A trajetória singular e até certo ponto ambígua deste maranhense de 68 anos é prova viva da complicada relação entre vanguardas latino-americanas de inspiração européia e as condições estruturais dos países subdesenvolvidos. Sua obra compreende duas fases: a primeira marcada pelo desmonte da sintaxe poética – operada pela idéia de exploração da dimensão material dos signos e de construção de uma poesia visual -, base das vanguardas concreta e neoconcreta; a segunda, relacionada ao rompimento com as vanguardas, à militância no Partido Comunista e ao alinhamento com as concepções sobre cultura popular elaboradas nos CPCs da UNE. Nessa época, com o panorama político nacional dominado pela discussão das "reformas de base" de Jango, Gullar passa a escrever poesia de cordel. De sua pena nasceram clássicos como João Boa Morte – Cabra Marcado para Morrer e o Poema Sujo.

Autor de um ensaio já clássico, Vanguarda e Subdesenvolvimento, onde discute a dominação cultural e a alienação das vanguardas, ultimamente o poeta andou despertando novas polêmicas. Sua última obra aborda o problema da crise da Arte, relacionando-o com a sempre complicada relação entre Arte e Mercado. A partir de sua fina argumentação – respaldada em uma visão ampla da História da Arte e da relação sujeito-objeto no processo artístico Ferreira Gullar nos desperta uma saudável dúvida acerca daquilo que vivenciamos na atualidade: a crise geral da Arte? Ou, para além disso, a crise de uma determinada forma de assim concebê-la, gestada segundo as necessidades do merchandising cultural? Princípios: De que forma o senhor caracteriza a crise da arte contemporânea?

Gullar: Trata-se de um processo real, não de uma empulhação. É um processo longo, que começa com o cubismo, quando Picasso pinta a Les Demoiselles d'Avignon, quadro que rompe com a sintaxe da pintura tradicional. Ali começa esse processo. Surge o cubismo, que é uma cubificação da natureza, e depois o cubismo analítico, que é uma desintegração dessas formas geométricas de planos abstratos. Então surgem dois caminhos na arte: de um lado, o desenvolvimento dessa arte abstrata que nasce da cubificação, desemboca no neoplasticismo de Mondrian e vai se desenvolver criando uma linguagem geométrica abstrata, esse é um caminho; o outro é o que vai dar no dadaísmo, que tem início quando Picasso e Braque começam a pregar nos quadros pedaços de jornal, envelopes de carta, etc. Ao invés de desenharem um envelope de carta, eles pegavam um envelope, recortavam e colavam na tela. Essa colagem, utilizando um material de fora da pintura, um material já existente, criou uma revolução que foi o gênero chamado colagem, em seguida muito utilizado pelo dadaísmo. E, por insignificante que pareça, a partir daí a pintura vai se desintegrando. De um lado, ela elimina a figura, que torna-se abstrata, geométrica; de outro, elimina o pincel, o desenho, o trabalho do artista como tal. Então vem MarceI Duchamp, pega um urinol, desses de boteco, assina um pseudônimo e manda para uma exposição de arte. O que ele está dizendo com isto? Primeiro: o artista não precisa esculpir nem pintar para fazer Arte; Qualquer objeto retirado de sua função normal, isolado como forma, é arte. Isso vai desintegrando os princípios, as noções, os valores da arte. São coisas importantes, do ponto de vista da experiência visual e cultural, mas que na verdade são altamente destrutivas.

No Brasil, o neoconcretismo leva essas experiências a um radicalismo extremo. Por isso ele é antecipador. Na pintura, a Lígia Clark leva o quadro a ficar totalmente branco; quando o quadro fica totalmente branco ela deixa de usar a tela e passa a usar formiplac; quando ela está usando formiplac passa a ser uma coisa estritamente material; aí ela começa a cortar o formiplac, o quadro estufa, deixa de ser uma superfície plana e daí a pouco está no chão, virou uma escultura. Não é mais pintura, virou uma forma no espaço. Esse processo vai desintegrando a linguagem.

