Princípios publica a Segunda Carta aos Brasileiros, lançada pelo jurista Goffredo da Silva Telles Jr. no último mês de setembro. Trata-se de um verdadeiro libelo contra a Revisão Constitucional conduzida pelas forças conservadoras. Atendo-se principalmente aos aspectos jurídicos, especialidade do veterano Professor da Faculdade de Direito da USP, a carta demonstra cristalinamente o crime contra a Constituição, perpetrado sob o título de Revisão Constitucional.

Trata-se de uma segunda carta porque Goffredo foi o autor da Carta aos Brasileiros, lida no final da década de 1970, em Ato Público no Largo de São Francisco, em São Paulo. Esse documento jogou grande papel na luta contra a ditadura militar vigente.

O silêncio da imprensa das classes dominantes em relação à Segunda Carta é uma expressão da verdadeira campanha desencadeada por esta imprensa para fazer passar a Revisão Constitucional. Contrapondo-se a este silêncio, Princípios publica em primeira mão, e na íntegra, a carta do professor Goffredo.
(Conselho Editorial de Princípios)

Dirijo-me ao povo. Dirijo-me aos trabalhadores, aos estudantes, aos professores. Aos profissionais liberais e aos empresários. Aos magistrados e aos promotores. Dirijo-me aos servidores públicos, aos empregados em geral. Dirijo-me aos artistas. Aos homens e mulheres da mídia. Dirijo-me aos políticos.

REVISÃO E PLEBISCITO

Para as reformas na Constituição, dois processos existem: o das emendas e o da revisão.
Mas, destes dois processos, o único a figurar no rol constitucional dos atos do Processo Legislativo é o da emenda.

A revisão não se acha mencionada entre tais atos. Aliás, a revisão não é citada, nem uma só vez, nos 245 artigos da Constituição.

Ao processo da emenda, a Constituição consagra a maior importância.
Na lista dos atos do chamado Processo Legislativo, a Constituição nomeia a emenda em primeiro lugar.

Reza o artigo 59 da Constituição:
“Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:
I- emendas à Constituição;
II- leis complementares;
III- leis ordinárias;
IV- leis delegadas;
V- medidas provisórias;
VI- decretos legislativos;
VII- resoluções”.

Que vemos neste artigo? Vemos uma coisa só. Vemos que, para reformas na Constituição, um processo único está ali mencionado. E este processo é o da emenda.
Conclamamos, para este artigo, a atenção dos revisionistas.
O artigo não faz nenhuma referência à revisão.

Só com a emenda, em matérias de reformas, preocupa-se a Constituição. De fato, na citada Secção do Processo Legislativo, há uma Subsecção inteira, a ela devotada, sob o título Da emenda à Constituição.
Esta Subsecção cuida do processamento das propostas de emenda. E, pelo que ali está disposto, no artigo 60, o que imediatamente se verifica é que não é fácil emendar a Constituição.
O artigo 60 manda que a proposta de emenda seja discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos. E que somente seja tida como aprovada quando obtenha o quorum de três quintos dos votos dos deputados e dos senadores.

A simples leitura deste artigo leva à convicção de que os constituintes de 1988, obedientes a uma secular vontade do povo, e imbuídos do ideal democrático, empenharam-se em dar à sua obra a firmeza e a durabilidade de que necessitam as Constituições dos Estados de Direito.
A exigência dos dois turnos e do quorum qualificado de três quintos é a salvaguarda da estabilidade constitucional, que os constituintes, sabiamente, consagraram.
E a revisão, em que fica? A que se reduz?

Respondemos que a revisão é ato importante, mas ato que não se acha mencionado na Constituição.
A revisão aparece em outro diploma legal. Aparece na lei anexa à Constituição, na lei denominada Ato das Disposições Transitórias.

A revisão surge, pela primeira e única vez, no artigo 3º dessa lei. E surge como um processo simplificado de reforma.

De acordo com esse artigo, a aprovação da revisão exige o voto favorável de apenas a maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, num só turno, em sessão unicameral. A reforma da Constituição se faria sem a necessidade de se obter o quorum qualificado de três quintos dos votos, em dois turnos, em cada uma das Câmaras do Congresso.

