A "new wave" da modernidade é inventar um sistema social híbrido, meio socialismo, meio capitalismo. E, em decorrência, um tipo de partido "sereia": meio marxista e socialista, mas com outra metade atraente, "light", disposto a incorporar "outras contribuições teóricas" e "aberto" às diversas correntes que se manifestam no movimento popular. Com a promessa de um novo modo democrático de organização.

Esta onda modernosa vem ocupando o espaço deixado pela crise da teoria marxista e pela confusão entre os trabalhadores com as derrotas do socialismo na URSS e no Leste europeu, e a degeneração de boa parte dos partidos comunistas (Ver Princípios n° 18, artigo de João Amazonas).

Os ideólogos de tal inovação declaram o marxismo como "um dos instrumentos teóricos disponíveis", mas afirmam que os trabalhadores não podem dispor, na luta por sua emancipação, de uma teoria integral da sociedade. Admitem certo grau de unidade partidária, mas toleram uma diversidade de grupos e tendências no interior do partido. Consideram a existência de oposição organizada à direção e à linha do partido como prova de democracia. O pluralismo é a palavra-chave na definição da "nova" democracia partidária.

O PCB, nas teses para seu IX Congresso, anuncia esforço para dotar o partido de "uma nova teoria, uma nova cultura política e um novo modelo de organização" (1). Revela que o partido não deve "insistir em manter uma doutrina oficial – o marxismo-leninismo". (Tudo menos esta!). Mas que deve, para a análise concreta da realidade, "preservar as teorias de Marx, Engels, Lênin e outros marxistas (…) sem confrontação no contexto das teorias sociais e políticas progressistas e democráticas – inclusive religiosas – que existam no interior do Partido e que enriquecem a humanidade e sua cultura". O PCB busca o "pluralismo de concepções e convicções no Partido (…), mas também o pluralismo marxista".
No terreno organizativo, repudia o centralismo democrático leninista em favor de uma chamada "unidade democrática". E explica: "não se trata de uma submissão da minoria à maioria, mas da unidade de todos em torno das questões que, juntos e em meio às divergências – garantidas no seu direito de manter-se e explicitar-se –, democraticamente adotaram".

Apesar do risco de desviar a atenção do leitor do assunto principal, cedo à tentação de citar uma pérola desta "nova" teoria pecebista. Ao definir o que denomina socialismo renovado, as teses explicam: "Esses valores (do socialismo), conforme os valores globais e policlassistas, não são hoje exclusivamente da classe operária, nem esta é, nas condições atuais, a única consequente na luta por eles. O socialismo é aspiração e ação de variados sujeitos sociais e políticos relacionados sobretudo com o conjunto dos trabalhadores e com o mundo da cultura, e é rico em suas concepções pluralistas". E, num esforço fantástico de criação, para explicar a "nova unidade de classe que envolva ao mesmo tempo o mundo da cultura e do saber", afirma que "a nova classe operária brasileira poderá situar-se como classe geral".

Para representar os variados sujeitos políticos e sociais, em particular esta esdrúxula classe geral, com seus valores globais e policlassistas, os pecebistas sonham com um “partido em geral” – adotam o ecletismo como teoria e só podem tomar decisões, pelo que anunciam, quando as correntes divergentes chegam ao consenso. Como clube de debates pode funcionar. Mas como arma de combate, é imprestável.

Surpreendentemente, com uma fraseologia diferente, de esquerda, o PT revela concepções muito parecidas. Augusto Franco, da direção nacional petista, informa, no boletim Linha Direta n° 12, que o partido reconhece o marxismo como "âmbito teórico válido para a análise da realidade", mas nega-se a adotá-la como "doutrina oficial" (tudo, menos esta!) para que não se torne uma "comunidade espiritual dos que partilham de uma mesma visão (ideológica) sobre as relações fundamentais dos homens, da sociedade, da história" (2).

Pode-se imaginar como é difícil formular um programa de luta em favor dos trabalhadores, e aplicar uma política coerente, aglutinando os que têm visões ideológicas divergentes sobre as questões fundamentais da sociedade. Mesmo quando estas tendências são, segundo opiniões de teóricos petistas, manifestações das várias correntes existentes na denominada "classe trabalhadora". Esta categoria "classe trabalhadora" inclui classes e segmentos de classes com interesses e convicções bastante distintos, como operários, camponeses – pequenos e médios proprietários rurais –, trabalhadores rurais, comerciários, bancários, profissionais liberais, professores, funcionários públicos, pequenos e médios empresários. Mesmo sem a intenção de forçar comparações, faz lembrar a idéia da tal "classe geral".

