Para o Marxismo, a práxis (categoria medular do materialismo dialético) é um conceito que permite superar de forma materialista todas essas dualidades que, implícita ou explicitamente, manipulam os modernos métodos de enfrentar o problema do imaginário e sua relação com o real.

“Entre as formas fundamentais da práxis temos a atividade prática produtiva, ou a relação material e transformadora que o homem estabelece – mediante seu trabalho – com a natureza. Graças ao trabalho, o homem vence a resistência das matérias e forças naturais e cria um mundo de objetos úteis que satisfazem determinadas necessidades” (Sanchez Vasquez, 1967, p. 160).

Mas enquanto o homem vence a resistência da matéria e cria para si um mundo de objetos humanizados, ele transforma a si próprio, se re-humaniza ou se encontra em um constante processo de humanização cujo sentido final, como indivíduo, depende de sua própria atividade práxica (1).

“Diferente da ciência, a arte visa a que o sujeito se afirme no objeto artístico”.

Esta dupla característica transformadora da atividade práxica, ou seja, como agente de transformação da natureza em cultura e como processo de transformação do homem como espécie humana, apaga as outras fronteiras metafísicas que se levantaram em torno da dialética do sujeito e do objeto.
“Na assimilação artística o homem desenvolve toda a potência de sua subjetividade, de suas forças humanas como indivíduo que, por sua vez, faz parte de uma comunidade, ou seja, como ser social. Enquanto a ciência tende a apagar a marca do sujeito no objeto científico, a arte pretende que o sujeito se afirme no objeto artístico” (Sanchez Vasquez, 1962, p. 6).

A práxis como atividade humana transformadora não se esgota em uma atividade puramente prática (no sentido corrente do termo) que permita ao homem transformar a natureza para satisfazer suas necessidades, ela alimenta um processo de contínua humanização da natureza e autotransformação do homem no processo mesmo da práxis.

O trabalho, que é a forma fundamental da práxis, contém um duplo sentido expresso por Marx nas Teses sobre Feuerbach: “O defeito fundamental de todo materialismo anterior – incluído o de Feuerbach – é que ele só concebe as coisas, a realidade, a sensorialidade, sob a forma de objeto ou contemplação, mas não como atividade sensorial humana, não como prática, não de um modo subjetivo. Daí que o lado ativo fosse desenvolvido pelo idealismo em oposição ao materialismo, mas só de um modo abstrato, já que o idealismo, naturalmente, não conhece atividade real, sensorial, como tal. Feuerbach quer objetos sensoriais realmente distintos dos objetos conceptuais, mas ele não concebe a própria atividade humana como uma atividade objetiva. Por isso, na Essência do Cristianismo só considera a atividade teórica como autenticamente humana, enquanto concebe e fixa a prática apenas em sua forma judaica de manifestar-se. Portanto, não compreende a importância da atuação revolucionária, prático-crítica” (2) (Marx, O. E., p. 24).

O trabalho, portanto, é uma atividade humana essencial, que nos revela de maneira objetiva a riqueza subjetiva do pensamento humano, seja em sua manifestação mais clara e transparente, tal como se dá na atividade produtiva propriamente dita (transformação da natureza para a satisfação de suas necessidades materiais), seja na criação das instituições sócio-culturais e políticas, que permitem a conservação ou a transformação das condições sócio-econômicas necessárias para a sobrevivência e o desenvolvimento do gênero humano.

Essa espécie de retorno objetivo da subjetividade humana através da práxis nos permite atingir os extratos mais recônditos da consciência, partindo não da consciência em si mesma como uma coisa dada (ponto de partida do idealismo), mas como produto ou acumulação dialética de milhões e milhões de atos práxicos, que a humanidade, em seu conjunto, realizou ou realiza continuamente ao longo de todas as gerações. E a materialização destes infinitos atos práxicos que a humanidade conseguiu realizar em toda a sua existência é o que nós conhecemos com o nome genérico de cultura.

“Consciência do artista e do indivíduo comum se move nas turbulentas águas da cotidianidade”.

É absolutamente óbvio que dos infinitos atos práxicos, que todos os humanos realizaram e realizam em sua existência concreta como indivíduos, só alguns puderam materializar-se concretamente em objetos culturais, permitindo sua preservação histórica. Mas estes poucos objetos culturais, que na realidade são infinitos – posto que o universo fático dos atos práxicos, no curso da milenária idade do gênero humano, se amplia e reproduz constantemente em cada indivíduo humano existente – de fato são as únicas manifestações concretas e sensíveis da consciência humana. Portanto, são os únicos veículos objetivos mediante os quais podemos atingir cientificamente os labirintos da consciência humana como uma totalidade.

