Após o movimento revolucionário de 1948, um golpe de Estado fez surgir na França o II Império, em 2 de dezembro de 1851, com Luis Bonaparte, o Napoleão III, à cabeça (1). O II Império empenhou-se em levar as fronteiras da França ao nível atingido no I Império e entrou em guerra com a Alemanha de Bismarck. A 2 de setembro de 1870 o exército francês foi derrotado em Sedan e feito prisioneiro, junto com o Imperador. Dois dias depois, em Paris, foi proclamada a República. O exército prussiano marchou sobre a capital. "Nessa emergência” – diz Engels – “o povo consentiu aos deputados de Paris do antigo corpo legislativo que agissem como governo de defesa nacional" (2). O realce a essa tarefa era tal que Marx chega a dizer: "Paris tolerou (esse governo) na condição expressa de ser exercido com o único propósito da defesa nacional" (3). Em função desse objetivo, "todos os parisienses aptos a pegar em armas entraram na Guarda Nacional e foram armados, de modo que os operários formavam agora a grande maioria armada" (4). À frente deste governo de defesa nacional estava, entretanto, Thiers, um capitulacionista, como Chefe de Estado. Mas, como disse Marx, "Paris armada era a revolução armada" (5) e a revolução armada não iria se limitar à defesa nacional, marcharia também para a transformação revolucionária da sociedade!

O governo Thiers logo capitulou frente à Alemanha e quis levar Paris de roldão. Paris reagiu e expulsou da cidade Thiers e seus homens, que se refugiaram em Versalhes. A Comuna foi então proclamada.
A política geral com que a Comuna surgiu tinha assim dois aspectos: 1) a defesa nacional, a não capitulação frente ao exército alemão que cercava Paris e mantinha prisioneiro o antigo exército francês e o ex-Imperador; e 2) o início da construção de uma sociedade nova, expressão dos setores que detinham a força, a classe operária e demais trabalhadores. Na paz ou na guerra, tinha a Comuna que habilitar-se para levar à prática essa política. Seu primeiro decreto suprimiu o exército permanente e substituiu-o pelo povo armado (6). Golpeada foi, assim, a base da opressão: a existência do povo desarmado, por um lado, e de um contingente armado, de outro, sob o comando de quem controla o poder. Mas, na condução da guerra propriamente dita, a Comuna revelou sua maior fraqueza.

Na noite do dia 17 de março, Thiers, ainda em Paris, montou uma operação de sequestro das peças da artilharia da Guarda Nacional estacionadas em Montmartre e Chaumont. Pretendia iniciar o desarmamento geral da Guarda. Entretanto, a madrugada do dia 18 chegou e as forças que deveriam surrupiar os canhões não tinham conseguido tirá-los das íngremes e estreitas ruas dos bairros populares daquelas colinas. O povo percebeu o que se passava e mobilizou-se de imediato. Pelotões da Guarda Nacional foram chamados a Montmartre e Chaumont e o golpe-de-mão foi abortado. Os generais Lecomte e Clément Thomas, que articulavam o roubo, eram inimigos ferozes dos trabalhadores, oficiais detestados pelas suas próprias tropas. Lecomte deu por quatro vezes ordem para que sua tropa atirasse em populares que se manifestavam contra a retirada dos canhões. A tropa não atendeu, Lecomte insultou-a furiosamente. A tropa parou. Tensa – homens do povo mandados a matar irmãos, rebelados contra essa ordem, conscientes de que seriam condenados por terem se recusado a acatar comando do general – a tropa decide: prende Lecomte. Fuzila-o em seguida. E, depois, Clement Thomas também. Logo adere à Guarda Nacional. Thiers, vendo o crescimento vertiginoso das forças da Guarda, na mesma noite do dia 18, decide abandonar Paris e ir a Versalhes. Retira-se com todo o seu pessoal, corpo de funcionários, elementos abastados e mais que isso: com cerca de 20 mil soldados, sem comando e sem disciplina (7), resto de um exército desmoralizado cujo núcleo maior estava preso, longe, pelos alemães.

E aí se consuma o primeiro e mais grave erro da direção da insurreição na Comuna. A Guarda Nacional, que havia distribuído armas para o povo defender a cidade, a essa altura contava com cerca de 300 mil homens (8). Seu estado de espírito era entusiasta. A insurreição começara e começara vitoriosa, crescera, o inimigo fugira desbaratado. E que fez neste instante o Comitê Central da Guarda? Ao invés de lançar-se incontinente sobre as tropas fugitivas para liquidá-las militarmente, o que aconteceria sem maiores problemas, resolveu assentar-se em Paris, que já estava sob controle, e convocar uma eleição! Uma eleição para dentro de oito dias! Ora, iniciada a insurreição, havia ela de "agir com maior determinação e ofensiva" – ensina Engels – e não presentear a tropa que estava sendo derrotada, mas não estava liquidada com uma inesperada e nem mesmo pedida trégua. Firmou-se a orientação "às urnas, não a Versalhes" (9), quando a palavra-de-ordem certa deveria ser "às urnas não, a Versalhes". Um legalismo extemporâneo fez a Comuna nascer condenada…