PT e PCB adotam conceitos semelhantes sobre um partido "acima" das classes

Lênin, há mais de setenta anos, ao ressaltar o papel de Karl Marx e de sua teoria sobre a luta de classes, advertia: "Em política, os homens sempre foram vítimas ingênuas do engano dos outros e de si próprios, e continuarão a sê-lo, enquanto não aprenderem a descobrir por trás de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas, políticas e sociais, os interesses de uma ou outra classe" (3). E, ao tratar do partido, indaga: "É possível unir trabalho de organização se não está bem unida à compreensão dos interesses e tarefas da classe?" (4).

Para não levar gato por lebre, é preciso estudar mais profundamente o que se pretende com um partido político.

O partido não se conforma com o senso comum forjado pela burguesia

O Partido que represente os trabalhadores é, resumidamente, uma organização que representa e defende interesses de uma parte da sociedade. E, para realizar seus objetivos, conduzir a luta pelo poder político. É ilusão querer separar partido e luta de classes. Os interesses, e sua realização, não resultam da somatória de vontades individuais ou de formulações abstratas sobre justiça social.

Surgem, essencialmente, do lugar ocupado pelos grupos sociais, as classes, no sistema de produção. Os interesses dos proprietários dos meios de produção não podem evidentemente coincidir com os dos despossuídos. Quem vive da mais-valia arrancada do trabalho de quem nada possui vê o mundo e tem necessidades radicalmente diversas daqueles que sobrevivem vendendo sua força de trabalho.
Partido implica, portanto, programa com objetivos definidos, estratégia e táticas adequadas para alcançar as transformações necessárias à classe que representa. A construção deste instrumento reclama, evidentemente, unidade de pensamento sobre as relações sociais, o sistema de produção, os mecanismos de poder, o desenvolvimento histórico e cultural.

Mais que isto, o partido do proletariado, para cumprir seu papel, necessariamente luta contra o modo de pensar dominante. Numa sociedade de classes, os que controlam os meios de produção material detêm também os mecanismos de produção espiritual e cultural. É sabido que no capitalismo o modo de pensar dominante é o da burguesia. Submetidos a impiedosa exploração, embrutecidos por condições de trabalho desumanas, recebendo informações, formação e educação através das instituições e meios de comunicação burgueses, os próprios trabalhadores são levados a adotar opiniões dos seus dominadores.

Por tudo isto, há mais de meio século, Lênin indicava uma verdade que ainda hoje certos baluartes da modernidade teimam em ignorar: "Os operários verdadeiramente conscientes em toda sociedade capitalista não constituem senão uma minoria de todos operários (…) O mais característico para os partidos políticos operários é justamente que só podem abarcar a uma minoria de sua classe" (5).
Um Partido revolucionário não se confunde, portanto, com as classes que representa. Não se limita a reagir espontaneamente contra as consequências imediatas da exploração. Dotado de uma teoria capaz de explicar o movimento social, pode planejar o que está além do limitado horizonte do cotidiano. Orienta a atividade de agora com a visão dos objetivos maiores e futuros. Revela, na prática, a distinção entre a ideologia proletária revolucionária e as concepções burguesas. Neste processo, demonstra também como são insuficientes as proposições reformistas apregoadas pelas camadas médias que oscilam entre a burguesia e o proletariado. Desta forma, o Partido age como vanguarda ao despertar os menos conscientes, ao educar o conjunto dos trabalhadores, levando-os a juntar concepções teóricas avançadas com a experiência concreta.

Não pode haver um movimento de massas consequente, revolucionário, sem uma organização teoricamente capaz de compreender a sociedade e identificar os interesses de conjunto do proletariado – conscientes apenas por uma minoria de trabalhadores subjugados pelo capital.

A unidade teórico-ideológica, longe de ser um mal, é condição essencial para um partido que luta por uma nova sociedade. A este partido podem chegar militantes de diversas origens sociais. Mas o seu conteúdo de classe não se confunde com a soma individual de seus membros.

Por outro lado, o ecletismo, associado com o esforço para subestimar o papel da teoria, só leva a embaralhar idéias e desarmar os trabalhadores. É tolice tentar camuflar o fato de que a luta ideológica é parte da luta de classes.