Como se vê, entre a revisão e a emenda, a diferença é só de processamento. Mas esta diferença é colossal. É uma diferença que torna muito mais fácil o processo de reforma da Constituição.
Mas, a que reforma o citado artigo 3º se refere?

Não se refere, é claro, às reformas feitas pelo Processo Legislativo, porque tais reformas só se podem fazer por meio de emendas. O artigo 59 não deixa dúvidas sobre este assunto. A emenda é o único ato de reforma, entre os atos do Processo Legislativo.

Não estando mencionada na lista completa do artigo 59, a revisão, votada com quorum simplificado em sessão unicameral, é processo não reconhecido pela Constituição; é processo inidôneo, para execução de reformas em nossa Carta Magna. Diríamos que essa revisão é proibida pela Constituição.
A que reforma, então, se refere o artigo 3º das Disposições Transitórias?
Não podendo referir-se às reformas que só cabem às emendas, a revisão do artigo 3º só pode referir-se à reforma preconizada no artigo imediatamente anterior.

Se o eleitorado, por meio do plebiscito, houvesse optado pela forma monárquica e pelo sistema parlamentarista de governo, seria necessário, obviamente, alterar alguns artigos da Constituição, a fim de adaptá-la à decisão do povo. Para fazer essa eventual alteração, o Ato das Disposições Transitórias, em seu artigo 3º, prescreveu, não a emenda, mas a revisão.

Acontece, porém, que o povo, por meio do referido plebiscito, não optou pela mudança da forma e do sistema de governo. O que o povo fez foi votar em favor da forma republicana e do sistema presidencialista. Isto significa, simplesmente, que o povo manteve a forma e o sistema adotados na Constituição em vigor.

O povo não autorizou a mudança. Logo, não autorizou a revisão.
Não se pense que a revisão possa desvincular-se do resultado do plebiscito. Não se queira fazer da revisão o processo fácil, a boa oportunidade para mudar a Constituição.

A revisão, mencionada no artigo 3º das Disposições Transitórias, não é qualquer revisão. Que revisão será esta? Ela só pode ser a revisão prevista no artigo anterior. Só pode ser a revisão que seria imprescindível, se fosse preciso fazer a mudança preconizada nesse mesmo artigo. É a revisão que seria necessária para a adaptação da Constituição à mudança que seria ordenada pelo povo.
Mal tal revisão é, justamente, a revisão que foi dispensada, porque a mudança foi repelida. É a revisão extinta.

Se o povo, no plebiscito, tivesse optado pela mudança, a revisão se restringiria à mencionada adaptação. Em nenhuma hipótese, poderia a revisão ser mais do que isso. Pois a própria Constituição estabeleceu, em seu artigo 59, que o único ato do Processo Legislativo, dedicado às reformas na Constituição, é a emenda, não a revisão.

Eis por que proclamamos: usar a revisão em vez de usar a emenda é violar a Constituição.
Estamos convictos de que essa prática daria ensejo a uma ação direta de inconstitucionalidade.

A REVISÃO PRETENDIDA

Mas atenção! Há muita gente, no Congresso Nacional e fora dele, que não quer ver vínculo nenhum entre a revisão e o resultado do plebiscito.

É gente desejosa de fazer uma revisão. Gente que preconiza o aproveitamento desta pretensa oportunidade, para mudar, acrescentar ou suprimir, com desembaraço e celeridade, numerosas disposições constitucionais. É gente de boa fé e gente de má fé, ansiosa para valer-se desta aparente e rara ocasião, para incluir na Constituição, ou dela excluir, sem as dificuldades das emendas, as normas que quiserem.

Para a revisão pretendida, os projetos de mudança já estão anunciados. Provindos das mais diversas fontes, os jornais anunciaram. Muitos já chegaram à mesa do Congresso. O presidente da Câmara calcula que mais de dez mil proposições lhe virão às mãos.