Dos múltiplos e infinitos objetos culturais que existem e se reproduzem na sociedade capitalista (cuja marca fundamental, do ponto de vista práxico, é o trabalho alienado), o objeto artístico é o produto cultural que se acha mais livre da alienação capitalista, é a mercadoria que tem suportado mais os embates da divisão social do trabalho e, portanto, é o produto que menos confronta seu produtor (no estrito sentido da degradação das condições de existência do produtor) (3); por outro lado, ao valorizar-se o produto de um artista, ele mesmo, como artista, também se valoriza socialmente e se converte em uma celebridade (4). Por conseguinte, o objeto artístico pode ser considerado, dentro da sociedade capitalista, como a materialização de um trabalho não alienado ou, pelo menos, diferente da forma direta como o operário sofre a alienação capitalista. Portanto, o trabalho artístico é uma atividade práxica que obriga o artista a entregar-se total e livremente a seu produto. Se bem que as motivações mais íntimas do artista para essa entrega total a seu produto podem variar de acordo com as circunstâncias históricas que vive cada artista como indivíduo.

A motivação fundamental de todo artista se encontra marcada pela reação sui generis (dentro de um regime de propriedade privada) que se estabelece entre o produtor e seu produto, entre o artista e o seu objeto artístico. Esta relação, por assim dizer, mais ou menos desalienada entre o produtor e seu produto, nos permite considerar o trabalho artístico como uma atividade onde o homem está obrigado a colocar todas as suas fibras materiais e intelectuais para criar e produzir seu objeto artístico. Por conseguinte, como a materialização de um objeto cultural, no qual se sintetiza com maior força a consciência ou subjetividade humana como uma totalidade objetiva, o objeto artístico se converte no portador mais fidedigno dessa consciência totalizadora e, portanto, é o objeto quimicamente mais puro onde se reproduz materialmente o caráter sincrético do pensamento cotidiano.

Esta reflexão sobre a consciência – tomada como uma totalidade e relacionada com o trabalho humano, ou melhor, ligada à práxis – nos obriga a reconsiderar os hábitos racionais que nos levam a focalizar o problema da consciência de uma forma unilateral e a enfrentar o problema da consciência sem perder de vista a unidade de suas múltiplas determinações, ou seja, como uma concretude.
Tomar a consciência como uma concretude significa desprezar aquelas concepções puristas que a consideram como um ente não contaminado pelo mundo cotidiano, sem vinculação com a conduta cotidiana, que é, em último caso, o lugar onde se manifesta com maior consequência a unidade da complexidade de nossa consciência.

Tanto a consciência do artista como a do indivíduo comum se movem dentro das turbulentas águas da cotidianidade, nada escapa dela (nem sequer o cientista fechado em seu laboratório), e por isso mesmo, os embates sociais e políticos se produzem com o fim de modificar ou manter essa cotidianidade. Mas o artista, diferentemente do indivíduo comum, se nutre inexoravelmente da cotidianidade e é muito mais permeável ao conjunto das pressões psicológicas e sociais que fluem constantemente à sua volta, e a partir delas formula um juízo estético por intermédio de um veículo material onde se condensa e expressa seu próprio ponto de vista sobre a sociedade. Um ponto de vista que, ademais, não pode deixar de ser a expressão social de algumas das ideologias em conflito. Por conseguinte, quando o artista cria uma obra de arte, nela põe toda a sua força espiritual e material, está revelando, queira ou não, sua consciência individual como uma totalidade.

Materialidade da obra artística é carregada de um modo pessoal de ver o mundo.

Tal é o significado da seguinte frase do mestre Cesar Vallejo: “O poeta socialista não deve sê-lo unicamente no momento de escrever um poema, mas em todos os seus atos, grandes e pequenos, internos e externos, conscientes e subconscientes e até quando dorme e quando se equivoca e se trai voluntária ou involuntariamente e quando se corrige e quando fracassa” (Farias, 1987, p. 298). Assim, pois, o verdadeiro artista se manifestará, mais que por suas opiniões políticas ou por qualquer outra coisa, pelas qualidades de suas obras, já que através delas nos transmite e condensa, à margem dos domínios das técnicas de execução e dos estilos, toda a sua intimidade espiritual e sua particular concepção do mundo como uma totalidade objetivada.

Mas este mundo espiritual íntimo do artista é, por um lado, em uma sociedade de classes, a manifestação consciente ou inconsciente de uma determinada ideologia de classe e, por outro, a compreensão de uma determinada visão de mundo que só pode ser transmitida socialmente através da matéria. Neste último sentido, o artista é um artesão, um fazedor, e é na fisicalidade (ou na sua manifestação sensível) da obra, onde plasma realmente esse amálgama espiritual, que o artista pretende transmitir socialmente. De modo que nós consideramos como uma premissa básica para a investigação da linguagem cinematográfica, o objeto artístico como a materialização efetiva da consciência total do produtor e/ou produtores. Materialização que significa a concentração de uma visão de mundo contida em uma forma material da milenária práxis humana e que é constantemente atualizada e personificada no fazedor, no artista. Por isso, quando falamos da materialidade da obra artística a assumiremos como uma materialidade carregada de uma subjetividade ou de um modo pessoal de ver o mundo, mas também de um modo pessoal que não pode desligar-se dos conflitos sociais e ideológicos da sociedade em que vive.