Francisco Weffort, ideólogo e dirigente nacional do PT, diz, sem ao menos corar: "o PT não nasce de nenhuma definição teórica, mas de uma intuição prática que se revelou teoricamente correta". E conclui que o partido deve ser "laico do ponto de vista teórico e filosófico" (6).

Esta "falta de teoria" tenta aparecer como avanço democrático. Vem associada muito particularmente ao ataque contra o socialismo científico. Com este propósito, é frequente a identificação grosseira de ciência social com fórmulas prontas e acabadas, para tudo. Mas os defensores da intuição – e da revelação talvez – não teriam o mesmo desembaraço em repetir estas comparações ao falar de física, biologia, química etc. Ou será que o homem pode conhecer a natureza e as leis do desenvolvimento da matéria, mas é impotente para pensar cientificamente sobre si mesmo e sobre a sociedade em que ele vive e constrói?

A ciência busca aproximação infinita do saber com o real através da história

Em geral, a ignorância é que leva às tentativas de impor esta ou aquela descoberta particular como conclusão final, e a ver os fenômenos como eternos, imutáveis. Pelo contrário, quando a atividade teórica desenvolvida pelo homem alcança o nível da ciência, surge a compreensão de que as informações adquiridas com as experiências passadas constituem parte da verdade, num processo infinito de aproximação do conhecimento com o real. Foi a ciência que demonstrou o caráter histórico das verdades no mundo em permanente movimento.

O marxismo-leninismo, como ciência da sociedade, foi que introduziu a dialética no estudo do desenvolvimento social, econômico e político. E conquistou direito à vida exatamente porque soube assimilar – e reelaborar de acordo com a visão científica do proletariado – tudo o que mais relevante o pensamento humano produziu.

A crise atual do marxismo – como outras que já viveu e que as ciências ocasionalmente podem enfrentar – vem da dificuldade em interpretar os novos problemas surgidos no curso da construção do socialismo. Mas aproveitar-se de obstáculos temporários para negar a ciência no amanhecer do século XXI e, em seu lugar, pregar a incorporação acrítica de "todas as contribuições progressistas, democráticas e religiosas", pretendendo, ao mesmo tempo, ser porta-voz da modernidade, não parece muito salutar.

Mesclar no mesmo partido as "diversas correntes que se manifestam entre os trabalhadores", em vez de aumentar a democracia interna, rebaixa o pensamento elaborado e a teoria científica em favor das concepções espontâneas do dia-a-dia. Dissolve o elemento proletário consciente, classista, no senso comum das massas, conformado pelo modo de pensar imposto pelas classes dominantes. Um aglomerado deste tipo, por mais radical que se diga, não tem como estabelecer uma ruptura com a ordem vigente.

A aversão pela teoria, em nome de um abstrato pluralismo de convicções, tem um traço que merece atenção. Por que o reclamo de variadas teorias para tudo? A busca de tal diversidade de convicções provém da auto-suficiência dos que consideram servilismo reconhecer a produção intelectual coletiva. Porque pretendem ter opinião própria, original, sobre qualquer coisa. Em nome de sua sacrossanta individualidade, querem sentir-se livres de toda teoria integral e, em decorrência, da disciplina de uma organização que se oriente por ela. Apregoam a relatividade de qualquer conhecimento para exibirem por todo lado seus próprios conceitos, "diferentes de tudo".

A teoria da falta de teoria, entretanto, ou o princípio de não adotar nenhum princípio, desastradamente, equivale a subordinar-se – conscientemente ou não – aos princípios dominantes. Mesmo floreando os argumentos com invólucro de esquerda.

Os mais fervorosos partidários da multiplicidade de programas e tendências são os trotskistas. Isto lhes serve de pretexto para aninharem-se em outros partidos mais amplos, usados como biombo. Mas nas suas próprias organizações reina a intransigência total – qualquer diferença em torno da primeira mesquinharia é elevada à categoria de oposição de princípios e resulta em separações. Como os protozoários, reproduzem-se por divisão celular. Reduzidos a montinhos, voltam a se reunir com novas composições e, imediatamente, o processo de multiplicação recomeça.

