Comunidade de Estados Independentes; socialismo real; Estados Unidos, xerifes do mundo; fim da história; fim das ideologias; crise dos países do Terceiro Mundo. Expressões como essas e muitas outras habitam os meios de comunicação. É a gestação de um mundo novo, que acompanhamos a cada passo, sem saber precisamente se os acontecimentos divulgados pela mídia são efetivamente os que estão balizando essa reconstrução. Ou se são tão somente os que foram escolhidos para influenciar nossa análise, desviando-a, com o objetivo de alicerçar nosso engajamento numa determinada opção que, evidentemente, redundará em benefício de uma ou de outra postura na construção dessa nova realidade.

A comunicação joga papel importante na construção/reconstrução do mundo. E, nesse campo da comunicação, que se constitui a partir de discursos que se entrecruzam, a linguagem verbal ocupa espaço privilegiado. Entendemos, portanto, a comunicação como um discurso que engloba a multiplicidade na unicidade de sua especificação. E o comunicador como indivíduo/sujeito que o assume.

Mediador da informação coletiva, o comunicador é um sujeito enunciador/enunciatário (1) de todos esses discursos em constante embate na sociedade.

A ele compete a seleção e montagem do que virá a ser divulgado. Trata-se, porém, de um sujeito em cuja produção se tem claramente a ambiguidade que caracteriza a linguagem: enunciador, no sentido de agente da construção desse discurso, é ao mesmo tempo enunciatário; no sentido de receptor das influências sociais, entendidas essas tanto em nível dos embates teóricos presentes em todos os domínios ou séries daquela sociedade, quanto em nível de adequação aos interesses da empresa em que trabalha.

O discurso da comunicação que ele constrói tem em si a presença do outro pólo: o enunciatário a que se destina. Ocorre que esse enunciatário é também ele enunciador, ou seja, tanto ele é receptor do discurso da mídia quanto agente da leitura desse discurso, utilizando, para isso, toda a sua cultura, os valores do seu tempo, os interesses do seu grupo. E a fragmentação étnico-política é uma das realidades mais veementes neste mundo novo.

Sendo a palavra a materialidade constituída que carrega a história de cada grupo e de cada indivíduo, aquela que possibilita a gestação do mundo novo, aquela que está no cotidiano das pessoas embasando a relação entre todos os domínios, a formação do comunicador terá que levá-la fortemente em consideração, já que ele nada mais é que o indivíduo sujeito que deverá usá-la com consciência.
Fazendo-se presente tanto na formação da consciência social/ideológica quanto na formação da consciência estética, a palavra se manifesta nos discursos, entre outros o da ficção e o da história, um e outro constituintes do domínio da comunicação.

Por isso, para dar conta desse domínio, consideramos como instrumental adequado o que nos oferece estudos de ciências da linguagem, sobretudo a verbal, entendida como ponto de chegada e ponto de partida de outros códigos, de outros campos semiológicos, das várias formações ideológicas/formações discursivas, de consciência social (história) e da consciência estética (ficção), de sistemas não estruturados e medianamente estruturados do cotidiano e dos sistemas plenamente estruturados dos domínios ideológicos presentes num determinado grupo social, numa classe social, numa sociedade com tempo e espaço definidos. Ou seja, consideramos ser necessário, para o comunicador, no que tange às operações sobre os códigos verbais, não apenas o domínio de estruturas frasais, mas também um conhecimento dos complexos movimentos que ordenam as enunciações enquanto geradoras dos sentidos. Daí ser necessário repropor o conceito de linguagem não como exercício significativo de circunscrições individuais e subjetivas, mas como deslocamento. Isto é, ver a produção do sentido em outro lugar, qual seja o da história, o da sociedade.

“Palavras – signos verbais – terão sentidos diferentes dependendo das formações ideológicas”.

Com isso se quer dizer que o percurso teórico do ensino de língua deve contrapor ao EU marcado pela unicidade, visto como produtor exclusivo do sentido equívoco que costuma rondar particularmente os que atuam na área de comunicações. O EU deve ser concebido como pluralidade de vozes sociais.
As práticas linguísticas estão plenas das relações de classe. Nesse sentido, podemos dizer que a história está na língua: as realizações linguísticas trazem inscritas as diferenças de interesses, as propostas de direções diversas para o mesmo processo histórico. Assim é que signos verbais – palavras – terão sentidos diferentes, dependendo das formações ideológicas em que se encontram.
Outras vezes, signos diferentes passam a ter o mesmo sentido, de acordo com tal dependência.

