Uma das razões pelas quais o livro do alemão Robert Kurz, publicado no Brasil no final do ano passado, causa sensação é porque é escatológico. Sim, o autor de O Colapso da Modernização – da Derrocada do Socialismo de Caserna à Crise da Economia Mundial (Paz e Terra) anuncia para breve, nada mais, nada menos, do que o fim deste mundo. Na verdade, fim do mundo e da modernidade historicamente erigidos pelo que ele chama de “sistema produtor de mercadorias baseado no trabalho abstrato”.

A obra de Kurz não trata propriamente de assuntos novos. O colapso do capitalismo, por exemplo, foi um dos temas mais debatidos pelos marxistas, desde o final do século passado até, pelo menos, a década de 1970 (1). Nem mesmo é novo o enfoque pelo qual ele aborda a derrocada dos países do Leste Europeu, considerando-os como “capitalistas de Estado” (2). Original foi o momento que ele escolheu – pouco depois da derrubada do muro de Berlim e do anúncio do “fim da História” e da “vitória definitiva do neoliberalismo” – para lançar O Colapso da Modernização – da Derrocada do Socialismo de Caserna à Crise da Economia Mundial contendo três previsões que não deixam de ser surpreendentes. A primeira: o futuro dos países antes chamados socialistas não é suposta bonança dos países capitalistas centrais, mas a miséria do Terceiro Mundo. A segunda: os países capitalistas centrais serão os próximos a ser atingidos pela mesma catástrofe responsável pela derrocada do Leste. A terceira: o que está em crise, e a caminho da derrocada final, é o capitalismo como sistema mundial. O qual deverá ser substituído por um sistema econômico cuja lógica não mais será a produção de mercadorias baseada na exploração do “trabalho abstrato”: o comunismo.

Ninguém no Brasil tinha ouvido falar de Robert Kurz até maio do ano passado, quando o professor Roberto Schwartz publicou uma resenha de seu livro na Folha de S.Paulo. Sabe-se que Kurz é um autodidata e que trabalhava como motorista de táxi. Ele não se diz e dele não se pode dizer, a rigor, que seja um marxista. Embora, as suas principais teses sobre o colapso do capitalismo estejam baseadas na teoria do trabalho abstrato de Marx, ele próprio faz questão de rejeitar a teoria da luta de classes. Para o autor alemão, o movimento operário estaria prisioneiro da idéia de que as classes foram ontologicamente criadas, idéia esta derivada da razão subjetiva da burguesia iluminista, sendo assim, incompatível com a própria crítica que Marx faz da economia política. Afirma ele:

“Sem dúvida, revela-se aqui um dilema até hoje insuperado no centro da teoria de Marx. A afirmação do movimento operário, por parte de Marx, que nas expressões de movimento dos ‘trabalhadores’, ‘posição do trabalhador’, ‘posição de classe’ etc. atravessa toda sua obra, é na verdade inconciliável com sua própria crítica da economia política, que desmascara precisamente aquela classe trabalhadora não como categoria ontológica, mas sim como categoria social constituída, por sua vez, pelo capital” (p. 71).

Se não aceita a teoria da luta de classes, evidentemente Kurz não vê sentido na constituição de movimentos ou partidos por parte da classe operária para superar o atual sistema. Embora não descarte a possibilidade de haver revoluções, ele acha que não “serão daquele tipo no qual uma ‘classe’ dentro da forma-mercadoria (e constituída por esta) tivesse que ‘derrotar’ outra ‘classe’, como sujeito antípoda. A possível violência resultaria unicamente do fato de que um sistema louco e perigoso para a humanidade não será abandonado voluntariamente por seus representantes (os executivos, a classe política, e o aparato de administração e de emergência)” (p. 233). Para usar um jargão, diga-se que Robert Kurz tem uma visão muito determinista do colapso do capitalismo, que é gerado, segundo ele, no interior de suas próprias engrenagens.

Defeitos, o livro tem muitos. Os mais graves estão justamente na pretensão muito germânica que o autor tem de “filosofar”, mesclando conceitos do marxismo com outros de diversas fontes. Certamente influenciado pelas temáticas da Escola de Frankfurt – a “Teoria Crítica”, no entanto, é duramente criticada por ele –, Robert Kurz parece estar familiarizado com o estilo de Theodor Adorno, cujas “formulações provocadoras” e “exageros surpreendentes” faziam o charme de seus textos. Polemista iconoclasta, ele realmente exagera, lança provocações, questiona sem cerimônias as mais diversas correntes políticas e filosóficas. O Colapso da Modernização não deve deixar de ser lido por causa de seus defeitos, todavia, desprezíveis diante de seu grande mérito: o de chamar a atenção dos marxistas revolucionários para a necessidade de conhecerem melhor as causas da derrocada dos países do Leste Europeu e de recolocarem problemas cruciais da teoria do socialismo científico, como a questão do “trabalho abstrato”, há muito ausente de nossa agenda de debates.