Em resumo, o principal problema da arte contemporânea é que se confundiu expressão com arte. Perdeu-se a noção de que uma coisa pode ser expressiva sem ser arte. Por exemplo: se eu dou um grito, isso é expressão, mas não é arte. Para que esse grito se torne arte, é preciso que eu o transforme num poema, ou que um pintor como E. Münch faça um quadro como "O Grito", em que aquilo vira uma obra plástica. Se eu me sentar no chão em cima de terra, mesmo que seja no museu, não é obra de arte. Pode ser uma atitude, uma performance adotada como protesto, como manifestação, mas não é obra de arte.

Princípios: Qual é exatamente a diferença entre expressão e obra de arte?

Gullar: A obra de arte, ao contrário da expressão pura, necessita da elaboração de uma linguagem. É o que eu digo: tudo isso chega a um ponto tal que um pintor como Joseph Bueys – que levou suas experiências a um radicalismo extremo – afirma que todo mundo pode fazer arte. Claro! Se arte é pegar, como ele faz, um pedaço de trilho, cortar e pendurar na parede, qualquer pessoa pode fazer. Mas eu duvido que qualquer pessoa escreva uma sinfonia como Stravinsky, ou pinte uma Guernica como Picasso. Por isso eu afirmo: não é uma empulhação, mas uma confusão que vai surgindo de um processo de desintegração da linguagem.

De modo que, para mim, a crise baseia-se, por um lado, na confusão entre expressão e arte, que são coisas diferentes; por outro lado, há também o problema da busca obsessiva do novo. Buscar o novo, do ponto de vista da arte, é uma futilidade. Você faz o novo – e não existe arte que não implique no novo. Eu não vou escrever um poema que já foi escrito, nem vou repetir o meu próprio poema. Qualquer poema que eu escreva, para ser poema, deve ter algo de novo dentro dele. Mas não precisa ser um paletó de três mangas. Isso é um outro dado.

Antigamente, Leonardo da Vinci sentia-se orgulhoso por ter mestres, e quando, em Milão, encomendaram a escultura de um cavalo, ele saiu atrás de cada obra dos escultores anteriores a ele, para aprender e só então se aventurar a fazer a sua escultura. Na época moderna, ao contrário, ninguém quer ter mestres, todo mundo quer inventar a arte por si mesmo, todo mundo quer ser pai e mãe de si mesmo. Hoje, se você disser para qualquer pessoa que ela aprendeu alguma coisa com alguém, ela te dá um tiro, ela não aprendeu nada com ninguém, ela inventou tudo. Quer dizer: isso é o que essa pessoa pensa.

Princípios: Podemos dizer então que a crise da arte é uma crise de pressupostos, de princípios, de concepções do que seja a arte?

Gullar: Basicamente é isso. A origem, como eu falei, está em um processo verdadeiro, que não é embromação mas resultou nisso: na desintegração desses valores, desses princípios. Então hoje não há valor algum. Mas, ao dizer isso, eu me refiro apenas ao setor radical, porque os verdadeiros artistas continuam fazendo arte. Há muitos bons pintores, no Brasil e lá fora, que têm noção do que estão fazendo e que não embarcaram nessa canoa furada. Mas o grande problema é que a crítica e as instituições – Bienal de São Paulo, museus de arte – todas embarcaram nessa loucura.

Princípios: Isso atinge mais o setor das artes plásticas do que outros setores?

Gullar: Sim. Isso tem uma raiz econômica, o que prova que é falsa a crise. Porque vanguarda houve no teatro, no cinema, na música, na poesia. Mas todos foram lá, absorveram a inovação e retomaram para o caminho largo da criação. Nas artes plásticas não. Até hoje continua a mesma coisa.

Princípios: Verifica-se hoje uma profunda vinculação entre artes plásticas e desenho industrial. Os artistas parecem só estar preocupados com a busca de novos materiais que causem espanto e rompam com a indiferença da mídia. Isso é Arte?