É que no signo linguístico temos a articulação entre a coisa e os atributos dela; entre a objetividade e a subjetividade; entre o ontem e o amanhã. É verdade que todas as palavras possuem sentido, mas o que não é possível é distinguir palavras que atuem exclusivamente em determinados campos: ou no da subjetividade, ou no da objetividade, por exemplo. O emocional, o volitivo, o cognitivo estarão todos presentes em uma mesma palavra, formando uma intrincada articulação, e a predominância de um ou de outro desses aspectos vai depender da formação ideológica a que está presa a manifestação, já que estes aspectos operam no mesmo nível e não separadamente.

Desse modo, os estudos de linguagem terão que se socorrer das ciências que tratam das formações sociais, para poder dar conta de seus estudos do discurso. “O sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não se pode concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso: a língua se apresenta, assim, como a base comum de processos discursivos diferenciados, que estão compreendidos nela” (a). E esses processos discursivos estão instituídos nas formações discursivas, que são a manifestação das formações ideológicas.

Cabe à linguística o estudo do sistema linguístico enquanto conjunto de estruturas fonológicas, morfológicas e sintáticas. Esse conjunto é dotado de uma autonomia relativa já que possui leis internas que são obrigatoriamente seguidas. São essas leis internas que servem de base para o desenvolvimento dos processos discursivos, os quais são socialmente diferenciados. Portanto, os discursos não são a expressão de um puro pensamento, que utiliza por acaso os sistemas linguísticos constituídos.

Por outro lado, todo processo discursivo está inscrito nas relações ideológicas de classe. Se é verdade que não podemos falar em línguas diferentes para classes sociais diferentes, também não podemos deixar de lado a noção desenvolvida por Bakhtin segundo a qual o signo reflete e refrata a realidade e essa refração do ser no signo ideológico nada mais é do que o “(…) confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica, ou seja, a luta de classes” (b).

“Realidade é totalidade concreta, sempre em desenvolvimento e em processo de auto-criação”.

A língua vai, portanto, materializar as visões de mundo das diferentes classes sociais, com seus interesses antagônicos, os quais se manifestam através de um estoque de lexias (2) e combinatórias que constituem a maneira de uma determinada classe social pensar o mundo num determinado momento histórico: são as várias formações ideológicas correspondentes às várias formações discursivas.

Assim vai se estabelecendo o sentido: nessas formações ideológicas, que tanto comportam a ideologia dominante (a reprodução, a conservação), como as posições de classe (a transformação, a mudança, dependendo da classe); nessas formações discursivas e suas manifestações que tanto poderão se orientar para um ou outro pólo, que tanto poderão servir aos interesses de uma ou outra classe. Aí se estabelecem, na verdade, as práticas da luta de classe no campo das formações ideológicas/formações discursivas.

É preciso, portanto, que consideremos a realidade como uma totalidade concreta, manifesta, sempre em desenvolvimento e em processo contínuo de auto-criação. Como lembra Kosik (c) “(…) na realidade, totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não significa ainda conhecer a realidade; e todos os fatos (reunidos em seu conjunto) não constituem, ainda, a totalidade. Os fatos são conhecimento da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético – isto é, se não são átomos imutáveis, indivisíveis e indemonstráveis, de cuja reunião a realidade saia constituída – se são entendidos como partes estruturais do todo”.

Várias formações ideológicas, correspondentes formações discursivas, necessidade de se ter presente, para explicar ambos como o espaço onde habitam pólos contraditórios, a totalidade, tal qual conceituamos acima.

Isso posto, gostaríamos de ter deixado claro que o indivíduo/sujeito está rodeado por todas essas formações discursivas, que o interpelam a cada momento de sua vida, que o oprimem moldando seus comportamentos no cotidiano, suas atividades, ou no sentido da reprodução/conservação, ou no sentido da transformação/mudança, ambas contidas em todas as formações discursivas, já que elas estão referidas na totalidade. Porém, embora referidas na totalidade, estas formações discursivas mascaram essas articulações, não permitindo ao indivíduo/sujeito a visão da totalidade, alienando-o, portanto.

