1997 (sob medida para o príncipe FHC), a barreira foi estabelecida sem um amplo debate nacional, confundindo a opinião pública quanto aos reais interesses em jogo e à sua resultante em largo prazo no sistema político. Argüiu-se o pretendido “caráter nacional” dos partidos, que deverão ultrapassar barreira de 5% dos votos válidos à Câmara dos Deputados, e mais a de um mínimo de 2% em 9 Estados (um terço do total).

Importou-se, no caso, mais uma idéia fora do lugar: cópia do sistema alemão inteiramente alheia às características políticas próprias do Brasil. Não se levou em conta que nesse país há um sistema unicameral e parlamentarista, o que poderia explicar o porquê de estabelecer a barreira com base na votação de deputados federais. Explicar, mas não justificar, porquanto a medida restringe a representação proporcional e, com ela, o pluripartidarismo democrático.

A cláusula de barreira no Brasil é uma excrescência antidemocrática. Na prática são duas barreiras (5% + 2% em 9 Estados), como obstáculos últimos que se somam à barreira da influência do poder econômico nas eleições e ao virtual monopólio das comunicações no país, atuando em defesa dos interesses dominantes na sociedade. A única brecha existente, a do fundo partidário e do tempo de TV e rádio à disposição dos partidos, será garroteada agora pelos que não as ultrapassarem. Pretendeu-se, à guisa de conter as chamadas legendas de aluguel, restringir o sistema partidário a cinco ou seis agremiações.

Diz-se, descuidadamente, que excesso de partidos dificulta a governabilidade, o que não resiste a um exame mais atento dos sistemas políticos em diversos países e dos seus miasmas contemporâneos. Porque a democracia, no Brasil e no mundo, vem sendo limitada pelos poderes efetivamente reais na sociedade, como o poder econômico e financeiro, o poder das grandes corporações de mídia. Eles são completamente infensos a qualquer controle social. Soma-se às características fragmentárias e de certa anomia vigentes na sociedade, organizada pelos “interesses de mercado”. É daí que parte um forte impulso que esvazia crescentemente o sistema político representativo que desenvolve os lobbies políticos corporativos, que transforma as eleições em espetáculos midiáticos inteiramente financiados em recursos privados, cujos custos são inalcançáveis pelas forças populares.

É preciso partir de algo mais comprovado historicamente: é preciso mais democracia e não menos para garantir governabilidade para um projeto verdadeiramente inclusivo das grandes maiorias sociais no sistema político. Nossa sociedade sequer completou seu processo de integração social, dada a marginalização de enorme contingente da população, carente de voz e representação política. Essa integração tem como corolário político sanar o déficit de democracia política, sob a forma de pluripartidarismo democrático. A sociedade brasileira é plural e precisa estar representada na Casa que é a sua mais concentrada expressão, a Câmara dos Deputados. A cláusula de barreira é uma violentação da norma mais democrática de que se carece para implementar essas mudanças avançadas que o país reclama. É um entulho autoritário que FHC resgatou do período ditatorial de 1964 e o incorporou à “herança maldita” de oito anos de governo.

A inquietação diz respeito ao fato de haver um espaço político para o fortalecimento de uma legenda de esquerda firme, hábil politicamente, respeitada por sua história e sua coerência, como tem sido o PCdoB, seus parlamentares, seus militantes nos movimentos sociais. Um partido cuja história se confunde e funde com a própria história do povo brasileiro por liberdades, direitos sociais e afirmação nacional. Pode haver partidos que tenham prestado o mesmo tributo à democracia no país, mas nenhum supera aquele pago pelo PCdoB nestes 84 anos de existência. Mesmo com o atual sistema político elitista, logrou alcançar a presidência da Câmara dos Deputados, com a ilustre figura de Aldo Rebelo, o que seria mais difícil se já vigorasse a barreira em 2002.

