No momento em que escrevia estas linhas, a sucessão de fatos evidenciava que o processo de Revisão da Constituição adentrava novamente ao pântano da crise, ao que parece, desta vez, sem caminho de volta.

Diante da imprevisibilidade dos acontecimentos, a esquadra dos revisionistas depara a cada distante, como na piada dos filmes improváveis, com verdadeiras tempestades de areia em pleno mar.
A Revisão da Constituição é a terceira grande ofensiva das classes dominantes brasileiras e de seus aliados externos, para promover no Brasil o ajuste estrutural exigido pelos novos donos do mundo a partir da geografia política internacional surgida com o fim da URSS.

Tal qual o receituário neoliberal pregado pelo FMI e o Banco Mundial – e aqui acatado pelos fanáticos da nova seita – o Brasil deve abrir seu mercado aos produtos fabricados no exterior, vender seu patrimônio por dez vinténs, de preferência para empresas estatais de outros países, como fez a Argentina, e hastear a bandeira dos EUA ou do Grupo dos Sete no prédio do Banco Central do Brasil. É bom lembrar que no passado já tivemos o pavilhão da Inglaterra içado na alfândega do Rio de Janeiro, o que deve encher de saudade os nossos neoliberais de hoje.

Derrotada a primeira ofensiva, com a deposição de Collor pelo Congresso como resultado da campanha do impeachment, frustrou-se também a segunda arrancada por meio do parlamentarismo conservador, barrado nas urnas pela vontade popular, que preferiu a república e o presidencialismo.
Espremidas pelo calendário, que apontava logo em seguida uma eleição presidencial com resultados no mínimo imponderáveis, as correntes conservadoras atiraram-se à terceira chance – a Revisão – e dela fizeram o bote salva-vidas da empreitada sinistra do derradeiro assalto ao Estado.

Bom dia, Revisão!
Um verdadeiro colosso de forças articulou-se em torno da campanha revisionista: do PPS de Roberto Freire ao PPR de Paulo Maluf, passando por PSDB, PMDB, PL, PFL e outros menos cotados. O grande capital entrou com suas divisões blindadas movidas a dólar, unindo os banqueiros nacionais e estrangeiros, os monopólios locais e internacionais, sob a batuta do Fundo Monetário Internacional, faça-se justiça, o primeiro a exigir mudanças na Constituição, ainda em 1991, por meio de seu representante para a América Latina, José Fagenbaum.

Os grandes jornais, sem exceção (Globo, Estadão, Folha e JB), as redes de rádio e televisão, a começar pela Globo, passaram a funcionar como comitê de agitação e propaganda desse grande partido a serviço do capital. Os olhos de coruja de Cid Moreira fitando o telespectador e chamando o melífluo Alexandre Garcia “com mais notícias sobre a Revisão”, virou clichê na rede de televisão de Roberto Marinho. Nelson Jobim, com sua pose de Leitão de Abreu dos anos 1990, tornou-se celebridade festejada diariamente nos meios empresariais e no noticiário. Bom dia Brasil, o telejornal matinal da Globo, sem o Dr. Nelson Jobim não é Bom dia Brasil.

Como no provérbio africano, a Revisão passou a ser uma história de caçada contada pelo caçador, ou seja, além das mentiras, o outro lado ou está morto ou não é ouvido. Os editoriais que choveram sobre o país falavam maravilhas da Revisão. Quem estava contra eram os “contras” que, naturalmente, por serem contra não tinham razão, e por não terem razão não seriam ouvidos.

Em apoio às suas teses, os defensores da Revisão trouxeram ao país a ex-primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher, e o atual vice-presidente dos EUA, Al Gore.

Por 150 mil dólares, uma Thatcher decrépita – desmaiou em cima do microfone em palestra semelhante feita no Chile – teceu loas às privatizações da Inglaterra e reclamou do tamanho do Estado brasileiro. Esqueceu-se de dizer que seu governo duplicou o número de desempregados em seu país, multiplicou os miseráveis e perdeu para a Itália o 5º lugar de economia mais desenvolvida do planeta.

Os contras mostram suas armas

Só a magnitude dos objetivos das forças conservadoras pode explicar a amplitude da aliança que se forjou contra a Revisão. Transferir do Estado para monopólios privados o mais significativo do patrimônio público do país, particularmente as áreas de petróleo e telecomunicações; golpear direitos sociais privatizando a Previdência, acabando com a aposentadoria por tempo de serviço, licença maternidade, entre outras coisas; restringir direitos democráticos com a implantação de voto distrital, cerceando a liberdade partidária – intentos que necessariamente levantariam consideráveis parcelas da nação para resistir. Foi o que ocorreu.

Em torno do arco partidário denominado “contras” (PCdoB, PT, PDT, PSB), juntaram-se dissidentes do PSDB, PMDB e até do PTB. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) colocou boa parte da opinião pública católica do país em estado de alerta contra os intentos revisionistas. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) inspirou a desconfiança da consciência jurídica nacional sobre os propósitos da Revisão.