Cada formação discursiva se apresenta como uma totalidade ela própria, desvinculada, impedindo a articulação das várias formações discursivas. Essa articulação significaria o percurso mais rápido para o conhecimento científico da realidade e sua mudança/transformação.

Não se pode perder de vista que a ideologia, como parte da consciência social, está sendo vista como uma prática, e “(..) que a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos” (b), os quais se opõem uns aos outros, ou seja, formações discursivas se opõem a formações discursivas e só assim serão compreendidas, só assim terão o sentido estabelecido. Afinal, “a consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais” (a).

“O discurso tem que supor o conjunto de relações sociais que o constituem”.

Nesse caminho é que podemos entender a afirmação de Pêcheux (a), segundo a qual a constituição do sentido junta-se à constituição do sujeito, que está imbricado com os processos discursivos/formações discursivas.

Assim é que o sentido de uma palavra será sempre determinado pelas diferentes posições ideológicas presentes no processo histórico de uma dada sociedade. Ou seja: “(…) as palavras, expressões, proposições etc mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem” (a).

Desse modo, estamos considerando o discurso da história, da literatura e da comunicação como discursos onde as palavras ganham sentidos próprios, diversos, dada a natureza de cada um. Eles são, portanto, processos discursivos, pois constituem um “(…) sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias etc, que funcionam entre elementos linguísticos-significantes” (a).

Mas esses discursos estão presos a determinadas formações ideológicas/formações discursivas que os presidem e que se desvelarão na direção da reprodução ou da mudança, de acordo com o indivíduo/sujeito que elabora tais discursos.

Há, portanto, um indivíduo/sujeito que assume a palavra. Ele terá sensibilidade maior ou menor para a palavra dando-se ou para a palavra dada; consciência maior ou menor de que sua elaboração é a apropriação individual de um processo coletivo do qual ele é também ator e resultado, e que o produto de sua construção discursiva voltará a essa coletividade; decisão maior ou menor para conhecer que é nesse processo que reprodução e/ou mudança se configuram.

O discurso, manifestação das formações ideológicas/formações discursivas, não é, portanto, apenas uma cadeia de enunciados, palavras ou frases que se justapõem. Ele tem que supor sempre o conjunto das relações sociais, tradicionalmente chamadas extralinguísticas, que o constituem e que estão inscritas na palavra, matéria-prima que ele utiliza. Isso tanto vale para o discurso da história, como para o da ficção. Também para o discurso da comunicação.

“Linguagem verbal caracteriza mediação entre o homem e a realidade objetiva”.

Cada um desses discursos está preso a uma série, a processos discursivos específicos: os discursos literários estão presos às séries (3) literárias da sociedade em que se instauram; os discursos históricos às séries do estudo da história daquela sociedade. O primeiro se prende à ficção, à consciência estética; o segundo, à ciência. Em outras palavras, a série a que pertence um ou outro discurso vai sobremodalizá-lo (4), de tal modo que sua leitura isotópica (5) há que se dar de um e não de outro modo.

O mesmo se dá com o discurso da comunicação, que consideramos como resultado dialético da inter-relação desses dois discursos, os quais, por sua vez, incorporam os vários discursos sociais.
Por outro lado, já o vimos, toda palavra precisa de alguém que a assuma, de outro que a ouça e tem por finalidade persuadir. Isso vale também para os discursos.

Para que a persuasão tenha condições mínimas de estabelecer-se, os discursos terão que ser verossímeis, entendendo aqui palavra verossímil como a possibilidade de existência desse discurso já virtualmente prevista naquela série (histórica, literária ou de comunicação) e assim reconhecida socialmente. Caso contrário, o ato de comunicação não se efetivará, e o discurso cairá no vazio. Ou, como dizem os que trabalham com linguagem, os discursos se desqualificam.

Ou seja, à medida que numerosos discursos são manifestados numa sociedade formando cada uma das séries – literária, histórica ou de comunicação –, nós só poderemos compreender que um novo discurso esteja preso a uma delas se ele efetivamente continuá-la, isto é, se ele for uma resposta às necessidades que tal série se coloca, se ele for solidário aos outros das mesmas séries, do ponto de vista de suas características, de seus objetivos: se ele se contrapõe, enfim, aos discursos de outras séries. Por isso, o ensino de linguagem verbal para a comunicação deve não apenas rastrear as séries fundadoras, como considerar prioritário o estudo dos materiais verbais dos produtos dos meios de comunicação.