Resta conferir se, no terreno organizativo, a existência de tendências assegura a democracia no interior do partido. Vamos partir da definição do PT, que foi mais longe na sistematização desta categoria. Este partido, no seu 7° Encontro Nacional, em maio deste ano, adotou um "regulamento" sobre o direito das tendências, classificadas como: "agrupamentos para defender posições políticas e organizacionais e disputar postos nas instâncias e nos organismos do partido".

Quem não compreende a dominação não consegue romper com a ordem social estabelecida

Na sociedade capitalista, onde a classe dominante é minoritária, é essencial para a luta dos trabalhadores, e para a elevação do nível de consciência das massas, conquistar o direito das oposições, e da classe operária em particular, de organizarem seus partidos. A democracia burguesa teoricamente garante a liberdade de manifestação e de organização. Embora na prática, frequentemente, negue ou imponha pesadas restrições às oposições – e, sempre, pelo poder econômico, limite suas atividades. Mas será que transpor as regras da democracia burguesa para o interior do partido que luta pelo socialismo corresponde aos interesses da classe operária e dos trabalhadores?

É verdade que no seio do proletariado aparecem diversas correntes. Idéias reformistas, populistas, social-democratas, conformistas, democratas radicais sensibilizam contingentes de trabalhadores menos conscientes, influenciados pela ideologia dominante. São correntes sem uma consciência classista e revolucionária. Quando formam movimentos organizados, buscam no máximo alterações nos marcos do sistema burguês – não têm ainda condições de dirigir seus esforços para liquidar o capitalismo e construir um novo sistema, socialista. Não têm uma compreensão das relações fundamentais da sociedade, não dispõem de instrumental teórico para sistematizar os interesses maiores dos próprios trabalhadores, e da classe operária em particular. Seu "socialismo", quando chegam a isto, é um protesto contra as "injustiças" e uma promessa de "humanizar" a sociedade. No geral, não passa de um projeto idealista de um capitalismo "justo e bom!".

Nas situações de turbulência social, é comum as classes dominantes utilizarem partidos desse tipo para canalizar a revolta das massas visando a impedir que se encaminhem para soluções revolucionárias. Na Europa, os partidos social-democratas, em diversas ocasiões, chegaram ao governo apoiados nas massas operárias. Promoveram reformas, arrumaram a casa, ajudaram a burguesia a contornar a crise, prestaram incalculáveis serviços aos donos do capital na preservação do velho regime.

Há mais de um século, tirando conclusões sobre a experiência da Comuna de Paris, em 1871, Marx e Engels aportaram: "a organização da classe operária em um partido político é indispensável para assegurar a vitória da revolução social e alcançar sua meta final: a liquidação das classes" (7).
Este partido de classe, armado com a teoria científica do proletariado, é que pode defender os interesses do conjunto do proletariado e das massas trabalhadoras – que, nas condições do capitalismo, só uma minoria tem consciência – e orientar a luta pelo poder e por transformações revolucionárias da sociedade. Este partido é que pode elaborar políticas capazes de promover a unidade de ação entre as parcelas mais conscientes, já com visão revolucionária, e as demais correntes do movimento operário e popular e, de acordo com as condições concretas, estabelecer uma frente única com outros setores não proletários que estejam em oposição aos governos burgueses, em torno de objetivos determinados.

Outra coisa é transformar a frente operária-popular no próprio partido. Este partido-frente, mesmo que incorpore os setores mais à esquerda, dilui os elementos conscientes, classistas e revolucionários, nas diversas tendências que lutam ainda movidas pela resistência espontânea e, portanto, sob influência ideológica de classe dominante.

Os ideólogos de um sistema híbrido não podem definir objetivos do partido

Raul Pont diz claramente: "O PT é uma frente classista, baseada nos sindicatos e nos demais movimentos orgânicos reivindicativos dos assalariados (…) nele se expressarão, democraticamente, várias correntes e níveis de consciência diferenciados das classes trabalhadoras, bem como das tendências organizadas que se reivindicam da construção de uma alternativa classista, da organização política, autônoma e independente dos trabalhadores” (8).

Para acomodar as "várias correntes e níveis de consciências", os teóricos petistas se debatem em dificuldades insanáveis:

"Embora seja válida a preocupação em definir os objetivos socialistas do PT – diz Wladimir Pomar – é fundamental considerar que tal definição não pode atrapalhar ou impedir a consolidação do caráter de massas do partido" (9). Neste conceito, quanto menos “definido”, mais “de massas”. Quanto mais este “socialismo” incorporar conceitos vigentes, mais aceitável para os descontentes das mais variadas tendências.

