As lideranças indígenas de Chiapas, sudeste do México, resolveram inaugurar o Ano Novo exigindo trabalho, terra, moradia, comida, saúde, educação, autonomia, liberdade, democracia, justiça e paz. Chiapas é o Estado mais pobre do país. Campeiam ali a miséria, o abandono, a humilhação: um médico para cada 1500 pessoas; 30% de analfabetismo; 35% das comunidades e 33% das casas sem energia elétrica; 42,6% sem água nem esgoto. O que surpreendeu o governo mexicano e o resto do mundo foi que os índios de Chiapas externaram suas exigências de armas na mão.

Sob o comando do até então desconhecido Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), cerca de 2.000 guerrilheiros indígenas, uniformizados, com metralhadoras e fuzis automáticas, mas também com lanças de madeira e facões, tomaram, na madrugada do dia 1º de janeiro, a cidade de San Cristóbal de las Casas, de 85 mil habitantes, e outras menores, na fronteira com a Guatemala: Ocosingo, Altamirano e Las Margaritas. Eles atacaram várias vezes um quartel do Exército mexicano em Rancho Nuevo, depredaram sedes de prefeituras e algumas pontes, libertaram prisioneiros, saquearam supermercados, distribuindo mercadorias para a população. E ainda sequestraram personalidades importantes da vida política, entre elas o ex-governador de Chiapas, Absalón Castellanos Domínguez, a quem acusam de violar os direitos humanos dos povos indígenas.

Inicialmente, a reação do governo, atônito, foi de cautela. Depois as autoridades desencadearam uma furiosa repressão, enviando 12 mil soldados do Exército, tanques, aviões de caça, helicópteros e foguetes. Muitos desses equipamentos foram cedidos pelo governo norte-americano para o combate ao narcotráfico. Os guerrilheiros foram obrigados a recuar, refugiando-se nas montanhas e na Selva Lacandona. Mais de 400 pessoas foram mortas durante os conflitos, segundo fontes da Igreja Católica.

O governo admite pouco mais de cem. Há testemunhos de jornalistas, médicos legistas e integrantes de entidades de defesa dos direitos humanos sobre a execução sumária de guerrilheiros, com as mãos amarradas para trás e tiros na nuca. Dezenas de pessoas foram dadas como desaparecidas. A repressão só não foi maior porque desencadeou-se um grande movimento nacional e internacional contra as manobras de extermínio do presidente Carlos Salinas de Gortari que, no dia 16 de janeiro, anunciou a concessão de uma lei de anistia para as duas partes que participaram do conflito. Isto é, uma lei de anistia recíproca com a qual implicitamente ele admite os crimes de lesa humanidade cometidos pelo Exército.

O nome do Exército Zapatista de Libertação Nacional e seu principal slogan, tierra y libertad, são uma homenagem a Emiliano Zapata, um dos grandes heróis da Revolução Mexicana, ao lado de Pancho Villa. A data do ataque foi escolhida de propósito, porque no primeiro dia do ano começou a vigorar o Nafta, o Tratado de Livre Comércio, assinado entre Estados Unidos, México e Canadá. Para os guerrilheiros, um dos objetivos da Nafta “(…) é a entrega do país aos estrangeiros”. Segundo um dos líderes do EZLN, o comandante Marcos, ao jornal italiano L’Unitá, o Nafta é mais do que isto: é uma sentença de morte para os índios. “A entrada em vigor do Tratado representa o começo de uma matança internacionalizada”, afirmou ele. O comandante Marcos sublinhou que o movimento exige também a renúncia do presidente Carlos Salinas de Gortari e a formação de um governo de transição, que convoque eleições livres e democráticas em agosto de 1994. Na verdade, as eleições presidenciais já estão marcadas para o mês de agosto. Mas, como acusa a oposição, o governo já montou o tradicional esquema de fraudes visando a garantir a vitória do candidato oficial, Luís Donaldo Colosío – o mesmo esquema que garante a ditadura do Partido Revolucionário Institucional (PRI) há mais de 60 anos. Uma grande crise nas hostes do governo e do PRI, e a recuperação de seu principal adversário, o candidato do Partido da Revolução Democrática (PRD), Cuauhtémoc Cárdenas – que já parecia cambaleante, depois de ser acusado de extremista e radical numa insidiosa campanha do PRI – são duas das consequências mais imediatas da rebelião indígena.