Se nos fixarmos, porém, tão somente nas formações discursivas/formações ideológicas e suas manifestações textuais, que constituem as séries, corremos o risco de transferir para a esfera do discurso, como lembra Pêcheux (a), divisões estanques que já foram colocadas no nível das palavras, pela semântica: humano/não humano; material, não material etc. Com isso estamos querendo dizer que os discursos, se bem tenham características específicas, se interpenetram. Nos três discursos temos a presença de uma gama extremamente variada de saberes, de conhecimentos que circulam em outras formações ideológicas/formações discursivas e que são incorporados por esses discursos. Somente a interdisciplinaridade poderá dar conta deles.

E, sobrelevando-se a todos esses aspectos, consideramos que os discursos se relacionam com as posições que seus agentes assumem no campo das lutas sociais e ideológicas. Ou seja: dentro de cada uma das séries haverá posições à escolha do historiador, do ficcionista ou do comunicador e ele atualizará, em seu discurso, uma delas.

Daí a necessidade de iniciar o ensino levando o futuro comunicador a perceber o papel de mediação entre o homem e a realidade objetiva que caracteriza a linguagem verbal. Essa é a base para mostrar a ele as questões relativas ao processo de conhecimento, manifestação da interação entre sujeito e objeto implicada a práxis, as quais tanto se referem ao indivíduo/sujeito que produz nos meios de comunicação como ao indivíduo/sujeito que recebe.

Consciente da dinâmica do processo de conhecimento e dos intercâmbios presentes na vida social, pode-se perceber que os discursos se alimentam reciprocamente, já que todos utilizam a matéria-prima palavra. E que a verdadeira substância da palavra é o fenômeno social da interação verbal. É possível constatar o diálogo entre os discursos. Como lembra Bakhtin (b), diálogo não significa apenas a comunicação entre duas pessoas; refere-se ao amplo intercâmbio de discursos, tanto na dimensão sincrônica como diacrônica, manifestados naquela sociedade. Embora formando séries distintas, os discursos da história, da literatura e da comunicação interagem, inter-relacionando-se com os demais discursos, dos quais se apropriam, construindo-se. E a apropriação é sempre um processo que configura um novo significado ao que foi apropriado.

“Literatura nada mais é que o discurso da existência humana, de suas várias possibilidades”.

Tomando o conceito de práxis como totalidade, o ensino de linguagem verbal procurará mostrar que cada um dos discursos estabelecidos numa sociedade deve ser visto apenas como fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta, que se atualiza na vida cotidiana, contendo o direcionamento político, a religião, os valores de modo geral. E que esse processo de comunicação verbal é sempre resultado de um processo de conhecimento, ao mesmo tempo que agente de transformações contínuas.

Por isso, não é possível isolar a comunicação verbal, isolar os discursos, as séries, desse diálogo contínuo que constitui a vida social. Ou, usando a terminologia de Lefébvre (d), não poderemos estudar ou perceber os campos semiológicos ou sensíveis separadamente. E só nesse conjunto que poderemos tentar compreender a interação verbal, as formas diversas que ela assume. Por outro lado, não podemos desprezar o fato de manifestações textuais de determinados procedimentos discursivos poderem formar uma cadeia. E, nessa cadeia, os procedimentos discursivos passam a ter significações específicas. “Assim os elos que se estabelecem com os diferentes elementos de uma situação de comunicação artística diferem dos de uma comunicação científica” (b).

Logo, os discursos da história, da literatura e da comunicação possuem aproximações e distanciamentos.

É fundamental que o comunicador reconheça que somente a práxis pode nos conduzir no caminho do entendimento dessas aproximações e distanciamentos. O homem, sobre o fundamento da práxis, e na práxis como processo ontocriativo (6), “(…) cria também a capacidade de penetrar historicamente por trás de si e em torno de si e, por conseguinte, de estar aberto para o ser geral” (c).