Francisco Weffort se debate no mesmo atoleiro. Ao se defrontar com a perspectiva de uma definição teórica do PT, ele indaga: o que fazer com os católicos, os socialistas não-marxistas e com as bases operárias que nem chegaram a uma convicção ideológica de tipo socialista? (10). E, recentemente, encontrou uma média aceitável para gregos e troianos: "Uma sociedade socialista, no meu entender, tem empresariado, tem burguesia (…) A diferença central em relação a uma sociedade capitalista é que aquelas alianças nas quais os trabalhadores jogam papel principal exercem função hegemônica na sociedade" (Folha de S. Paulo, 27-08-1990).

O PCB, aliás, para unir todo mundo, em meio às divergências, sem submissão da minoria à maioria, nas Teses, chegou a conclusões semelhantes. Sua via socialista é a "formação e atuação de um novo bloco político, democrático e progressista, que reagrupe a esquerda, consiga formar a maioria e conquiste o governo".

Um pouco como confissão, o deputado José Genoíno esclarece: "Eu não concordo com quem pretende
fazer do PT um partido de vanguarda. O PT pode desempenhar um grande papel enquanto partido amplo, de massas". E ainda acrescenta: enquanto um partido 'de massas' organiza a parcela mais politizada, o partido 'de vanguarda' tem "um caráter seletivo mais acentuado" (11).

No fundo, toda esta confusão e malabarismos teóricos vem de um rebaixamento da noção de partido político ao nível da consciência sindicalista e do movimento espontâneo das massas. Fruto da ilusão num “capitalismo socializado”, o tal sistema híbrido.

A unidade orgânica de todas as tendências entre os trabalhadores deveria ser possível nos sindicatos. Ali, trata-se sobretudo de resistir ao patronato, reagir à exploração, coisa que a vida exige mesmo do trabalhador menos consciente. A maioria, se não todos os trabalhadores, deveria filiar-se ao seu sindicato. No Brasil nem isso ocorre, só uma minoria o faz, refletindo o grau de intimidação e pressão político-ideológica a que os oprimidos estão submetidos.

Nas entidades sindicais, a vanguarda consciente colabora (o termo é este mesmo) com as camadas mais atrasadas (a palavra não é muito precisa) em busca da unidade de ação mais ampla possível contra os patrões. Ao mesmo tempo, procura elevar a compreensão do conjunto sobre a necessidade de substituir o capitalismo pelo socialismo.

Transpor a concepção sindicalista para o partido significa estender esta colaboração no terreno da ação prática imediata, para a colaboração no campo das concepções gerais, do programa, da estratégia e da tática.

Em outras palavras, mesmo que nas declarações formais alguns partidos com estas concepções repudiem até alianças táticas com grupos de camadas médias ou de oposição burguesa, a burguesia está, de fato, enraizada nas fileiras “combativas” através das idéias sobre a sociedade atual e a nova a ser construída, que orientam suas políticas. A colaboração de classes, tão rejeitada em palavras, é praticada – conscientemente ou não – dentro do partido, aberto às diversas ideologias e teorias.

Concepções herdadas do sindicato levam à colaboração de classes no interior do partido

Para completar o emaranhado de equívocos, os intransigentes defensores do partido de tendências são favoráveis ao pluralismo sindical: cada corrente de pensamento com seu sindicato – e tal divisão, segundo eles, deve se elevar ao plano estadual e nacional, com várias centrais sindicais.
Espantoso é que estes problemas têm sido discutidos há 90 anos no mínimo. Lênin, já em 1902, no Que Fazer?, assinalava: “A história de todos os países testemunha que a classe operária, exclusivamente com as suas próprias forças, só desenvolve uma consciência trade-unionista, quer dizer, a convicção de que é necessário agrupar-se em sindicatos, lutar contra os patrões, exigir do governo estas ou aquelas leis necessárias aos operários (…) Fala-se de espontaneidade. Mas o desenvolvimento espontâneo do movimento operário marcha precisamente para a sua subordinação à ideologia burguesa".

Como derradeira esperança, os pregoeiros das virtudes democráticas indagam: como tratar as divergências? Ou devemos todos nos transformar em dóceis carneiros diante das ordens dos dirigentes?