Gullar: Não é não. Isso é próprio da produção comercial. A indústria de eletrodomésticos tem sempre que inventar uma geladeira meio torta, com uma cor diferente, com uma forma diferente de abrir. Isso faz parte do marketing comercial. A Arte não tem nada a ver com isso, mas foi contaminada por esse espírito. Na Arte, de fato, essa busca do novo é um reflexo da busca da novidade que você encontra no design.

Princípios: Hoje em dia – como o senhor próprio afirma – existe uma forte tendência a se pensar que tudo é arte, que qualquer um é artista. Esse tipo de pressuposto não contribuiria para um esvaziamento da reflexão do papel do sujeito e do trabalho no ato estético?

Gullar: Evidente, evidente. Essa afirmação a que eu me referi, segundo a qual arte todo mundo pode fazer, isso é uma mentira e desvaloriza o artista. É um democratismo, uma falsa liberalidade que não tem valor algum, porque é mentirosa. De fato, se você admite que qualquer um pode fazer arte, pode parecer que sua visão é igualitária. Mas as pessoas não são iguais, elas têm direitos iguais. Nem todo mundo é Zico. Qualquer um pode jogar futebol como Zico? Isso é uma mentira, o que não quer dizer que o Zico seja superior a ninguém. Mas no futebol ele é melhor do que a maioria das pessoas, incluindo as que também jogam futebol. Qualquer um pode sentar no piano e tocar o Noturno n° 2 de Chopin? Não é verdade. Mas hoje se afirma isso e todos aplaudem. Agora, a consagração disso só continua nas artes plásticas. Porque nas artes plásticas amarram-se três pedras num arame e aquilo é "arte". Como qualquer um pode fazer isso, tem até sentido dizer que qualquer um faz arte essa arte que não é arte. Mas, saindo do terreno das artes plásticas, qualquer um faz cinema? Qualquer um compõe as tocatas e fugas de Bach? Evidente que não.

Princípios: Em seu livro Argumentação contra a Morte da Arte o Sr. afirma que "a transmutação do material em espiritual no ato poético não se faz por milagre. Cria-se com trabalho, domínio dos meios de expressão, acumulação gradativa da experiência ". A arte contemporânea não estaria profundamente influenciada por uma visão negativa do trabalho como fardo, sacrifício?

Gullar: Sim, claro. Totalmente negativa. Quando você adota essa atitude de que basta dependurar uma quantidade de corda no teto de uma galeria para ter uma expressão artística, então isso está implícito. Primeiro, porque não é ele (o artista) quem sobe no teto; ele não fez as cordas; ele não amarrou as cordas. Um artista, há alguns anos atrás, expôs em uma galeria no Rio uma grande quantidade de bronze desfiado, isto é, uma massaroca de fios de bronze que pesava duas toneladas e ocupava toda a galeria. Quando eu vi aquilo fiquei me perguntando por que ele fez aquilo e por que a galeria expôs. Ninguém vai comprar duas toneladas de fios de bronze, porque é uma coisa feia, pesada, cara e também uma bobagem. Então por que a galeria estava expondo aquilo? A galeria é uma casa comercial. Vai expor o que não vende? Qual a razão disso? Eu me perguntei e fui lá. E, como quem não quer nada, encostei em uma mocinha e falei assim: vem cá, eu estou achando estranho isto aqui. Ninguém compra… o artista está vendendo o quê? Aí ela abriu uma gaveta que estava cheia de desenhos do artista: guaches, aquarelas, etc. Ele vendia desenhos. Veja bem: no fundo, ele fazia desenhos iguais aos de qualquer outro artista, mas sucede que aquela obra ali, supostamente de vanguarda, era simplesmente marketing para chamar a atenção das pessoas. Então o artista vive de se fazer famoso ficando nu no museu, colocando duas toneladas de bronze na galeria e o que ele vende é até ruim, de baixa qualidade, convencional, igual ao que um outro qualquer faria. Mas esse outro não tem a esperteza de colocar duas toneladas de bronze na galeria. É um jogo de natureza meramente comercial.