Vamos abrir um rápido parêntese para relembrar o que é trabalho abstrato. Marx, logo no primeiro capítulo de O Capital, ao estudar o conceito de mercadoria, ensinou que o trabalho representado nas mercadorias tem um duplo caráter:

“Todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho do homem no sentido fisiológico, e nessa qualidade de trabalho humano igual ou trabalho humano abstrato gera o valor da mercadoria. Todo trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de trabalho do homem sob forma especificamente adequada a um fim, e nessa qualidade de trabalho concreto útil produz valores de uso” (3).
Em inglês, como assinalou Engels em nota à 4ª edição de O Capital, existem até duas palavras diferentes para designar esse duplo caráter de trabalho: “work” é o trabalho que gera valores de uso, e é qualitativamente determinado; “labour”, por sua vez, é o trabalho que cria valor, e é medido apenas quantitativamente (4).

Esta questão, segundo Marx, é essencial para a compreensão da Economia Política, muito embora seja uma das mais controvertidas entre os próprios marxistas. O trabalho em geral refere-se ao metabolismo entre o homem e a natureza, ou seja, as diversas maneiras pela qual o homem transforma a natureza em seu proveito. Trata-se, portanto, de uma categoria humana natural, que existiu, existe e existirá em qualquer tipo de sociedade. O “trabalho abstrato”, em contrapartida, é uma categoria social e histórica, plenamente desenvolvida, apenas, no capitalismo. Diz Marx:

“Essa abstração do trabalho é apenas o resultado de uma reunião concreta de diferentes gêneros de trabalho. A indiferença para com o gênero de trabalho corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos facilmente passam de um gênero de trabalho para outro, o que torna sem importância para eles qual a forma particular de trabalho que lhes pode caber. O trabalho torna-se, então, não só categoricamente, mas realmente, um meio de criar riqueza em geral, ao invés de crescer juntamente com o indivíduo para uma finalidade específica. Esse estado de coisas teve seu desenvolvimento máximo na mais moderna das sociedades burguesas, os Estados Unidos. Somente ali a abstração da categoria ‘trabalho’, ‘trabalho em geral’, trabalho sans phrase, o ponto de partida da moderna Economia Política, torna-se realizada na prática” (5).

O trabalho abstrato, então, é o “sangue e a linfa” do Capital, é a substância do valor que, ao ser realizado no momento da troca de mercadorias no mercado, transforma o trabalho privado, individual, que as produziu, em trabalho social. Outras de suas características interessantes: não é o trabalho abstrato que utiliza os meios de produção, mas são os meios de produção que utilizam o trabalho. Justamente por isso, os homens, sob o capitalismo, são dominados por “coisas”, são vítimas do “fetiche das mercadorias”, vítimas de categorias econômicas que escondem sob um véu fetichista as suas relações sociais, as relações de exploração dos trabalhadores pelos capitalistas (6).

Robert Kurz parte dessas noções, embora sem preocupar-se em destrinchá-las mais extensamente, apresentando-as numa linguagem empolada, “filosófica”, para contestar a idéia de que o colapso dos países do Leste Europeu, “as economias de comando estatista”, tenham sido derrotadas pelas potências ocidentais. O que ali ocorreu, diz ele, foi o colapso interno, de modelos de “sociedade de trabalho”, o mesmo fundamento sobre o qual estão baseados os países capitalistas centrais.

Naqueles países, sustenta ele, não teria ocorrido nenhuma revolução socialista, mas sim uma revolução burguesa de “caráter recuperador” (relativamente ao tempo perdido e à industrialização já realizada pelas potências da época), o que, aliás, explicaria o seu rigor disciplinar, militarização etc.
Kurz acusa o movimento operário e mesmo Lênin de não levar em conta a crítica de Marx ao “trabalho abstrato”, que seria visto apenas em sua “reflexão positiva, de forma estranhamente vaga e nebulosa, e não definido como conceito, nas expressões ‘contabilidade econômica’ e ‘mecanismo da direção social da economia’, em conexão demasiadamente direta com a ‘última palavra técnica baseada no grande capital’ e a ‘ciência mais moderna’ e, por fim, simplesmente como ‘organização estatal planejada’. E arremata: “A todos esses conceitos está inerente uma compreensão quase ingênua e cega frente à lógica do capital, que na linguagem atual chamaríamos de social-tecnológica” (p. 49).