Não se pode negar que em qualquer organização aparecem opiniões diferentes sobre o melhor procedimento em cada uma das mil batalhas da luta de classes. E não se pode esperar boas respostas para os problemas sem estimular a mais franca e aberta liberdade de cada um expressar seu ponto de vista. Aliás, não é próprio do revolucionário, de quem tem consciência, silenciar e submeter-se passivamente.

Entretanto, e aí é que reside a questão-chave, uma coisa são as diferenças concretas em cada formulação particular e outra as convicções divergentes – visões ideológicas distintas sobre as relações fundamentais da sociedade – que se cristalizam em torno dos objetivos maiores, do programa e da estratégia. Uma coisa são avaliações distintas, na busca dos mesmos interesses de classe em cada momento. Outra, são plataformas que, conscientemente ou não, expressam interesses de classes diferentes. Mesmo que da boca para fora todos jurem fidelidade aos trabalhadores e ao socialismo.

Se não têm a mesma ideologia e não se orientam pelos mesmos princípios teóricos, o mais democrático é que os defensores de diferentes plataformas formem partidos distintos. Que testem suas propostas junto às massas trabalhadoras. Ao invés de cada grupo se entrincheirar numa tendência para lutar por sua política e disputar o comando do partido.

Durante a ditadura militar, confinadas à clandestinidade, diversas organizações de esquerda encontraram abrigo na legenda do MDB, único partido legal, que cumpriu importante papel como canal para a atividade de vasto movimento democrático. Mas aquelas “tendências”, num período de exceção, nada têm de comum com a questão em pauta, da construção do partido revolucionário do proletariado.
Quando Marx e Lênin falam em partido de vanguarda, jamais defenderam que esta posição seja imposta por decreto aos trabalhadores. O Manifesto, em 1848, enfatizava: "os comunistas não formam um partido à parte, oposto aos outros partidos operários. Não têm interesses que os separem do proletariado em geral. Não proclamam princípios sectários nos quais pretendem modelar o movimento operário". E acrescentava que os comunistas, "na teoria, têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, da marcha e dos fins gerais do proletariado".

Vanguarda não é uma definição, mas posição que se conquista no curso da luta

As posições revolucionárias não são “de vanguarda” automaticamente. Nem existe um partido com imaginárias virtudes “de vanguarda” por definição. Assim como é artificial e inteiramente inócua a tentativa de separar partido “de massas” e “de vanguarda”. Uma organização será de vanguarda e de massas na medida em que suas proposições políticas se revelem suficientes para abrir caminhos à luta dos trabalhadores pelo poder e que, por sua atividade, as grandes massas a reconheçam como destacamento avançado.

É bom notar ainda que a existência de frações, longe de facilitar a discussão coletiva, impede uma troca construtiva de argumentos. Cada grupo se reúne à parte e forma suas opiniões sem ouvir as ponderações dos demais. E, uma vez que a plataforma de cada um se contrapõe às dos outros, e trata de superá-las, as dúvidas e insuficiências – que poderiam representar debilidades na disputa – são omitidas ou camufladas, quando ocorrem as reuniões plenárias.

Ao contrário, se o partido tem unidade de pensamento e objetivos, é natural expor abertamente todas as contribuições e fraquezas, para que o coletivo se arme contra os inimigos de classe. Em vez de radicalizar em torno de questões secundárias, cada militante trata de aplainar as arestas com os companheiros – e ceder nos pontos menores – em favor da unidade mais sólida. A exasperação e a vaidade individual de um ou outro camarada, quando surgem, causam danos qualitativamente inferiores às provocadas pelos choques de grupos organizados.

No partido-frente, na escolha das direções, cada fração busca ampliar sua fatia na composição, e luta para colocar os seus representantes nos postos-chave. Ao contrário dos partidos onde todos se unem para escolher, no conjunto, os companheiros mais experientes, mais provados na vida, mais preparados teoricamente e, inclusive, mais maduros para tratar eventuais desacordos.

Até na época das eleições para postos nos Legislativos e Executivos, cada tendência do partido-frente trata de indicar seus candidatos e, na campanha, empenha-se em favor de seus nomes, em detrimento dos que seriam prioritários para o partido. Aliás, a grande batalha dos agrupamentos minoritários é para impedir que o partido defina prioridades.

É forçoso reconhecer ainda que, embora todas as tendências jurem acatar decisões majoritárias, na prática, quando não há boicote aberto, inclusive com ataques públicos às direções, predomina o “corpo-mole” nos assuntos que não interessam às facções derrotadas.