“Índios sempre viveram em guerra. Se é para morrer, por que não morrer lutando?”

Numa época em que a maioria dos principais grupos armados da América Latina trocou o fuzil pela via institucional do voto, a explosão de Chiapas não apenas surpreendeu a direita e a esquerda. Ressoou, nos círculos bem pensantes, como uma coisa fora de moda, resquício de um passado já morto e enterrado. O Prêmio Nobel de Literatura Octavio Paz, que já foi um crítico acerbo da oligarquia mexicana e hoje canta loas ao neoliberalismo, escreveu que a inspiração do EZLN vem de “(…) fragmentos das idéias do maoísmo, da Teologia da Libertação, do Sendero Luminoso e dos movimentos revolucionários centro-americanos. Em suma, restos do grande naufrágio das ideologias revolucionárias, do século XX”. O próprio Paz reconhece, no entanto, que “(…) a população camponesa (de Chiapas) – que em sua imensa maioria descende de um dos povos pré-hispânicos mais ilustres, os maias – vem sendo submetida, há séculos, a muitas humilhações, discriminações e ignomínias.

Por anos e anos, suas petições não foram ouvidas, nem pelas classes abastadas – principais responsáveis pela penúria crônica dos camponeses – nem pelos governos”.
Para o comandante Marcos, as armas foram o último recurso. “Os índios sempre viveram em guerra, porque até hoje as guerras foram contra eles. Agora é hora de eles lutarem contra os brancos. Em todo caso, terão oportunidade de morrer lutando e não de diarréia, como morrem normalmente os índios Chiapas”. De fato, as infecções intestinais e respiratórias e a desnutrição, males de 40 anos atrás, são, de acordo com uma reportagem da revista mexicana Processo, as principais causas da mortalidade entre os chiapaneses. A malária matou 3.000 pessoas nos primeiros 10 meses de 1992, em Chiapas e outros dois estados do Sul do México, Oaxaca e Guerrero. Nos últimos meses, 71 bebês nasceram descerebrados em Chiapas, aparentemente por causa da desnutrição.

Se é para morrer, por que não morrer lutando? Este foi o sentimento que embalou os zapatistas, cansados de esperar pelas promessas de décadas dos sucessivos governos do PRI.

Na época dos espanhóis, os índios viviam sob o jugo dos encomenderos, senhores a quem era outorgado um pedaço de terra com tudo o que havia dentro, inclusive as pessoas e seu trabalho. A situação não mudou muito de lá para cá. Ainda segundo a revista Processo, em Chiapas “(…) os camponeses trabalham do nascer ao pôr-do-sol ganhando ordenados que não chegam a sete pesos por dia. Quando atingem dez anos de idade, as crianças têm que começar a trabalhar com salários de um ou dois pesos por dia. Esse salários não são pagos em dinheiro vivo. As pessoas recebem créditos nos armazéns da companhia, mercadoria e bebidas alcoólicas. Os camponeses são obrigados a trabalhar de graça aos domingos num sistema chamado la página, que inclui o direito (dos latifundiários) de violar suas mulheres. Na época da colheita do café, mulheres e crianças são obrigadas a trabalhar da mesma maneira que os homens”.

O bispo de San Cristóbal de las Casas, Samuel Ruiz Garcia, escolhido pelos guerrilheiros para mediar o diálogo com o presidente Salinas, lamenta a luta armada, mas reconhece que a raiz do problema é a situação de miséria, e abandono e exploração dos povos indígenas em Chiapas.

