Quem vive do trabalho recebeu, às vésperas do Natal de 1997, um saco, não de presentes, mas de maldades. A turbulência financeira, depois econômica, surgida na Ásia, repercutiu de uma forma rápida e profunda sobre o Brasil, e o governo, numa tentativa de evitar o agravamento rápido da situação, dobrou os juros e, em seguida, para tapar o rombo aumentado nas contas públicas, baixou um pacote fiscal duríssimo, empurrando o País na ladeira da recessão. Nesse quadro, o desemprego pulou para um índice altíssimo, cresceram as reduções dos salários e, de repente, os trabalhadores se viram novamente diante de uma conjuntura econômica e social muito grave.

O presidente Fernando Henrique Cardoso, num programa de TV, tentou descrever essa situação como inesperada e independente de qualquer responsabilidade do governo brasileiro. Chegou a usar uma imagem, já utilizada por Marx em outro contexto, dizendo que a crise desabou em cima do país como "um raio num céu azul". Na realidade, o céu não estava de forma alguma azul. A situação do Brasil já era bastante difícil, particularmente a dos trabalhadores. As taxas de desemprego eram altas e crescentes. As perdas salariais iam-se acumulando. Prosseguia o sucateamento das redes públicas de educação, saúde e transporte. Então, o céu já estava "cor de chumbo". E, quando o governo propagava que a tempestade estava passando, ela voltou com mais vigor.

Os trabalhadores ficam um pouco intrigados para entender por que isso aconteceu. Por que essa crise surgiu na Ásia, e não nos Estados Unidos, na Europa ou na América Latina? E por que, tendo surgido na Ásia, em países tão distantes do nosso, que têm uma história e uma cultura tão diferentes e possuem moedas com nomes muito esquisitos para nós (iene, rupia, bath etc), por que, de repente, essa crise repercute de forma tão veloz e tão profunda sobre o Brasil, a ponto de jogar o País de novo num mergulho recessivo?

Podem ser apontadas quatro razões básicas.

A primeira razão é que o sistema capitalista mundial se tornou, a partir dos anos 1980, mais internacionalizado e mais financeirizado e, por isso, muito mais desigual e instável do que já era. O sistema capitalista sempre foi integrado internacionalmente. Já surgiu num quadro de expansão comercial mundial, que se foi aprofundando ao longo de sua história. Mas, indiscutivelmente, hoje ele se encontra num grau de integração financeira, comercial e produtiva muito maior do que já houve ao longo dessa história. Ao lado disso, aumentou muito a financeirização do capital. Quer dizer, cresceu o papel das ações, dos títulos, dos fundos de pensão e dos fundos mútuos, da especulação em Bolsa e no, mercados de câmbio, como formas de financiamento do capitalismo atual. Aumentou enormemente esse giro que se faz em escala mundial e em prazos muito curtos. E. com isso, a situação do capitalismo, que sempre foi de instabilidade, de crises periódicas, tornou-se ainda mais oscilante e mais insegura do que era antes. Essa é a primeira razão que temos de entender, hoje, para compreender por que as crises podem propagar-se com uma velocidade muito maior do que antes e podem tornar-se mais profundas e mais destruidoras de que as crises capitalistas anteriores. A segunda razão é que, nesse processo dos anos 1980 para os anos 1990, a região capitalista do mundo que apresentava taxas de crescimento médio mais altas, foi exatamente a Região asiática, particularmente o chamado Leste da Ásia, a parte da Ásia que tem seu centro no Japão e nos países ou regiões especiais que o circundam: a Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong, Cingapura, Tailândia, Filipinas, Indonésia e Malásia. Exatamente os países que se encontram, hoje, no "olho do furacão".