Portanto, é só na história que o homem existe e a literatura nada mais é que o discurso da existência
humana, das suas várias possibilidades. A história é o desdobramento no tempo dessas várias possibilidades. O homem é personagem, que é homem. E o escritor é o criador de personagens que se incorporarão em homens que fazem a história.

Já ao comunicador compete servir-se desses dois discursos como resultados de caminhos percorridos por indivíduos/sujeitos que, de modo diverso, souberam acercar-se da realidade.

Mikhail Bakhtin

Mikhail Bakhtin nasceu em 1895, em Oriol, parte do que viria a se constituir como União Soviética. Estudou na Universidade de Odessa e depois na de São Petersburgo, de onde saiu diplomado em História e Filologia, em 1918. Ocupou diversos cargos de ensino. Participava de um pequeno círculo de intelectuais, entre os quais se registram Volochinov e Medvedev, que se tornaram seus amigos e discípulos. Suas primeiras obras são publicadas em 1923, quando ele se encontrava doente. O Freudismo, de 1927 e Marxismo e filosofia da linguagem, de 1929, saem em nome de seu discípulo Volochinov. O método formalista aplicado à crítica literária. Introdução crítica à poética sociológica foi publicado com o nome de Medvedev. Segundo Marina Yaguello, na Introdução a Marxismo e filosofia da linguagem, publicado no Brasil pela Hucitec (p. 11-18), dois motivos, basicamente, levaram o autor a recusar-se a apor sua assinatura: o primeiro, seriam as modificações impostas pelo editor e, o segundo, ligado “(…) ao seu gosto pela máscara e pelo desdobramento e também, parece, à sua profunda modéstia científica”, que o levava a afirmar: “(…) um pensamento verdadeiramente inovador não tem necessidade, para assegurar sua duração, de ser assinado pelo seu autor”. Em 1946 defende sua tese sobre Rabelais – A obra de François Rabelais e a Cultura Popular da Idade Média e da Renascença. Passa a viver em Moscou a partir de 1969, onde morreu em 1975.

No Brasil, estão traduzidos Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da Linguagem (Hucitec), Problemas da Poética de Dostoiévski (Forense-Universitária), Questões de literatura e de estética (Unesp/Hucitec) e A Cultura Popular da Idade Média e da Renascença: o contexto de François Rabelais (Hucitec), Estética da Criação Verbal (Martins Fontes).

Seus estudos sobre o signo mostraram-se muito à frente de seu tempo e são ainda hoje base fundamental dos estudos de linguagem. O signo ideológico, as questões de reflexo/refração da realidade do signo, as relações entre infra-estrutura e as superestruturas, entre muitas outras, constituem aspectos amplamente desenvolvidos pelo autor.

Maria Aparecida Baccega Se o primeiro dá a ele condições de perceber o processo histórico presente no cotidiano, onde está a gestar-se o futuro, o discurso da literatura lhe permitirá conhecer novos modos de manifestação verbal, que assinalarão com maior rigor a captação dos seres, enquanto indivíduos; que possibilitarão ao comunicador acercar-se da realidade imediata com a percepção de quem consegue transfigurá-la no tempo, vendo nela o presente e o futuro.

Se os estudos do pólo da emissão devem constituir permanente preocupação dos estudiosos, já que a dinâmica das mudanças que ocorrem no mundo nesse final de século não permite a nenhuma área do saber que se deite sobre os louros; se o pólo da recepção, de estudos mais recantes, do mesmo modo necessita construir a todo momento novas sínteses que se manifestam nos indivíduos/sujeitos enunciatários do processo de comunicação, nossa proposta de ensino de linguagem verbal caminha no sentido do estudo do domínio (ou série) de comunicação como interação ente esses dois pólos.

“Discurso que, no ir-se embora, só está preparando a hora de voltar”.

O objetivo é estudar esse domínio não só como a confluência dos variados discursos sociais, local desse diálogo incessante que constitui a vida social, como estudar a comunicação como o encontro desses dois pólos – o da emissão e o da recepção –, já que o produto da comunicação só se estabelece no momento do encontro, do diálogo entre esses vários universos: o dos vários discursos sociais, o do indivíduo/sujeito enunciador, com todas as suas características, e o do indivíduo/sujeito enunciatário, com sua representação do universo.