A existência das tendências consagra, de fato, o direito de os grupos minoritários negarem as deliberações tomadas por maioria – mas sempre, hipocritamente, em nome da democracia!

O militante deve participar concretamente da construção e vida do partido

Para finalizar, resta analisar as acusações raivosas contra a demoníaca concepção leninista do centralismo democrático, tida como autoritária e burocrática, capaz de transformar os indivíduos em simples parafusos de uma máquina gigantesca, manobrada pelas cúpulas dirigentes.
A polêmica em torno da questão tem tamanha importância que motivou a divisão do partido, na Rússia, em mencheviques e bolcheviques, em 1903.

A base da formulação leninista é de que cada militante obrigatoriamente atua em uma organização do partido. Tem o dever de participar da vida partidária, da discussão e elaboração da linha, e da sua aplicação prática.

Lênin situa de maneira muito clara a essência do problema: "Exprimo o desejo que o partido só aceite nas suas fileiras aqueles elementos que admitam, pelo menos, um mínimo de organização”. A tese dos mencheviques, pelo contrário, diz ele, "confunde no partido os elementos organizados e os não organizados (…) os elementos avançados e os incorrigivelmente atrasados, porque os atrasados corrigíveis podem ingressar na organização" (12).

O militante do partido revolucionário deve debater, ter opinião própria, votar, decidir e aplicar as decisões tomadas. E, aí é que está o drama, ter sua atividade controlada e dirigida pela organização a que pertence.

Como o partido é uma organização de homens e mulheres conscientes, adota normas para que o conjunto aplique as orientações discutidas e aprovadas pelo coletivo, visando a realizar os objetivos do conjunto de sua militância.

Claro, em cada situação concreta aparecem discordâncias. Mesmo quando as idéias gerais sobre a sociedade sejam unificadas. Mas são discordâncias localizadas, sobre questões não fundamentais. A única forma de decidir é por votação. E a minoria, democraticamente, em função dos objetivos maiores, comuns a todos, cumpre o que foi deliberado por maioria. Tal tipo de diferença não justificaria a criação de outro partido. Nem a formação das tais tendências organizadas, pois não se trata de oposição sistemática de plataformas conflitantes. No momento seguinte, novos problemas criarão novas maiorias e minorias ocasionais.

Ou seja, em um partido com unidade político-ideológica, não existem maiorias e minorias permanentes. A democracia não é, como na sociedade burguesa, o confronto de situação e oposições. Mas a expressão real, em cada caso e permanentemente, da vontade da maioria.

Não se pode excluir a hipótese de cristalizar, na sequência de problemas concretos, pontos de vista que apontem para divergências sobre questões fundamentais. Nestas situações, é ilusão imaginar que a disciplina se mantenha por muito tempo. Se, através do aprofundamento do debate e da troca de argumentos, as contradições não são resolvidas, é natural que o grupo com pensamento oposto ao do partido se separe. O problema não seria resolvido consagrando a quebra da democracia com o “direito” de cada um fazer o que quer.

Nos partidos comunistas, não se trata de impor por decreto o marxismo-leninismo e a ideologia proletária a pessoas com distintas formas de pensar. Ao contrário, os partidários da teoria científica da classe operária se constituem em partido. A esta organização podem confluir lutadores das mais diversas origens. Desde que manifestem concordância com o pensamento revolucionário, com o programa do partido, e estejam dispostos a atuar numa de suas células, para transformar as idéias em prática. A disciplina é voluntária e consciente. Os que têm outras concepções podem escolher outras organizações ou criar as suas próprias.

Nos partidos burgueses e outros, representantes de camadas intermediárias, os cidadãos aderem formalmente, mas são chamados apenas por ocasião das convenções, para referendar o que os caciques já concluíram previamente. São manobrados por cabos eleitorais, promessas, favores, pequenos benefícios – particularmente nas épocas de eleição. São partidos da ordem. Seus objetivos, de acordo com a correlação de forças entre os diversos segmentos das classes dominantes, no máximo, apontam no sentido de alterações do regime capitalista, visando a adequá-lo ou, como está na moda, modernizá-lo.