Um manifesto assinado por cinco artistas renomados, nascidos naquele Estado, também condena a violência, mas relembra que a “(…) história de Chiapas é em grande parte a história de insurreições indígenas contra o desprezo e o despotismo de diferentes governos. O povo Tzeltal, em 1712, e o povo Tzotzil em 1869, só para citar duas das revoltas mais importantes, buscaram pelas armas o que não obtiveram pela lei: respeito à sua dignidade e cultura. Em ambas as ocasiões a guerra foi sangrenta e teve consequências fatais para toda a população”. Em seguida o documento afirma: “(…) em Chiapas, ao contrário do resto do País, a Revolução de 1910-17 não triunfou. O governo de Obregón negociou com os rebeldes locais, armados contra as leis revolucionárias. Assim, por decisão do governo central, os caudilhos que lutaram para evitar a divisão da terra foram encarregados de aplicar a reforma agrária.

A situação se estendeu até o governo do general Cárdenas, quando retirou a dotação de ejidos (propriedades rurais) e comunidades”. Ainda de acordo com os intelectuais chiapanenses, naquele estado, “(…) aberta ou dissimuladamente, há uma persistente discriminação contra o índio e sua cultura. Muitos dizem, da boca para fora, que sentem orgulho do legado indígena, referem-se à grandeza arqueológica, ou seja, aos índios mortos. Mas os índios vivos, que exigem condições dignas de cidadãos mexicanos, são vistos com evidente desconfiança”.

Não só com desconfiança. Como na época dos espanhóis, os povos indígenas são vistos como pessoas idiotas, ingênuas, incapazes de terem pensamento e vontade política próprios. Desde o início do movimento guerrilheiro, os porta-vozes do governo mexicano trataram de difundir a versão de que, por trás do EZLN, estavam os padres da Teologia da Libertação e os guerrilheiros da Guatemala e de El Salvador. Alguém chegou a dizer que o comendante Marcos teria sido assessor dos sandinistas.

Como se não bastasse, depois de propagandear a suposta incapacidade política dos índios de Chiapas, começou-se a difundir também calúnias contra eles. A agência Reuter distribuiu uma matéria, publicada no jornal O Estado de São Paulo dia 6 de janeiro, em que afirma que os rebeldes de Chiapas são descendentes dos sanguinários Maias, que reinavam naquela região antes da chegada dos espanhóis. Um povo, enfatizou a agência, que embora tenha sido brilhante na matemática, na arquitetura e na astronomia, “(…) praticava sacrifícios humanos para aplacar a ira dos deuses e participava de guerras selvagens”.

“Foram os espanhóis que sacrificaram à sua deusa Avareza um número muito maior de índios por ano”.

Mais uma vez, no entanto, é preciso voltar ao passado para tomar consciência de que tais calúnias já eram acatadas pelos europeus para justificar suas guerras santas contra os povos indígenas. Em 1550, o dominicano Bartolomé de Las Casas, que havia sido o primeiro bispo de Chiapas, estava em contenda contra Juan Ginés de Sepúlveda. Este, com base nas idéias escravocratas de Aristóteles, tentava justificar as violências cometidas contra os ameríndios. Sobre a versão de que os índios praticavam tantos sacrifícios, como faz agora a agência Reuter, Las Casas replicava: “Não é absolutamente verdade, como se diz, que os índios, na Espanha Nova (o antigo México), sacrificavam 20.000 pessoas por ano; não sacrificavam nem cem e nem cinquenta; porque se assim tivesse sido, ninguém teria encontrado ali tanta gente e isso mesmo é confirmado pelos tiranos para excusar e justificar suas tiranias e para manter em servidão e sob tirania os índios já oprimidos e desolados que sobraram da vindima feita. O que podemos dizer em favor da verdade é que foram os espanhóis que sacrificaram desde todos os tempos à sua deusa Avareza um número muito maior de índios por ano; porque o número de índios que sacrificaram a essa deusa por eles tão amada e tão adorada é tal, que os índios nunca sacrificaram tantos nem em cem anos. O que os Céus, a terra, os elementos e as pedras testemunharam e gritam e o que os próprios tiranos que perpetraram todos esses males não o negam de maneira alguma, é que esses países eram mui abundantes em povo quando ali encontramos e que agora estão destruídos e desolados. Deveríamos corar de vergonha com o que, havendo perdido o temor de Deus, queiramos ainda encobrir e desculpar atos tão execrados; somente para ter bens e riquezas consumimos em 45 ou 48 anos uma extensão de terra maior que o comprimento e a largura de toda a Europa, e uma parte da Ásia, roubando e usurpando tudo com crueldade, injustiça e tirania, havendo sido mortas e destruídas vinte milhões de almas de um país que tínhamos visto tão cheio de gente e de gente tão humana”.