Desse modo, consideramos que a linguagem verbal tem condições de fornecer subsídios para que o domínio da comunicação seja pensado conscientemente tanto no pólo do comunicador/produtor como no pólo do público-alvo/receptor.

Do ponto de vista do comunicador – seja o que utiliza os meios tecnológicos à disposição, estruturados em empresas que constituem pólo importante de determinação, seja o que se banha no processo de comunicação do cotidiano em que os códigos são utilizados de maneira transparente, seja o que se mostra capaz de elaborar na relação entre eles –, um dos objetivos é dar-lhe condições de enfrentar o discurso entre os quais ele, comunicador, circula e levá-lo a ser o dono de sua voz, apropriando-se deles; possibilitar-lhe o conhecimento de mecanismos que lhe permitam desvelar algumas características das vozes que falam como sujeitos para que formem, com ele, a ciranda dos indivíduos/sujeitos que, com emoção, se apropriam da história, conduzindo-a.

Do ponto de vista do receptor, oferecer-lhe subsídios para compreender o discurso dos meios de comunicação como contínuo ponto de chegada e ponto de partida, como o discurso que, feito para ir embora, para esvair-se na edição do jornal, no programa televisivo, na emissão da radiofônica, na verdade, permanece. Parafraseando Caetano Veloso, mostrar-lhe que se trata de discurso que, no ir-se embora, só está preparando a hora de voltar; dar-lhe condições para perceber que o discurso da comunicação volta sempre no cotidiano das pessoas, nos amores/desamores, nos encontros/desencontros, nas violências e nos afetos, junto com todos os outros discursos, caracterizando a materialidade da consciência social e da consciência estética.

Na verdade, a tão decantada manipulação do discurso da comunicação, tal qual qualquer outra, só se desfaz na medida da consciência dos envolvidos no processo, na medida em que tanto produtores como receptores sejam ambos o mesmo indivíduo/sujeito desempenhando os dois papéis, sejam indivíduos sujeitos diferentes, se conscientizem de que são enunciadores e enunciatários ao mesmo tempo, nos dois pólos.

O produtor é o enunciatário de todos os domínios socialmente estruturados, incluindo os receptores; ao tornar-se enunciador ele nada mais é que o mediador dessa organização social. E os receptores, enunciatários desse discurso, vão incorporá-lo no jogo de todos os outros domínios sociais nos quais circulam, tornando-se eles próprios enunciadores de um discurso outro, este sim o ponto de chegada da comunicação, que se torna ponto de partida no momento mesmo em que se difunde no grupo social.

Para que se desvele a constituição dos domínios da comunicação como encontro dos discursos da história e da literatura, do emissor e do receptor fundamentalmente, consideramos adequados os procedimentos da análise de discurso da Escola Francesa, ou seja, discurso entendido como o lugar em que linguagem e ideologia se manifestam de modo articulado.

Ou, em outras palavras: o discurso cujo sentido só se estabelece no amplo diálogo cultural, na interlocução, constitui-se linguisticamente, na sua materialidade, ao mesmo tempo em que é um objeto histórico.

Segundo Eni Orlandi (e), a análise de discurso recorre, de um lado, à linguística (à materialidade de língua) e, de outro, à ciência das formações sociais, mas, paradoxalmente, ao pressupô-las na sua constituição – afinal, a teoria do discurso partilha o campo epistemológico de sua formação com a linguística e com a(s) teoria(s) da ideologia – ela lhes critica os fundamentos, já que não se deixa usar nem como instrumento neutro (seu uso supõe uma mudança de terreno e uma desconstrução de conceitos de base para ambas) e nem se coloca como se o que é próprio ao discurso viesse depois, como algo secundário (ou excrescente) ao que é linguístico.

A construção de sentidos está, portanto, prescrita historicamente e inscrita na palavra.
Desse modo, o ensino de linguagem verbal não parte do exterior para mostrar o discurso como ilustração do contexto; parte de análise do linguisticamente produzido no encontro entre emissão e recepção – ambos plenos das características apontadas – para configurar como os sentidos se estabelecem, formando o domínio da comunicação.

Afinal, um signo só significa no jogo dos discursos, os quais só significam nas inter-relações que se estabelecem. E o produto comunicado só se efetiva no horizonte social de um grupo se estiver de algum modo ligado às necessidades reais e simbólicas daquele grupo, se ele for verossímil naquela cultura.