Princípios: A arte está hoje submetida aos princípios que regem as relações de mercado, o que faz com que a maioria das obras artísticas se tornem mercadorias comuns, objetos industriais como outros quaisquer. Essa submissão não toma a arte muito vulnerável a determinações estranhas aos princípios da liberdade e da criatividade do artista?

Gullar: Claro. Esse exemplo que eu dei é típico dessa visão comercial. O problema da comercialização nasce com a sociedade contemporânea, com o capitalismo nasce isso. Quando Manet, junto ao grupo impressionista, cria o Salão dos Recusados – que é o início da revolução moderna da Arte -, o que era aquilo? É que no Salão Oficial, na França – um grande Salão de Arte anual – havia um júri composto de professores da Escola de Belas Artes. Aquele júri era a bolsa que estabelecia o valor das obras de arte. Quem ganhava prêmios naquele salão imediatamente passava a ter clientes para comprar suas obras. Só que, em vez de ser o mercado que determinava o seu valor, era um grupo de professores, acadêmicos. Então quando Manet manda para o salão oficial um quadro que retratava uma mulher nua, sensual, aquilo causou um escândalo tal que o júri não aceitou o quadro. A obra não foi aceita nem para ser exposta, conseqüentemente não poderia ser premiada. Daí criou-se o Salão dos Recusados, isto é, daqueles que não tinham sido sequer aceitos pelo júri. Mas, na verdade, tudo isso refletia a necessidade de que o valor da obra de arte não fosse mais determinado – no capitalismo, isso era um absurdo – por um júri. Tinha que ser determinado pelo mercado. De fato é isso. E eu não o digo para desmoralizar a experiência impressionista, porque, independente disso, é uma arte de grande valor, de grande qualidade e que merecia ter o seu lugar na sociedade, não podia ser discriminada por aquele grupo de professores. Mas também, junto com isso, estava essa necessidade de fazer com que o mercado determinasse o valor, e não um júri.

Esse é o processo. Inclusive essas performances e outras formas de Arte que não criam um objeto de arte são, no fundo, também uma fuga ao capitalismo, uma rejeição do artista em criar objetos vendáveis. Quando o artista cria uma performance, aquilo não pode ser vendido. Só que o processo da sociedade capitalista é tão infernal que transforma aquilo em valor comercial. Quer dizer: o artista não pode vender o objeto mas ele vira espetáculo. Não tem saída. Ele não resolve o problema e ainda destrói a arte. Então é preferível tentar – já que vive dentro do sistema – impedir que o sistema determine a tua expressão. É isso o que os grandes artistas fazem. Por exemplo: Samico, um importante gravador brasileiro radicado no Recife, faz apenas uma gravura por ano. É um exemplo de artista que resiste a esse processo. Um outro exemplo está na poesia. Como ela não vale nada, ela não entrou nessa paranóia. Ela se mantém, na literatura brasileira como na literatura mundial, muito mais independente, autônoma e criativa do que esse tipo de arte, em que o artista, querendo ou não, está envolvido com o mercado, e é arrastado por ele.

Princípios: A indústria cultural está hoje cada vez mais concentrada. Alguns dados apontam que o setor farmacêutico e o cultural são os que passam pelo maior número de fusões e aquisições. Grandes conglomerados como a ABC-Disney, a Time- Warner, a Hearst Corp. e a Globo concentram cada vez fatias maiores do mercado cultural. Até que ponto isso pode contribuir para o processo de padronização e esterilização da produção cultural?

Gullar: Eu distingüo arte de verdade de entretenimento. Eu acho que televisão é entretenimento, não é arte. É evidente que, se você escreve uma novela e uma peça de teatro, tudo é dramaturgia. A novela de televisão também exige destreza, domínio, imaginação, etc. É uma diferença de grau. Na peça de teatro o ator também faz dramaturgia, ele também tem imaginação, etc.