No movimento sindical o coro da CUT e das CGTs em defesa dos direitos sociais dos trabalhadores foi engrossado pelas federações e confederações, de tal forma que o presidente da Força Sindical, Luís Antônio Medeiros, enfrentou um ensaio de rebelião de suas bases contra a atitude abertamente patronal anti-operária assumida pela entidade no episódio.

O Estado-maior da Revisão logo sentiu, a partir da pressão vinda de baixo, que, se esta contava com cômoda maioria no Congresso, fora da Praça dos Três Poderes ela era um corpo estranho na sociedade, hostilizado nas praças, ruas e escolas, só encontrando abrigo seguro nos escritórios das grandes empresas ou redações da imprensa empresarial.

Além do isolamento social preocupante, para quem carecia de um mínimo do consenso para alterar a Constituição do país em capítulos tão polêmicos, os arautos da Revisão esbarraram numa sucessão de episódios que também contribuíram para tumultuar o ambiente político no qual transcorreria a assembléia revisora. Um time perde seus craques

Para início de conversa, já não estava no Palácio do Planalto o arcanjo do neoliberalismo, Fernando Collor de Mello. Ocupa agora a presidência Itamar Franco, frágil, mas de passado nacionalista e pouco estimulado a ajoelhar e rezar pelo catecismo neoliberal. De Itamar não partiu, é verdade, nenhum sinal de contestação ao processo revisional, mas também dele não se viu qualquer incentivo às principais sandices dos reformadores da Carta Magna.

No instante em que revisionistas e não-revisionistas trocavam as primeiras cutiladas na peleja que se iniciava, ouviu-se um barulho no porão da casa; quando acenderam a luz, eram os mais ilustres revisionistas pilhados no ato de surrupiar o leite das crianças e a sopa dos velhinhos: começava a CPI do orçamento. O flagrante desfalcou os revisionistas de seu marechal de campo, Genebaldo Correia, do PMDB da Bahia, e de sua cabeça pensante, o hábil e experiente deputado do Rio Grande do Sul, Ibsen Pinheiro.

A Revisão passou a marchar em terreno minado. O Regimento Interno proposto por Nelson Jobim para alijar os contras e impedir a obstrução cumpriu e papel exatamente inverso do pretendido, pois afastou o conjunto dos parlamentares, inclusive dos partidos revisionistas, de qualquer interferência no processo de discussão, negociação e deliberação sobre as emendas à Revisão.

Os contras exploraram magistralmente o episódio. Do plenário do Congresso ergueram-se as vozes dos insatisfeitos e o relator passou a ser criticado de tal forma que seu prestígio e legitimidade foram postos em questão.

Os parlamentares do Norte e Centro-Oeste passaram a ver na Revisão uma manobra dos empresários do Sul para diminuir a representação política de seus Estados e concentrar ainda mais os investimentos e incentivos federais nas regiões mais desenvolvidas, em detrimento das que eles representavam.

A caça ao tesouro

Na ponte-de-comando revisionista, os primeiros sinais de preocupação foram emitidos no sentido de que, se não fosse possível fazer a Revisão completa, pelo menos o botim dos chacais fosse garantido: a quebra dos monopólios, fundamentalmente o das telecomunicações e o do petróleo.

As telecomunicações concentraram a cobiça dos consórcios formados por bancos, construtoras e pelo menos um grande jornal, O Estado de S. Paulo, e a maior rede de televisão do país, a Globo. A Revisão era o pretexto, ou melhor, o meio para se chegar a um negócio de 50 bilhões de dólares.

A pressão social exercida de fora para dentro, a indiferença do presidente Itamar Franco, mesmo diante do empenho de seu ministro da Fazenda, a desconfiança da massa anônima de congressistas de que os interesses dos grandes empresários falava mais alto do que as necessidades do país e a eficiente obstrução dos contras conduziram a Revisão à paralisia.

Acrescente-se, ainda, como fatores de dispersão e debate do plano econômico de FHC, a apuração na Comissão de Constituição e Justiça das responsabilidades dos imputados na CPI do Orçamento e a articulação de candidaturas aos governos estaduais e à presidência da República.

O relatório do deputado Nelson Jobim propondo a quebra do monopólio estatal do petróleo semeou mais confusão na seara da Revisão. O relator cometeu a imprudência de não ouvir a Petrobras. É como se a Nasa não fosse consultada num projeto norte-americano de mandar o homem a Marte. Pior, Jobim infestou seu parecer de informações duvidosas e dados suspeitos, colhidos de consultorias estrangeiras e da Fiesp, inimigos jurados da Petrobras. Foi um escândalo.

Cientes do risco de fracasso, os neoliberais tentam salvar a Revisão adiando-a ou vendendo a patranha da chamada “constituinte exclusiva” para reformar a Constituição, modelo adotado por Menem na Argentina.

Impedir a Revisão, o que parece mais provável, não deixa de constituir uma importante vitória do nosso povo e de suas correntes democráticas e socialistas e tonifica os músculos das correntes populares para enfrentar seus inimigos nas futuras e decisivas batalhas. A próxima: eleição para presidente da República.

* Deputado federal pelo PCdoB de São Paulo.

EDIÇÃO 33, MAI/JUN/JUL, 1994, PÁGINAS 9, 10, 11