Ele não aceita também a oposição entre “Estado” e “mercado”, para analisar as sociedades de tipo soviético. Ressalta que as economias ocidentais, também, sempre recorreram ao mercado e que a alternância de um e outro, em tempos de crise, sempre se acelerou. A restrição dos mecanismos típicos de mercado nos países do socialismo real, porém, teria, segundo ele, provocado efeitos negativos tanto na qualidade dos produtos como no crescimento da produtividade. A crise econômica se acentuou naqueles países e determinou que eles entrassem num beco sem saída, porque, participando do mercado mundial, eles já não tinham condições de competir com os seus parceiros – bem mais produtivos.

O extraordinário aumento da produtividade, gerado pela “força produtiva ciência”, aliás, é destacado como a principal causa da crise do “sistema produtor de mercadorias mundiais”.
A catástrofe que os ex-países socialistas estão vivendo hoje, diz Robert Kurz, catástrofe de cunho econômico, social, ecológico etc, é a mesma que vitimou países do Terceiro Mundo, como Brasil e Índia, e é, também, a mesma que já corrói as periferias dos países capitalistas centrais, pronta para atingir os seus próprios núcleos dinâmicos. Kurz de fato é apocalíptico, mas é preciso reconhecer que ele descreve um apocalipse já ocorrido há muito tempo nos países que já se constituíram em “casos sociais mundiais”, como a Somália, e que está se estendendo pelo mundo afora, invadindo até mesmo os últimos bastiões do capital.

Sobre os povos excluídos, aqueles já chutados para fora do sistema, e dos quais já 18 milhões de pessoas perambulam pelo mundo à procura de asilo em países estrangeiros (7), diz Kurz:
“O que hoje faz sofrer as massas do Terceiro Mundo não é a provada exploração capitalista de seu trabalho produtivo, conforme continua acreditando, de acordo com a tradição, a esquerda, mas sim, ao contrário, a ausência dessa exploração. (…) A maioria da população mundial já consiste hoje, portanto, em sujeitos-dinheiro sem dinheiro, em pessoas que não se encaixam em nenhuma forma de organização social, nem na pré-capitalista nem na capitalista, e muito menos na pós-capitalista, sendo forçadas a viver num leprosário social que já compreende a maior parte do planeta” (p. 194 e 195).

O quadro é ainda muito pior, porque já surgiram respostas bárbaras à barbárie gerada pelo capitalismo, a exemplo dos países que abraçaram o fundamentalismo islâmico, os que são dominados por máfias de drogas ou as repúblicas pós-catastróficas do Leste Europeu, armadas até os dentes (com ogivas nucleares!). “Mesmo depois de desfazer-se de qualquer ideologia alternativa dirigida a determinado fim, poderia acontecer ali, se prosseguir a depauperação e crescer a desesperança, que generais golpistas ou chefes da máfia assumam integral ou parcialmente o poder, metam as mãos em armas intercontinentais e iniciem com elas manobras de chantagem. Poderiam apresentar o argumento tão simples quanto cínico de que os foguetes e as bombas atômicas seriam as únicas coisas que ainda funcionariam em seu país”.

Os governos dos países centrais, é claro, não ficarão de braços cruzados. Armarão aparatos estatais de emergência para tentar conter os focos de incêndio. Instalando, por exemplo, uma polícia mundial, para ações como o ataque ao Iraque de Sadam Hussein. A perspectiva que se coloca, diz Kurz, não é a de uma paz eterna, mas sim, a de uma guerra civil mundial!

Como combater a catástrofe que nos ameaça? Robert Kurz diz não dispor de uma cartola de onde pudesse tirar respostas. Seria preciso, diz ele, romper com a “lógica imanente do dinheiro”, mas para isso, não se pode contar com as “administrações estatistas de crise e emergência”. Seria preciso garantir, pelo menos, o concurso da “crítica social” (a intelectualidade? a esquerda?) que, no entanto, corre o risco de, após “perder toda orientação prática e teórica, (oferecer-se) aos aparatos de emergência como fornecedora de legitimação, suprimindo assim a si mesma na função de crítica social, em vez de suprimir a economia fetichista” (p. 225).

Kurz entende que a “crítica social radical, renovada e praticada no apogeu da crise do sistema produtor de mercadorias, teria que se emancipar completamente de suas idéias anteriores, já obsoletas”. Porque, segundo ele, a situação totalmente modificada da sociedade mundial não permitiria que a crise sequer fosse identificada com os antigos recursos da crítica. Em resumo, ele caracteriza assim tais modificações:

“a) Tendencialmente, o capitalismo tornou-se ‘incapaz de explorar’, isto é, pela primeira vez na história capitalista está diminuindo, também, em termos absolutos – independentemente do movimento conjuntural – a massa global do trabalho abstrato, produtivamente explorado, e isso em virtude da intensificação permanente da força produtiva.

EDIÇÃO 29, MAI/JUN/JUL, 1993, PÁGINAS 79, 80