Princípios: E tem a indústria cinematográfica…

Gullar: Tem a indústria cinematográfica. Mas sucede que a diferença é a seguinte: o que define a arte é que ela é, primeiro, o trabalho sobre uma linguagem; segundo, ela não pode estar sujeita a uma urgência de tempo, a datas marcadas, a determinadas coisas que são contra a própria natureza da criação. E tão pouco ela pode ser feita às carreiras, sem o amadurecimento e sem que haja tempo de o artista rever o que fez. É um processo complexo, eu vou exemplificar com um poema. Certa vez cheguei a São Luís, hospedei-me em um hotel onde havia uns bem-te-vis cantando lá atrás. Então eu comecei a ouvir aqueles bem-te-vis, primeiro como qualquer pessoa ouvia. Daí a pouco eu comecei a lembrar da minha infância e então aqueles bem-te-vis já não estavam cantando ali, mas há quarenta, cinqüenta anos de distância. Comecei então a entrar no processo poético, a partir dessa mistura do tempo passado com o tempo presente, e comecei a escrever o poema. Anotei o poema. No dia seguinte, comecei a trabalhá-la. E aí eu fui depositando, aos poucos, naquele engradado de palavras, cada vez mais significado, mais expressão, mais lembrança, mais sentimento, mais domínio verbal. Então o processo da poesia, tal como o da obra literária, é que você cria um espaço no qual você pode verter a tua vida, a tua experiência de ser humano com o trabalho que você domina.

Agora, compara isso com uma série para televisão. Eu tenho que escrever um capítulo por dia. E não dá tempo de rever, de reescrever, se estiver errado sai errado. Vai para a mão do diretor: ele tem tempo, como o diretor de teatro, de ler, refletir? Não. Ele não tem tempo de amadurecer a obra que ele próprio vai dirigir, não chega sequer a entender direito o que está ali. Aí entrega para o ator, que também não tem tempo de ensaiar. Tudo isso significa uma progressiva perda de qualidade. Por mais imaginativo que seja o autor do texto e por melhores que sejam o diretor e os atores, tudo vai sendo feito por baixo. Essa é a natureza do entretenimento e da cultura de massa. Não dá para você comparar isso com o trabalho de arte, que demanda tempo para a sua realização com perfeição, com alta qualidade, com o máximo que aquela obra possa render. A cultura de massa é um perigo para a sociedade: ela superficializa e iguala todos os valores, não leva em conta os conteúdos verdadeiros. Ela é realmente a comercialização do espírito, da alma, do comportamento humano.

Princípios: Então, ao contrário do que muitos pensam, seria útil, ainda hoje fazer uma distinção entre cultura de massa e cultura erudita, bem como entre cultura de massa e cultura popular?

Gullar: Sim. Eu, por exemplo, não sou contra o entretenimento. Muitos autores de novela são pessoas que têm visão dos problemas, e através de algumas novelas conseguem até colocar algumas questões. Isso é verdade. Mas quando eu falo do problema da arte como realização da expressão criadora, há uma incompatibilidade. Quantas vezes eu olho o que escrevi para a televisão e fico furioso? Embora eu tenha escrito aquilo às pressas, eu procurei dar o máximo de mim, para aquilo ter alguma qualidade. Mas quando eu vejo… Não culpo o ator ou o diretor. É uma máquina. Ninguém tem tempo e está tudo justificado. A única coisa que vale ali é que tem que estar no ar porque o anúncio está lá.

Princípios: Ainda em Argumentação contra a Morte da Arte o senhor afirma que "hoje, tendências radicais contemporâneas consideram que a arte não se afirma como obra, que ela repele qualquer juízo crítico e se separa de qualquer experiência da realidade, de qualquer finalidade social ou ideológica". Não seriam essas tendências contemporâneas excessivamente irrealistas? É possível separar a arte do social e do ideológico?

Gullar: A arte tem autonomia. Em outras ocasiões, eu já defendi a tese de que a arte é prioritariamente ideológica. Hoje, não assino mais embaixo dessa afirmação que eu próprio fiz. Você tanto pode fazer arte tratando de questões sociais, e fazer boa arte, de alta qualidade, como fez Brecht, por exemplo, como você pode fazer arte que não trate de nada disso. Romeu e Julieta não trata desse problema, certo? Mas é uma grande obra de arte. Então, não é o ideológico ou não-ideológico que define a arte. Evidentemente que seria uma simplificação dizer que todas as questões são ideológicas. Eu sei que há uma tendência – interpretação da qual eu próprio partilhava – que afirma que tudo é ideológico. Na verdade existem gradações e diferenças.