O crescimento do PCdoB está claramente associado às exigências de dar seguimento à luta, num segundo mandato Lula, por um projeto nacional mais nítido, com crescimento e distribuição de renda, com valorização do trabalho e inclusão social, com soberania nacional e democracia. A barreira poderá comprometer ou limitar esse papel? Como enfrentá-la?

O PCdoB estabeleceu um projeto político e eleitoral frente a isso. A questão central é eleger em outubro o máximo de deputados federais, garantindo 2% em no mínimo nove estados e buscando alcançar os 5% de votação nacional. A primeira barreira já foi ultrapassada em 2002, quando elegeu 12 federais com 2,3% dos votos válidos à Câmara dos Deputados. A segunda é o desafio deste ano. Motivou inclusive um Apelo Democrático ao Voto nos Candidatos Comunistas. É um objetivo a perseguir no âmbito de um posicionamento político maduro, em sustentação do governo Lula e de sua reeleição.

O PCdoB (mais o PRB) está coligado nacionalmente com o PT. Está organizado em todos os estados do país, tendo lançado 73 candidatos e candidatas a federal e 271 candidatos e candidatas a deputado estadual. Buscará eleger até 20 deputados federais. A base para isso foi estabelecida na Resolução Política da Convenção Nacional Eleitoral, onde se afirma: “O PCdoB é beneficiário dos êxitos destes últimos anos, aumentou seu prestígio e autoridade política, incrementou o respeito e presença nos movimentos sociais, reforçou suas relações com amplos setores sociais e aumentou suas fileiras militantes. Teve papel decisivo no enfrentamento da crise política instalada no país e esteve isento de qualquer imputação frente ao denuncismo golpista da oposição. A esquerda brasileira passou por transformações importantes nos últimos anos, os trabalhadores e o povo trilharam experiências políticas novas. O PCdoB teve um lado bem definido nesses enfrentamento, demonstrou clareza, coragem e lealdade diante das tentativas ainda em curso de destruir a experiência de um governo advindo das forças e lutas populares. Trata-se de transformar esses êxitos em força eleitoral”.

Em reforço disso, o projeto postula, com equilíbrio, a apresentação de candidaturas às eleições majoritárias, uma ao governo (Tocantins) e, em seis estados, ao Senado (Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Distrito Federal, Goiás e Mato Grosso). Elas certamente reforçam a visibilidade política e eleitoral do PCdoB e podem efetivamente conquistar mandatos. Exclusivamente nessas candidaturas pode-se ultrapassar a cláusula de 5% dos votos nacionais – cerca de 5 milhões de votos válidos – e certamente a ultrapassará se somados também os votos das eleições proporcionais. Com isso põe-se em evidência o esdrúxulo critério estabelecido para a cláusula de barreira de só contabilizar uma determinada votação. Isso poderá ser referência para retomar o debate nacional sobre uma reforma de fato democratizante do sistema político, partidário e eleitoral.

Haverá, de todo modo, um debate regimental no âmbito do Congresso Nacional quanto ao papel e direitos das bancadas que não tenham alcançado 5% dos votos nacionais. A posse dos eleitos é assegurada, nos termos da lei – a eleição deles é soberana. Há jurisprudência já estabelecida com respeito ao direito integral de representação partidária dessas bancadas, no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça, em resposta à pendência apresentada pelo PV e o PRONA. Resta a questão, estabelecida em lei, da restrição do direito ao Fundo Partidário e ao tempo de TV e rádio, só resolvível no âmbito da retomada da reforma política.

O fundamental é precisamente isso – a reforma política. Ela deverá ser uma prioridade do segundo mandato de Lula, que assumiu esse compromisso programático, inclusive o de pôr a questão já no início de seu segundo mandato, se vitorioso. Aliás, o mesmo compromisso foi assumido pelo candidato Alckmin, com o sentido exatamente oposto – o de elitizar dedididamente o sistema partidário e eleitoral. Em suas hostes há quem defenda explicitamente o voto distrital-majoritário, cuja resultante, como já demonstrado na experiência de vários países, é o afunilamento para poucos partidos dominantes que se alternam no poder. Aliás, essa foi tentativa também do governo FHC, malograda. Na célebre expressão de Tancredo Neves, quando da Nova República, o voto distrital cria “vereadores federais”, esvaziando o sentido representativo proporcional da sociedade brasileira na casa Legislativa e o próprio papel desta.