Foram eles que apresentaram, nessas duas últimas décadas, as taxas de crescimento econômico mais altas e conseguiram um grau surpreendentemente rápido de industrialização. Fizeram isso na base de um grande esforço exportador, de uma abertura de sua economia para fluxos importantes de capitais externos. E, por isso, eram até recentemente celebrados como exemplos a serem seguidos pelos outros países capitalistas periféricos como o Brasil. Conseguiram desenvolver-se rapidamente com base num grande esforço exportador e não na substituição de importações. Representavam, assim, dizia-se, um novo caminho, um novo modelo de desenvolvimento capitalista. O Japão puxou a fileira nos anos 1960, seguido pelos “tigres asiáticos” de primeira geração nos anos 1970 (Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong, Cingapura) e, nos anos 1980, pelos “tigres” de segunda geração (Tailândia, Malásia, Indonésia, Filipinas).

Exatamente por ocuparem essa posição estratégica no período recente do capitalismo, é que esses países se tornaram o elo mais fraco da corrente e a crise estourou e vem se propagando a partir deles. Esta é a segunda razão por que a crise ressurgiu exatamente no Leste da Ásia, e porque a partir daí está se espalhando pelo mundo capitalista.

A crise não repercutiu da mesma forma em todos os países do mundo. Os Estados Unidos, por exemplo, até agora, estão relativamente imunes a ela. Sofreram quebras em suas Bolsas de Valores, principalmente a de Nova Iorque, mas isso ainda não se traduziu em grande impacto sobre a economia real do País. O crescimento prossegue, a inflação declinou e a taxa de desemprego caiu nesses últimos anos. O País tem um déficit enorme em suas relações externas com os outros países capitalistas, um déficit enorme.

A crise da Ásia jogou o país em um novo mergulho recessivo na conta corrente de pagamentos, sobretudo em sua conta comercial. Mas, independente disso, os Estados Unidos ainda estão sendo beneficiados por uma situação de crescimento econômico e por uma montanha de capitais aplicados em sua Bolsa, em seus mercados de câmbio. Então, eles estão-se beneficiando imediatamente com a crise na Ásia, que está enfraquecendo alguns de seus concorrentes mais sérios, como o Japão e, portanto, facilitando sua disputa pela hegemonia mundial.

A crise da Ásia jogou o país em um novo mergulho recessivo

A Europa Ocidental, em torno da Alemanha, com suas projeções pelo Leste europeu, também já sofreu respingos da crise, mas ainda não foi atingida por ela de uma forma profunda. Houve repercussão nas bolsas e alguma repercussão nos mercados de câmbio. Mas ainda não houve uma reversão significativa na situação econômica desses países. Então, a crise se concentrou no Leste da Ásia e, fora dessa Região, de uma forma destacada, no Brasil. Mesmo na América Latina, ela não produziu os mesmos efeitos sobre todos os países. O Chile, embora faça parte da área de cooperação econômica Ásia-Pacífico, conseguiu, até agora, se preservar relativamente dos efeitos da crise. Mesmo a Argentina, nossa vizinha, já sofreu algum impacto, mas não tão sério quanto o do Brasil, porque, inclusive, se apóia muito no mercado brasileiro por intermédio do Mercosul e, só na hora em que a situação brasileira se tornar mais dramática, é que a situação argentina também sofrerá a reversão.