Princípios: Qual a relação entre Arte e História? Podemos encontrar na História da Arte os determinantes do formato atual da experiência artística?

Gullar: Não podemos compreender a arte de hoje sem conhecer a história da arte e a história da sociedade. É impossível compreender o que aconteceu, sem isso. Existe uma relação entre o processo histórico e o processo artístico e cultural. Mas a relação do artístico e do cultural com O econômico – que é a base, o processo fundamental da sociedade – é uma relação distante. O econômico não determina sempre, de uma mesma maneira e num mesmo grau, o cultural e o artístico.

Princípios: Vamos falar um pouco de Cinema. Sabe-se que o Cinema é a mais industrial das artes, e que toda indústria, para crescer; deve ter apoio. O Brasil já foi detentor de grandes indústrias de cinema. Hoje o cinema nacional ensaia uma recuperação. Falta apoio do Governo?

Gullar: O Governo Itamar até que deu início a uma retomada desse caminho de ajuda do Governo Federal ao cinema brasileiro. O Collor desmontou tudo. É verdade que, àquela altura, o cinema já vinha com muitos problemas. Mas aí o Collor veio e, em vez de ajudar a solucionar a crise, desmontou todo o sistema oficial de ajuda, inclusive de subvenções, destruiu a Lei Sarney – que era uma grande fonte de recursos para o cinema -, criou depois a Lei Rouanet, cuja regulamentação tornou praticamente inviável a captação de recursos, com exigências de tudo quanto é ordem. Depois disso, na época em que eu trabalhava no Ministério da Cultura, o ministro Luiz Roberto Nascimento e Silva começou o trabalho de simplificação dessa lei, que já o Antônio Houaiss tinha também iniciado. Depois foi criada uma nova lei, que permite que a bolsa participe do financiamento do cinema. E os cineastas estão achando que a coisa está caminhando, alguns filmes estão sendo feitos.
O cinema brasileiro tinha enveredado por um caminho negativo. Isso é de responsabilidade dos cineastas, que começaram a fazer filmes de baixa qualidade, na suposição de que estavam sendo avançados. Pornochanchadas, filmes obscenos, sem nenhuma qualidade artística. Isso não é cinema, quer dizer, se o cinema fizer só isso, ele não é nada. Os cineastas ficaram achando – que nem os que fazem essas artes plásticas de araque – que o escândalo e a novidade é que são o negócio. E o resultado é que o filme brasileiro se desmoralizou. Por essas e, ainda, por outras coisas: filmes que ninguém entendia, coisa distanciada… Se há alguma coisa que não se pode fazer é cinema hermético. Cinema é arte de massa. É a grande arte da época moderna, da época das grandes cidades, dos grandes conglomerados urbanos, é a arte industrial por excelência. Fazer isso de forma hermética é piada. O resultado: o cinema perde mercado. Eu lembro que quando o Joaquim Pedro fez "Macunaíma" – um dos primeiros filmes brasileiros, do Cinema Novo, a dar bilheteria muita gente ficou contra ele, dizendo que ele estava fazendo concessões. Até tinha uma brincadeira: "ninguém gosta do filme do Joaquim Pedro, só o povo". Era um preconceito contra o povo gostar. Queria-se fazer um cinema deliberadamente de elite. Isso evidentemente não poderia dar certo. Então os cineastas também têm responsabilidade nessa crise, da qual, felizmente, estamos saindo. O cinema brasileiro é um fator importante da cultura nacional, tem uma contribuição muito grande à vida cultural brasileira e eu faço votos de que ele sobreviva e volte aos áureos tempos.

Princípios: Em entrevista à Folha de S. Paulo de 28/08/94, o senhor critica as noções de expressividade artística da Gestalt. Existe a forma pura, vazia de conteúdo e de significação?