Finalmente, essa materialidade é também produto de um determinado estado de desenvolvimento histórico social, portanto, essa materialidade possui em si todos os aportes técnico-científicos que o entorno social facilita ao fazedor. Assim, as limitações e possibilidades do artista estão em proporção direta com os avanços tecnológicos que a humanidade conseguiu acumular ao longo de sua história e é a prerrogativa de o fazedor proceder a sua utilização. Essa verdade é particularmente evidente no mundo atual, pois o capitalismo em seu afã e necessidade de expandir seus mercados, praticamente universalizou o consumo de certas tecnologias e isto explica, em parte, nossa contraditória e complexa produção estética. Um universo artístico onde convivem a quena e a música cibernética, o teatro e a dança popular com a televisão, o casebre e o arranha-céu etc.

Esta complexa realidade nos obriga a criticar e repensar aquelas categorias estético-filosóficas que contribuíram e contribuem para isolar em modelos totalmente estreitos o amplo espectro que configura nossa produção artística nacional. Nesse sentido, o presente trabalho aspira a ser uma pequena contribuição que permita ampliar as fronteiras conceptuais de uma estética genuinamente democrática e popular e, sobretudo, pretende evidenciar – dentro de suas limitações – a riqueza conceptual multilateral do materialismo dialético como instrumento universal do conhecimento humano e desta forma dar uma contribuição à multilateral resposta marxista-leninista à atual cantilena anticomunista da burguesia internacional.

* Tradução de Maria Motter, professora da ECA-USP e Roseli Fígaro, jornalista e mestranda na ECA-USP.
** Peruano, cineasta, já publicou Cinegramas, Lima, 1992.

NOTAS

(1) Temos preferido utilizar o termo práxica em lugar de prática porque a significação corrente desde último termo remete a uma série de imprecisões que queremos evitar. Ainda que o conceito de práxis pressuponha em si uma atividade humana, não nos parece inoportuno redundar no significado do termo e falar de uma atividade práxica para acentuar o caráter dinâmico e transformador do conceito.
(2) Esta tese de Marx, muitas vezes citada e lida, tem sido mesquinhamente mutilada e interpretada com fim puramente político que, sem ser legítimo, reduz grosseiramente os alcances filosóficos e humanistas do materialismo dialético.
(3) “O operário se empobrece tanto mais riqueza produz, quanto mais aumenta a sua produção em extensão e em poder. O operário se converte em uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadoria produz. À medida que se valoriza o mundo das coisas se desvaloriza, em razão direta, o mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadoria, ele produz, também, a si mesmo e produz o operário como mercadoria e, ainda, na mesma proporção em que produz mercadoria em geral”.

“O que este fato expressa é, somente, o seguinte: o objeto produzido pelo trabalho, seu produto, com ele como algo estranho, como poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se plasmou, materializado em um objeto, é uma objetivação” (Marx, 1966, p. 63).
(4) Não obstante, isto não significa que o artista não sofra nenhum tipo de degradação. Já que o capital só valoriza aquelas mercadorias sui generis (que carregam uma marca ideológica indelével) se elas acatam submissamente suas premissas ideológicas. Portanto, o artista, dentro de uma sociedade capitalista, se sente constantemente pressionado pelo poder do capital, no sentido de acatar submissamente suas premissas ideológicas, degradando assim sua riqueza espiritual humanística e escondendo o desdobramento de sua subjetividade ao mesquinho mundo do individualismo radical.

Bibliografia

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FARIAS, Victor. “La estética de César Vallejo. El arte y la revolucion”, en: Tierra Adientro, julio, n. 4, Ediciones La Fragua, 1987.
GRAMSCI, Antonio. Introdución a la Filosofia de la Praxis, Editorial Fundamentos, Madrid, 1980.
LEVI-STRAUS, Claude. El pensamiento selvaje, Fondo de Cultura Econômica, México, 1972.
MARX, Karl. Marx e Engels. Obras Escogidas, Vol. I, Editorial Progresso, Moscou, s.d.
Escritos econômicos vários – Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844, Grijalbo, México, 1966.
SANCHEZ VASQUEZ, Adolfo. Filosofia de la práxis. Grijalbo, México, 1967.
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EDIÇÃO 30, AGO/SET/OUT, 1993, PÁGINAS 53, 54, 55, 56