Uma verdadeira febre revisionista parece assaltar certos ambientes. O que a explica, em parte, é a premente necessidade de reformar determinadas estruturas do Estado. Salta aos olhos da população que providências se fazem urgentes, para extirpar ou minorar males que infelicitam a nossa Terra.
Mas a premência, a urgência dessas reformas, dessas providências, não significa que elas devam ser aprovadas por um Congresso unicameral, em votações apressadas, de um turno só, com quorum reduzido. Mudanças na Constituição não são mudanças em uma lei qualquer. Para atender a tais premências e urgências, melhor é recorrer à legislação ordinária, para obtenção rápida de soluções talvez provisórias.

As Constituições não foram feitas para ser abaladas por avalanches revisionistas. A firmeza da Constituição – sua estabilidade e permanência, sua durabilidade – é garantia de nossos direitos e de nossas liberdades.

Reformas na Constituição exigem tempo. Exigem serenidade. Exigem estudo, pesquisa, consulta. Exigem, muitas vezes, audiência da Nação.

Estarrecidos, contemplamos a massa dos projetos que, no processo da revisão, serão submetidos à consideração do Congresso. Sobre eles, o Congresso terá de se pronunciar. Terá, para fazê-lo, o exíguo prazo que se estende entre o próximo mês de outubro e o próximo mês de março, quando as campanhas eleitorais estarão nas ruas.
Que fantástica situação!

De concreto, o que vemos é que o Congresso nem sequer pôde elaborar, em quatro anos, as leis complementares, exigidas pela Constituição.

Agora, o que se pretende é que esse mesmo Congresso discuta e vote, no apertado prazo da revisão, projetos sobre enxugamento do Estado; a correção de nosso sistema presidencial; a redistribuição das funções da União, dos Estados e dos municípios; a reforma tributária; a medida provisória e a lei delegada; a definição de defesa nacional e o papel das Forças Armadas; a segurança pública e a reorganização da Polícia; a reorganização do Judiciário; o controle do Judiciário; o sistema eleitoral; o regime partidário; a proporcionalidade das representações no Congresso; a reformulação da Previdência e o financiamento da Seguridade Social; a estabilidade e a aposentadoria do servidor público; a reforma agrária; a implementação dos direitos à educação, saúde e habitação; a participação dos trabalhadores na gestão das empresas; o direito de greve; as definições e os direitos da empresa nacional e da empresa estrangeira; o tabelamento dos juros; os monopólios estatais, principalmente os monopólios da pesquisa, extração e distribuição do petróleo, e os monopólios das telecomunicações; a privatização das empresas; a propriedade do subsolo, e milhares de outros projetos, que já chegaram, ou se acham em vias de chegar, à mesa do Congresso.

Espantosa revisão! Nesse mar de projetos, a promessa da revisão, mesmo de uma revisão com agenda reduzida, só poderá produzir um espetáculo de naufrágio. Só poderá concorrer para o desprestígio do Parlamento. E incrementará, desgraçadamente, a descrença, a desesperança e o alheamento do povo.

Aperfeiçoemos a Constituição! É o que todos nós queremos. Mas para aperfeiçoá-la, não nos enredemos na aventura de uma revisão de fancaria.

Ninguém se iluda! Em matéria de reforma da Constituição, como em muitas outras matérias, o melhor é entrar pela porta estreita, porque esta, em regra, é a que conduz aos valores da vida. A outra, a porta larga e espaçosa, é a que costuma nos levar à perdição. Façamos, sim, a reforma da Lei Magna. Nossos representantes no Congresso Nacional serão capazes de fazê-la.

Mas devem fazê-la criteriosamente. Devem fazê-la pela porta estreita das emendas.
Ao Congresso, queremos advertir: insurgimos-nos contra a leviandade das reformas açodadas. Nós renegamos a porta larga, tentadora, da revisão. Rogamos que a deixem fechada.

AS IMPRUDÊNCIAS DA REVISÃO

Se a porta larga ficar aberta, as corporações do atraso, as associações dos eternos manobristas de poderosos interesses por ela entrarão para arrebatar, em votações em turno único, com quorum reduzido, a aprovação sinistra dos projetos do retrocesso.