Gullar: A Gestalt é uma teoria importante, que teve uma voga muito grande em determinada época. Desde a primeira vez em que eu a li – através de uma brilhante tese de Mário Pedrosa, apoiada na Gestalt – eu escrevi a ele uma carta demonstrando minha discordância. Porque é correto que a forma tem expressão em si mesma, isso é correto. A própria Gestalt dá o exemplo de desenhar duas formas, uma arredondada, a outra aguda como um raio, e colocar dois nomes – malumba e taqueta. Aí pergunta-se: a qual dessas formas correspondem uma e outra palavra? É claro que você vai colocar malumba na forma redonda e taqueta na forma aguda. Isso mostra que existe uma expressividade que está na própria forma, tudo bem. Mas a forma pura de laboratório, essa existe só no laboratório. A cruz gamada, por exemplo, é um símbolo que existia já no Antigo Egito. Não tinha o significado do nazismo. Se você isolar essa forma de tudo e olhá-la como tal, ela é uma forma interessante, enquanto combinação de elementos visuais. Mas quem, na época moderna, pode dissociar aquela forma da sinistra aventura nazista? As formas adquirem significado historicamente, não podemos falar de forma pura, sem associação alguma.

Princípios: Que balanço o senhor faria hoje do Movimento Modernista de 22? Que papel jogou o Modernismo para a construção de nossa identidade nacional?

Gullar: Um papel importante. O Modernismo se valeu de valores que estavam sendo gestados pela vanguarda européia – pelos movimentos artísticos mais avançados das duas primeiras décadas do século XX – para redescobrir o Brasil. Uma das características desses movimentos que surgiam a partir da primeira década do século XX era o retomo à busca da pureza, da ingenuidade, do primitivismo e de valores subjetivos do inconsciente. Freud surgia e trazia a descoberta de um mundo inconsciente, primitivo, interior. E isso terminou favorecendo os artistas brasileiros na criação do antropofagismo e na busca das origens indígenas da cultura brasileira. Quer dizer: eles iam para um primitivismo que não era o primitivismo subjetivo de Freud, mas um primitivismo da cultura brasileira, da origem cultural do povo brasileiro. É uma coincidência interessante e uma forma de usar, de maneira criativa, a idéia importada, em vez de simplesmente aplicá-la tal como chegava. Isso valorizou a cultura brasileira na medida em que valorizou essas fontes. A partir daí temos obras de importância extraordinária, como a do Oswald de Andrade, e mais que essa a do Mário de Andrade, a ficção e as obras teóricas. Ocorre também a valorização da música brasileira. Temos Villa-Lobos, que é um gênio musical induzido por esses movimentos a ir às fontes da música brasileira, a conhecer as canções de roda, a viajar pelo interior do Brasil à caça da música indígena e de todo esse universo brasileiro. Isso é uma coisa de enorme significação.

Princípios: O senhor participou das Ligas Camponesas e foi militante do Partido Comunista. Qual é hoje sua relação com o marxismo?