O governo que se instalou em Versalhes passou celeremente a tomar providências para reorganizar suas escassas tropas e pôr-se à altura do enfrentamento de Paris. Apelos foram lançados às províncias, convocando voluntários. Thiers começou a negociar com o exército alemão a liberdade de seus soldados prisioneiros para guerrear o inimigo comum – os comunardos de Paris. O Comando alemão-prussiano, com Bismarck à frente, percebeu ter o surgimento da Comuna alterado tão radicalmente a situação, que o exército inimigo francês, contra o qual acabara de lutar, derrotar e aprisionar, passara a ser seu aliado inevitável! Bismarck decide ir reforçando Versalhes com prisioneiros libertos até firmar um acordo com representantes de Versalhes, em 10 de maio, pelo qual a França pagaria vultosa indenização de guerra, ao tempo em que Bismarck libertaria o exército cativo, o colocaria à disposição de Thiers, para exterminar Paris (10).

O governo de Versalhes, com a ajuda do Comando alemão, de 19 de março a 2 de abril, preparou um exército de 150 mil homens, com canhões e outros armamentos germânicos (11). A 2 de abril, os versalheses iniciam o assédio a Paris, a guerra de desgaste, atacando pontos separados da cidade, até 21 de maio, quando entram na capital. Os 57 dias de guerra civil foram terríveis, a semana final fiou conhecida como a semana sangrenta.

A Comuna tinha um instrumento de contato com o povo – o affiche, espécie de comunicado oficial distribuído ou fixado em diferentes pontos da cidade. O affiche do dia 2 de abril dá apenas a notícia: Paris foi atacada. E curto e grosso. "Houve mortos e feridos". "(…) nosso dever é defender a grande cidade" (12). O do dia 6 é longo, chamativo: "Trabalhadores não vos enganeis: é a grande luta, é o parasitismo e o trabalho, a exploração e a produção que se encontram em guerra". O seu cunho social é realçado: "Se estais cansados de vegetar na ignorância e de estagnar na miséria; se quereis que vossos filhos sejam homens, possuindo o lucro de seu trabalho (…); se não quereis que vossos filhos (…) sejam instrumentos de prazer nos braços da aristocracia do dinheiro; (…) se quereis, enfim, o reino da justiça, trabalhadores, sede inteligentes, de pé!"

Paris, por essa época, tinha cerca de 2 milhões de habitantes. A 21 de maio a cidade é invadida. O affiche de 22 é pungente. O chamamento é à guerra popular: "Às armas. Que Paris se encha de barricadas e que lance ainda aos inimigos o seu grito de guerra, de orgulho, de desafio (…) Que as ruas sejam todas despavimentadas; primeiro porque os projéteis inimigos caindo no chão são menos perigosos; depois porque as pedras (…) deverão ser acumuladas (…) sobre os andares superiores das casas". A concepção de guerra popular revolucionária já estava presente nessa síntese: "Paris fez um pacto com a morte. Por trás de seus fortes, ela tem muros; por trás de seus muros, barricadas, casas". Mas o avanço das tropas de Versalhes era inexorável. Seus fuzilamentos intensificaram-se a combatentes, prisioneiros e inocentes. No terceiro dia da semana sangrenta, o Hotel de Ville (Câmara Municipal), sede da Comuna, é abandonado. As chamas consomem aquilo que foi um palácio popular. As posições dos comunardos vão caindo uma a uma, o fim está próximo.

O Cemitério Pére Lachaire, no dia 27 de maio, é palco da derradeira e significativa cena da grande festa. Os últimos sobreviventes daquela posição travam renhida batalha dentro do cemitério, contra forças superiores. Protegem-se atrás de túmulos de franceses célebres. E, de recuo em recuo, terminam levados a um muro do cemitério, onde são sumariamente fuzilados. É o "muro dos federados", marco final da Comuna, único que permanece até hoje, em memória da Comuna, em Paris!

A condução da guerra, por parte dos federados, enfrentou outros importantes problemas. Começava pela dificuldade geral de comando. Poucos oficiais superiores tinham experiência prática de guerra em campo mais amplo. Alguns conheciam táticas de insurreição, de luta de rua, de agitação política. Havia certa indecisão, problemas com a unidade da direção militar e com a disciplina na guerra.

Logo após o ataque do dia 2 de abril a Paris, 40 mil homens, em diversas colunas, saem da capital em direção a Versalhes. O forte de Mont Valérien, que se supunha neutro, atira contra os federados. Versalhes contra-ataca. Os guardas nacionais recuam em desordem. Flourens, um membro da Comuna, e o general Duval são presos e massacrados pelos versalheses. As atrocidades das forças de Versalhes eram tais que a Comuna resolve editar um decreto que, no seu artigo 5o, diz: "Toda execução de um prisioneiro de guerra ou de um adepto do governo regular da Comuna de Paris será imediatamente seguida pela execução de um número triplo de reféns". Após esse decreto, Thiers suspendeu a execução sumária por algum tempo. Contudo, logo que percebeu que o decreto não era aplicado, "a execução de prisioneiros em massa foi retomada e prosseguida ininterruptamente até o fim" (13).