O partido não se divide levianamente por diferença eventual de opinião

Um destacamento de combate, capaz de conduzir os oprimidos ao poder e erigir uma sociedade em novas bases, precisa de uma estrutura diferente, apoiada na disciplina consciente de seus membros. Exige direções que representem efetivamente o coletivo e com autoridade para, em cada momento, assegurar que cada parte se oriente de acordo com a decisão do todo. No meio da imensa variedade de correntes políticas, submetido a um intenso bombardeio de concepções burguesas, o partido do proletariado busca sempre métodos adequados para defender a ideologia revolucionária socialista e forjar uma sólida unidade política de suas fileiras. Este partido não se divide levianamente por tais ou quais diferenças de opiniões. Seus militantes, ao contrário, têm o dever de estudar, buscar argumentos e expor os seus pontos de vista. Mas quando se chega a uma deliberação, todos agem unidos, conscientes de que a divisão não permite a ninguém realizar seus projetos.

Lênin dizia com muita ênfase: "O princípio do centralismo democrático e da autonomia das organizações locais significa que a liberdade de crítica é total e geral, quando com isto não se rompe a unidade em determinada ação, e que é inadmissível a crítica visando a debilitar ou impedir a unidade em uma ação decidida pelo partido” (13).

Nos partidos em que a norma fundamental da participação ativa, consciente e organizada dos militantes deixa de ser aplicada, a estrutura se deforma, as direções se afastam das bases e se burocratizam, tendem a se igualar às cúpulas autoritárias das organizações burguesas.

Em nossos dias, o movimento comunista encontra dificuldades em formular respostas adequadas aos novos problemas da realidade. A repetição de velhas fórmulas e a proclamação de princípios desligados da vida conduziram a uma certa perplexidade do proletariado e a grave crise no plano internacional. É neste espaço vazio que as concepções pseudo-modernas tentam desenvolver-se, mesclando socialismo e capitalismo.

O tal sistema híbrido trata sobretudo de esquecer as classes e os interesses de classes que os diferentes sistemas sociais asseguram. Seus ideólogos entoam o canto da sereia de uma solução que interesse a todos, oprimidos e opressores. E anunciam partidos abertos igualmente a todas as contribuições.

Os trabalhadores não poderão construir uma organização capaz de enfrentar o exército político-ideológico burguês se trocarem a ciência social marxista pelo ecletismo teórico, se caírem na armadilha do pluralismo inconsequente e abandonarem a unidade revolucionária.

Numa sociedade dividida em classes, é desastroso pretender um partido à margem das classes ou acima das classes. Não se resolvem os problemas fugindo da realidade. Aos revolucionários, interessa apontar as coisas por seus devidos nomes. Reconhecer as debilidades e os erros cometidos. Interpretar corretamente os novos fenômenos sociais. Encontrar as formulações teóricas e os métodos adequados para forjar um partido coeso, proletário, instrumento afiado para o combate em todos os campos pela liberdade, pelo socialismo e pelo comunismo.

Notas
(1) Voz da Unidade n° 492 – “Teses do PCB”.
(2) Linha Direta – Boletim do Diretório Regional do PT-SP.
(3) LÊNIN, V. I. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo.
(4) LÊNIN, V. I. Desconcerto Exasperado.
(5) LÊNIN, V. I. Discurso sobre o papel do partido no 11° Congresso da IC.
(6) Teoria e Debate n. 4 – Revista do Diretório Regional do PT-SP.
(7) MARX, K. & ENGELS, Friedrich. Resolução da Conferência da Associação Internacional dos Trabalhadores.
(8) PONT, Raul. Da crítica ao populismo à construção do PT, Seriema.
(9) Teoria e Debate n. 4.
(10) Idem.
(11) VÁRIOS AUTORES. E agora PT, Brasiliense.
(12) LÊNIN, V. I. Um passo à frente, dois passos atrás.
(13) LÊNIN, V. I. Liberdade de crítica e unidade de ação.

Bibliografia auxiliar

HOXHA, Enver. Autogestão iugoslava – teoria e prática capitalista.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.
LÊNIN, V. I. Tarefas urgentes do nosso movimento.
__________. Marxismo e revisionismo.
__________. As eleições à assembléia constituinte e a ditadura do proletariado.
__________. O trabalho do partido entre as massa – coletânea de textos, Vitória.
Teoria e Debate, n. 4, 5, 8, 9 e 10.
MOURA, José Barata. Ideologia e prática. Caminho, Portugal.
Princípios n. 18.

EDIÇÃO 19, NOVEMBRO, 1990, PÁGINAS 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29