Gullar: No momento em que eu entrei para as Ligas, o Brasil fervia, reivindicando mudanças importantes na sociedade brasileira. A reforma agrária, como hoje, já era uma questão importante para mudar as relações de propriedade e de trabalho no país. Eu entrei nisso por paixão, por solidariedade. Mais tarde eu percebi – até por participar da direção do movimento – que as Ligas Camponesas tinham muito de aventura. Apesar da generosidade do Julião, de sua sincera entrega a uma causa popular, por inexperiência, por imaturidade, havia algo de errado dentro daquilo. Eu, como estava na luta, resolvi entrar no Partido, porque era uma instituição de tradição, de experiência. Comecei então a dialogar e percebi que havia um pouco mais de sensatez.
Tendo entrado para o partido, comecei a ler o marxismo. Quando eu caí na clandestinidade, fui a Moscou com o objetivo de aprender o marxismo. E fiz lá um curso de metodologia do capital, que foi fundamental para mim. A influência que o marxismo teve na minha poesia está no que influenciou a minha maneira de pensar.
Hoje em dia eu tenho uma série de críticas no que diz respeito à própria relação entre marxismo e cultura. Eu discordo de algumas afirmações do próprio Marx com relação à cultura. Acho que ele tem uma visão evolucionista da arte, coisa de que eu discordo. Penso que a arte muda, não evolui. Não se trata de evolução. Não se pode dizer que Rodin é mais avançado do que Fídias. Cada obra de Arte é plena em si mesma. Quando Beethoven escreve a Nona Sinfonia, ela é seu próprio começo e fim. Está concluída. Se, depois disso, Stravinsky faz o "Pássaro de Fogo", isso não é um avanço ou um retrocesso: é uma outra obra, que reflete um outro tempo. Não se trata de evolução, é outra coisa. A sociedade muda nas suas relações. A Ciência se desenvolve, progride, mas a Ciência é diferente da Arte. A economia se desenvolve, progride, mas é de outra natureza. A arte não tem essa natureza. A natureza da arte é outra, porque cada obra de arte é plena em si mesma. Ela não evolui, ela muda. Ela se torna mais complexa, é evidente. Por exemplo: o teatro grego, de Sófocles ou de Eurípedes, tem uma complexidade psicológica, das relações humanas.
O teatro moderno é mais rico do ponto de vista da compreensão dessas relações humanas, sociais, políticas, econômicas, ideológicas, porque a própria sociedade se tornou mais complexa. Então o teatro reflete essa complexidade da vida social. Mas isso não quer dizer que esse teatro é mais avançado que o de Sófocles. É outra coisa, que reflete outra idade do Homem, outra época da sociedade humana.

Princípios: O que o senhor pensa sobre o futuro do socialismo?

Gullar: O capitalismo é um processo natural. Como a natureza, o capitalismo é injusto, amoral e desastrado. Mas, ao mesmo tempo, criativo e fecundo. É como a correnteza de um rio: sobe, arrebenta, mata; ao mesmo tempo, fecunda, cria. Essa brutalidade do capitalismo é parecida com a da natureza. Já o socialismo é a criação humana. É o homem regulando o rio, fazendo com que aquela capacidade de criar as coisas seja justa, e não desastrada, e não uma hora boa, outra hora um desastre. O capitalismo cria riqueza e há milhões de miseráveis, vivendo em um mundo cheio de riquezas. Nada mais justo do que tentar regular esse rio, e fazer com que ele promova a riqueza e a justiça. Justiça e igualdade são valores inalienáveis do ser humano. Nem o maior ditador do mundo teve coragem de dizer: "eu sou injusto mesmo e vou impor a injustiça". Mesmo impondo e massacrando, ele sempre tentará se colocar como justo, como equânime. De outra forma ele seria mais rapidamente repelido pelo seu povo.

Tenha eu ou não razão na minha maneira de interpretar, é inegável que o socialismo, na experiência deste século, fracassou. Mas a sociedade jamais aceita injustiças, e jamais se contentará em ouvir dizer que tudo vai ser injusto mesmo e que nós todos devemos ficar quietinhos, aceitando a injustiça. Isso não vai acontecer. A luta pela justiça e pela igualdade continuará enquanto o ser humano for ser humano, ou, pelo menos, enquanto ele não alcançar a igualdade. Se ele chegará lá ou não, não sei, espero que chegue. Mas o fato é que ele jamais aceitará passivamente a desigualdade. A luta pode até, momentaneamente, refrear, diminuir. Agora, dizer que vai ser assim mesmo e que nós vamos ficar contentes com um mundo injusto, isso não vai acontecer. Nunca.

FÁBIO PALÁCIO DE AZEVEDO é jornalista e mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. A presente entrevista foi feita em 24/10/96.

GULLAR, Ferreira. – Vanguarda e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. 2ª ed.1979. 3ª ed.1984.
GULLAR, Ferreira. Argumentação contra a Morte da Arte. Rio de Janeiro: Revan, 1993. 4 ed.1994.

EDIÇÃO 48, FEV/MAR/ABR, 1998, PÁGINAS 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73