Desse modo, consideramos, o estudo da linguagem verbal poderá despertar no comunicador a consciência indispensável para que ele perceba que o recorte temático da realidade – realizado pelos meios de comunicação e atualizado quando se defronta com o recorte temático do enunciatário – implicará reprodução de sentidos ou produção de novos sentidos que configuram novas realidades, novos mundos.

* Livre Docente, professora da Escola de Comunicação e Artes da USP. O texto publicado foi apresentado, sob forma de comunicação, ao Congresso Internacional de Educação em Comunicação, Guarujá, agosto de 1992.

NOTAS

(1) Enunciador: o indivíduo/sujeito que, após reelaborar os discursos que recebe, elabora o seu próprio. Poderia ser chamado de emissor, porém parece-nos que esta palavra não esclarece a manifestação dessa pluralidade de discursos que constituem, na verdade, a base do que está sendo dito.
Enunciatário: indivíduo/sujeito que recebe os discursos. Na verdade ao receber tais discursos, ele vai lê-los, entendê-los a partir de sua própria realidade. Ou seja, ele próprio, no momento em que é enunciatário está sendo enunciador, pois, ao se apropriar do discurso do outro, o faz a partir do seu ponto de vista e, ao enunciá-lo para si (monólogo interior) ou para outro, está sendo enunciador e não mero reprodutor do discurso do outro.
(2) Lexia: trata-se de uma unidade do discurso que tenha significado. Pode ser uma palavra ou um conjunto de palavras. Assim: socialismo é uma lexia; Estados Unidos também formam uma lexia, embora composta de mais de uma palavra.
(3) Série: o conjunto de processos discursivos específicos. Assim, pode-se falar em série (talvez seja melhor domínio) da literatura, da ordenação jurídica, dos estudos de história etc. numa sociedade.
(4) Sobremodalização: pode-se dizer que se trata de uma marca que colabora para a configuração do discurso. Ou seja: uma determinada produção, escrita ou não, vai relacionar-se a outras produções de uma dada série ou domínio. E o fato de aquela produção ser dada a público como uma sequência daquele domínio, vai ajudar a caracterizar aquele discurso, vai, portanto, sobremodalizá-lo. Assim: um discurso de História vai relacionar-se a todos os outros discursos de História emitidos naquela sociedade e isso colaborará para o entendimento da nova produção.
(5) Isotopia: pode-se compará-la a um corredor de sentido. Há um exemplo clássico, muito bom para clarear o conceito. Na frase, O cachorro do delegado latiu a noite inteira há, sem dúvidas, no mínimo duas possibilidades isotópicas: a primeira remete a cachorro, animal irracional, que latiu e aborreceu a todos; a segunda pode indicar uma desavença entre quem fala e o delegado (funcionário da segurança pública) e uma afirmação sobre ele.
(6) Ontocriativo: a concepção a que esta palavra remete é aquela segundo a qual o homem não é apenas uma parte da totalidade do mundo, já que a totalidade do mundo compreende a existência do homem. Em outras palavras: trata-se do modo através do qual a realidade se abre ao homem; o modo através do qual o homem descobre essa realidade e, sobretudo, a condição do homem de agir sobre esta realidade, modificando-a e modificando-se ao mesmo tempo, sempre através da práxis.

BIBLIOGRAFIA
(a) PÊCHEUX, Michel, Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni P. Orlandi e outros, Editora Unicamp, Campinas, 1988, p. 31, 91, 153, 160.
(b) BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem, 4ª ed., tradução de Michel Lahud, Yara Frateschi Vieira e outros, Hucitec, São Paulo, 1988, 46.
(c) KOSIK, Karel, Dialética do concreto, tradução de Célia Neves e Alderico Toríbio, Paz e Terra, São Paulo, 1969, p. 35, 206.
(d) LEFÉBVRE, Henri, A linguagem e a sociedade, tradução de José Antônio Machado, Ulisséia, Lisboa, 1968, p.185.
(e) ORLANDI, Eni. Terra à vista: o discurso do confronto, Cortez, São Paulo, 1990, p. 26.

EDIÇÃO 30, AGO/SET/OUT, 1993, PÁGINAS 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48