Os problemas com a unidade de direção militar e com a disciplina de guerra aparecem, seja pelos organismos novos de poder criados, e que não tinham estabelecido ainda uma linha de decisão determinada, seja pelas características mescladas que a guerra tinha, por um lado, clássica, choque entre exércitos e, por outro, social, de classe. Com a rebelião de 18 de março, começou a mandar o Comitê Central da Guarda. Depois da eleição da Comuna, a Comissão Executiva da Comuna aparece mandando também. Mais à frente cria-se o Comitê de Salvação Pública, também com poder. Tudo isso gerando um quadro em que o comando militar fica confuso. No início de maio, um novo comandante é nomeado para dirigir a guerra, um militar de formação profissional rígida, brilhante artilheiro, Rossel.

Não era político nem teórico: "Ignoro o que será a ordem futura do socialismo, mas será melhor que a sociedade que estamos prestes a deixar" é uma das suas tiradas (14). Poucos dias após, Rossel renuncia, deixando carta explicativa e reveladora de que não conseguira, com sua formação clássica, entender as características populares daquela guerra, mas que, tampouco, concordava com a dispersão de comando e com a indisciplina. "Não posso seguir assumindo responsabilidades onde todos deliberam e ninguém obedece" (15) escreveu em sua carta.

A semana final da guerra, chamada de semana sangrenta, assim como o período de perseguição que se seguia ao fim da Comuna, é uma página de horror e barbárie escrita pela burguesia francesa em um nível talvez sem paralelo na história da humanidade. O horror ultrapassou toda medida. O terror imperou sem restrições. Matadouros humanos foram instalados em inúmeros locais de Paris, administrações municipais, escolas, hospitais, terrenos baldios. Os prisioneiros eram submetidos a vexames atrozes. Os relatos são aterradores.

A Comuna fuzilou menos de 90 pessoas (espiões, provocadores, reféns). As tropas de Versalhes perderam aproximadamente 873 oficiais e soldados, tiveram 5.990 feridos. Na semana sangrenta, 30 mil pessoas foram mortas pelas tropas de Thiers, 45 mil presas, das quais 19 mil libertadas por não terem absolutamente nada com a Comuna, 4 mil deportadas e cerca de 20 mil fuziladas (16). O Times, de Londres, faz referência ao "odor pestilento da cidade" e a "um veio vermelho que se arrasta e desenha formas caprichosas pelo Sena". Era o vermelho sangue dos insurretos.

Uma última observação. A Comuna não se desenvolveu em torno de um grande homem. Tampouco foi um golpe dirigido por um chefe destacado. Também não durou tempo capaz de permitir a afirmação das lideranças maiores. Por isso não se vincula a nomes muito conhecidos. Mas, como não há história sem personagem e não há heroísmo sem heróis, citemos aqui alguns membros da Comuna de Paris, heróis da França e da humanidade: Meline, Lefrançais, Arthur Arnoult, Amouroux, Jourde, Varlin, Rigault, Rane, Vaillant, Pyat, Fortune Henry, Delercluze, Euder, Jules Vallés, Billioray, Blanqui (eleito preso e preso até o fim), Clément, Ferré, Pascal Grousret, Vermorel, Bergeret, Flourens.

Haroldo Lima é líder do PCdoB na Câmara dos Deputados.

Notas
(1) Sobre o assunto Marx escreveu o 18 Brumário de Luis Bonaparte.
Chamava esse golpe de "segunda edição do 18 Brumário", numa alusão jocosa ao golpe do 18 de Brumário (9 de novembro de 1799 dado por Napoleão Bonaparte, que criou o I Império).
(2) ENGELS, F., prólogo da Guerra Civil na França, Obras, edição citada, tomo 2, p. 199.
(3) MARX, K. Guerra Civil na França, Obras, edição citada, p. 220.
(4) ENGLES, F., obra citada em (9), p. 199.
(5) MARX, K., obra citada, p.. 221.
(6) MARX, K. Guerra Civil na França, obra citada, p. 240.
(7) LUGUET, P. A Comuna de Paris, Laemmert, p. 24.
(8) MARX, K. Guerra Civil na França, obra citada, p. 231.
(9) GONZÁLEZ, Horácio. A Comuna de Paris, Brasiliense, 1981, p. 72.
(10) MARX, Karl. Guerra Civil na França, obra citada, p. 255.
(11) MELO, Clóvis. A Comuna de Paris, Obra citada, p. 260.
(12) Todas as citações de decretos etc. são do livro A Comuna de Paris, Laemmert.
(13) MARX, Karl. Guerra Civil na França, obra citada, p. 236.
(14) GONZÁLEZ, Horácio. A Comuna de Paris, Obra citada, p. 73.
(15) GONZÁLEZ, Horácio. A Comuna de Paris, Obra citada, p. 74.
(16) Números cotejados entre DUNOIS, A. A Comuna de Paris e GONZÁLEZ, Horácio. A Comuna de Paris, obra citadas.

BIBLIOGRAFIA
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EDIÇÃO 21, MAI/JUN/JUL, 1991, PÁGINAS 37, 38, 39