Tal reforma é uma prioridade porque a crise política vivida no país nesses longos meses, hoje concentrada no Congresso Nacional, é no fundo a crise de um sistema político-partidário e eleitoral. Ao abrir caminho, pela primeira vez na nossa história, a novas forças sociais e políticas populares ocupando o posto central da República, tendo por base central partidos de esquerda, esbarrou-se nos limites de um sistema político e representativo plasmado por outros interesses, voltado para outros objetivos. Não obstante o conteúdo relativamente democrático do atual sistema – conquista da luta do povo na Constituinte de 1988 – é patente a enorme influência do poder econômico e das práticas tradicionais da política brasileira – patrimonialismo, clientelismo etc. O financiamento inteiramente privado das campanhas e a ausência de cláusulas de fidelidade partidária fragilizam o sistema partidário, ao lado de permitir o surgimento de um mercado de legendas cumprindo papel auxiliar dos interesses dos grandes partidos. Boa parte do sistema de representação política hoje se dá à margem do real significado das legendas partidárias. Essas características foram devidamente manipuladas pelos interesses dominantes, centralmente a grande mídia, para forjar uma pressão pela restrição do sistema, e não pela sua reforma com sentido democrático.

A reforma política deve articular uma reforma partidária e eleitoral que reforce o sistema representativo em bases mais democráticas, tendo por base o fortalecimento dos partidos políticos. Se se quer – e é necessário – restringir o mercado de legendas que se constituiu no Brasil as medidas são outras. Impõe-se o financiamento público das campanhas eleitorais e mecanismos de fidelidade partidária.

Outra medida na mesma direção é o sistema de voto em listas partidárias. Entretanto, essa é só a ponta mais visível do iceberg, que alcança também questões de fundo do sistema representativo no país. Nos termos do projeto nacional que se necessita para o país, trata-se de pôr em relevo o fortalecimento do papel do Congresso Nacional com base num sistema pluripartidário verdadeiramente democrático, ou seja, uma representação proporcional que expresse a diversidade de forças sociais e regionais de que é feito nosso sistema político. É o que está em maior consonância com as tradições políticas e a diferenciada realidade econômica, social e regional do Brasil. E é mesmo uma exigência central – a da democracia e a da integração social do país – para impulsionar um novo projeto nacional, de desenvolvimento acelerado e distribuição de renda.

Daí a necessidade de não apenas re-eleger Lula como também fortalecer a representação comunista, das demais forças de esquerda e democráticas em geral no novo parlamento. Isso permitirá retomar os projetos já em avançada tramitação no Congresso Nacional (particularmente os relatórios Rubens Ottoni e Marcelo Barbieri) que já estabelecem o financiamento público, a fidelidade partidária, o voto em lista. Uma coisa é certa – há que remover o entulho autoritário da cláusula de barreira. Há inclusive emenda segundo a qual, para assegurar o caráter nacional dos partidos políticos, basta apenas uma das duas barreiras atuais – 5% ou 2% em no mínimo nove estados.

Os brasileiros já acumulam, em sua trajetória enquanto povo-nação, larga experiência de luta pelas liberdades. A democracia é um bem indispensável para seguir adiante na luta pela construção de nossa nação. Aliás, com algumas variações, em nossa América do Sul seria inimaginável a atual onda progressista conquistando eleitoralmente governos não fosse um caminho democrático e a defesa que dele fizeram gerações inteiras. Não se deve permitir que sob argumentos de ocasião se mutile algo muito mais profundo e perene: o sistema de representação plural e democrático da sociedade no seu parlamento, que é o que mais convém a essa construção na atualidade.

Walter Sorrentino é secretário de organização do PCdoB.

EDIÇÃO 86, AGO/SET, 2006, PÁGINAS 28, 29, 30, 31