Quatro daqueles povos da época de Las Casas – os Chol, os Lancandón, os Tzeltal e os Tzotzil, todos eles do grupo linguístico maya-totonaco – participaram ativamente da rebelião da primeira semana de 1994, num Estado em que a metade dos 3,2 milhões de habitantes é indígena e, como já disse, vive abaixo da linha de miséria. Com o Nafta, o EZLN teme, com razão, que a situação deve piorar ainda mais. Um dos motivos é que o Tratado prevê maciças importações de grãos dos Estados Unidos, produzidos por uma agricultura várias vezes mais eficiente do que a agricultura de Chiapas. O que farão os índios que produzem milho em Chiapas e que vivem na miséria porque não obtêm preços mínimos adequados para comercializá-lo?

“Importar grãos dos EUA é parte do Nafta. Índios que produzem milho não poderão concorrer”.

Durante o seu governo, o presidente Carlos Salinas de Gortari seguiu a cartilha neoliberal para preparar a entrada do México no Nafta. As cidades do Norte receberam maciços investimentos em infra-estrutura – estradas, hotéis, telecomunicações – para não ficarem muito diferentes das cidades do outro lado do Rio Grande, o lado do Primeiro Mundo. Empresas estatais foram privatizadas, incluindo as da área petroquímica, num movimento deliberado para enfraquecer a Pemex, a Petrobras de lá. Um dos alvos centrais dos Estados Unidos na integração do México ao Nafta é justamente as suas reservas petrolíferas, calculadas em 51,3 bilhões de barris. Os investimentos sociais caíram de maneira drástica, ao mesmo tempo em que cresceu o desemprego, num país em que 38 famílias detêm um quarto da riqueza nacional, quase metade da população de 90 milhões de habitantes vive na pobreza (26 milhões, na miséria absoluta). Para camuflar a desgraceira neoliberal, Salinas criou um Programa Nacional de Solidariedade, orçado em US$ 11 bilhões, para serem gastos em obras sociais, construção de estradas, créditos a agricultores etc. É, segundo os analistas políticos do México, a menina dos olhos de seu governo. No ano passado, o Solidariedade despejou US$ 230 bilhões em Chiapas. Um crítico disse que se trata de um tratamento com aspirinas de um doente terminal. De que adianta dar esmolas, se as estruturas econômicas e sociais continuam tais quais?

A revolta dos Tzotzil em 1869 foi provocada depois que a Igreja e as autoridades passaram a reprimir o culto desse povo a umas pedras falantes, descobertas dois anos antes pela menina Agustina Gómez Chechep. A maior revolta anterior, em 1712, deveu-se também à repressão da Igreja contra o culto à Virgem, que teria aparecido a outra menina, do povo Tzeital, dando-lhe instruções de como expulsar os espanhóis. No Ano Novo, afirmou o escritor mexicano Carlos Fuentes, novamente as pedras falaram em Chiapas, em nome de milhões de mexicanos sem teto, sem terra e sem água.

EDIÇÃO 32, FEV/MAR/ABR, 1994, PÁGINAS 58, 59, 60, 61