Para as Instituições Democráticas, para o progresso da ordenação jurídica nacional, para os Direitos do Homem, para os direitos trabalhistas, para as conquistas sociais, para os interesses do grande povo anônimo, não pode haver risco maior do que o representado pelo quorum reduzido da revisão agora projetada.

Enquanto imensa camada popular – desiludida, pessimista e pobre – tende a se descuidar de tudo que se relacione com a política, e a desprezar o que se faz no Congresso, relevantes questões do País são resolvidas em segredo, nos gabinetes do Parlamento e nas ante-salas dos Ministérios, e, depois, jogadas no Plenário.

Se as parcelas sadias da sociedade, por meio da atuação de seus partidos de luta e em suas entidades de classes, não contaram com as salvaguardas da Constituição – com o quorum qualificado e com a votação em dois turnos, nas duas Casas do Congresso – não haverá nunca a esperança de sustar, dentro do Parlamento, a onda permanente do retrocesso.
Este é o motivo pelo qual o povo nas ruas, sentindo-se ameaçado, exclama: Revisão é golpe!

A REVISÃO E O PODER CONSTITUINTE

Se o Congresso Nacional cometer a imprudência de iniciar a revisão, ela não terá mais fim. Sempre que o Congresso quiser mudar a Constituição, lançará-mão de um cômodo estratagema: dirá que a revisão é contínua. Usará, eternamente, o processo facilitado de revisão, e se dispensará de usar o da emenda.

Com isso, derrubado estará o princípio da firmeza e durabilidade das normas constitucionais. Derrubadas estarão a segurança do Direito e a garantia das liberdades sociais. E ferido ficará o próprio pensamento inspirador da democracia e do Estado de Direito.

Tal é a razão pela qual exortamos o Congresso Nacional a não cometer a aludida imprudência.
Não é lícito esquecer que a estabilidade dos mandamentos da Constituição resulta de uma longa evolução histórica, de uma árdua luta do povo, contra o absolutismo e o arbítrio.

Não pode o Congresso ignorar, agora, essa epopéia. Ignorá-la, principalmente em horas de reforma Constitucional, é falta que não tem perdão. É incúria que redunda em golpe contra as conquistas do povo e contra a democracia. É mal que deixa aberta a porta do retrocesso político.

A simples ameaça da revisão, como processo permanente de reformas, já projeta a imagem do Estado que esse estratagema produziria. Sem estabilidade constitucional, o que teríamos seria, precisamente, o modelo que julgávamos superado. Teríamos o Estado eticamente indefinido e indiferente, joguete e instrumento dos que dele puderem aproveitar.

O povo diz que a revisão é golpe. Nós acrescentamos: a revisão é usurpação de poder.
Para criar um novo modelo de Estado, o atual Congresso não tem poder. O Congresso não foi eleito para fazer a revisão.

A revisão, de que agora se trata, exige Poder Constituinte. E esse poder ao povo pertence. Quando elegeu os atuais deputados e senadores, o povo não lhes delegou o Poder Constituinte de transformar o Estado brasileiro.

Se a revisão, a que se refere o artigo 3º do Ato das Disposições Transitórias, fosse um processo de mudar as feições do Estado, o atual Congresso ficaria travestido de Assembléia Constituinte. E teria poder maior que o da Assembléia Constituinte de 1988, porque estaria investido no poder inextinguível de mudar, quantas vezes quisesse, as estruturas do Estado.

Não foi esse, certamente, o poder atribuído ao Congresso pelo povo eleitor.

Se o Congresso Nacional fizer a revisão, estará utilizando um poder que não lhe pertence. E, para mal dos pecados, começará por utilizá-los na pior das oportunidades, porque será na ocasião das pressões inevitáveis, exercidas sobre os políticos, em vésperas de eleição.

Não podemos acreditar na perpetração dessa calamidade.
Queremos confiar em nossos deputados e senadores. O Parlamento será sensível aos apelos do povo.
Numa só voz, clamamos: Revisão, não!

* Jurista e professor da Faculdade de Direito da USP.

EDIÇÃO 31, NOV/DEZ/JAN, 1993-1994, PÁGINAS 7, 8, 9, 10