Portanto, a outra questão que deve chamar nossa atenção, é que o Brasil foi um dos países mais atingidos pela crise surgida na Ásia. A Bolsa de Valores de São Paulo, no pico do crash, no final de outubro, foi a que sofreu a maior queda no mundo capitalista. Maior, inclusive, do que a queda das bolsas nos países asiáticos que estavam envolvidos de forma direta na turbulência. Para frear a fuga de capitais, que começava a ocorrer, o Brasil teve de dobrar suas taxas de juros, tornando-as as mais altas do mercado financeiro mundial. Mais altas inclusive que as da Coréia do Sul, da Tailândia, das Filipinas, dos países diretamente abalados pela crise. Por que o Brasil está nessa posição? Não basta afirmar que a crise é externa, como o presidente e seus ministros alegam. A crise financeira é seguramente de âmbito mundial, atinge em graus e formas diferentes todos os países. Ela pode, também, vir a se tornar uma crise econômica mundial. Mas repercute no Brasil de forma tão séria por características da economia e da sociedade brasileiras, que se agravaram ao longo desses últimos anos. Portanto, esse é o terceiro ponto que precisamos entender. Tem a ver com nossa dependência estrutural e com a política econômica do governo Fernando Henrique. Uma política que começou a ser traçada em suas linhas principais no governo Collor; foi retomada com vai-e-vens no governo Itamar e que foi aprofundada pelo atual governo. Foi esta política que tornou o País mais dependente ainda do sistema capitalista mundial e, de uma forma particular, dos fluxos de capital que andam rapidamente de um lugar para outro e que, por isso, são chamados de “voláteis”. Já foram chamados, no passado, de dinheiro quente, que pula feito pipoca, de um mercado para outro, em busca das garantias e das taxas de juros mais atraentes.

Não só o Brasil se tornou mais dependente de empréstimos, financiamentos e investimentos diretos estrangeiros, como se tornou mais dependente dessa forma de capital especulativo, volátil. Então, é essa política que tornou o Brasil mais vulnerável e, portanto, na hora em que a crise voltou com força, o País foi sacudido. A crise já tinha dado seus prenúncios gradativos nos Estados Unidos, no final dos anos 1980, e no Japão, no início dos anos 1990. Houve uma quebra da libra inglesa, em 1992, e uma quebra da lira italiana, também em 1992. Então, a instabilidade financeira já vinha dando sinais, não era imprevisível. Houve um grande impacto com a crise do México, em 1994, da qual o Brasil conseguiu recuperar-se ao longo de um esforço enorme. E, quando começava a respirar novamente, veio um impacto ainda mais sério e mais profundo com a crise asiática. Então, a terceira razão que precisamos entender é a política econômica do atual governo e o projeto mais profundo, neoliberal, que está por trás dela, que nos tornou mais dependentes e mais vulneráveis, no momento em que o sistema capitalista mundial todo se tornava mais integrado e muito mais instável.

A Bolsa de Valores de São Paulo sofreu a maior queda em todo mundo

O governo lançou sua âncora num pântano e essa opção é de sua responsabilidade e das forças políticas e sociais que o apóiam.

Portanto, não enfrentamos uma crise apenas externa, imprevisível, um raio que de repente desabou no céu azul e bonito da pátria. Ao contrário, a situação brasileira já era difícil e foi a opção do governo que nos colocou numa posição ainda mais vulnerável.

E quando a crise irrompe, o que faz o governo? Em vez de reavaliar e reformular sua política, ele a aprofunda para não mexer na taxa de câmbio, não desvalorizar o real – a grande âncora da estabilidade monetária e eleitoral do presidente Fernando Henrique Cardoso. Então, puxa a taxa de juros para cima e prejudica ainda mais o crescimento da economia. Ao fazer isso, abre um buraco enorme nas contas públicas. Para cobri-lo, tem de aumentar os impostos e as tarifas, por um lado, e cortar gastos, por outro. Tem de acelerar ainda mais as privatizações, praticamente liquidando o restante do patrimônio público, acumulado a duras penas por várias gerações, com trabalho e luta. Então, o governo aprofunda o rumo neoliberal e neocolonial e, com isso, torna a crise mais grave, criando uma situação em que ela pode vir a tornar-se ainda pior do que já é atualmente.

São esses quatro pontos que precisamos aprofundar para entender a situação atual do Brasil. Por que a crise se refletiu de uma forma tão rápida e profunda sobre o Brasil? Por causa de nosso desenvolvimento capitalista dependente e por causa da política econômica, do projeto neoliberal adotado pelo atual governo. E por que tende a agravar-se ainda mais, nossa situação? Porque, diante da crise, o governo aprofundou sua política de abertura financeira, juro, altos e endividamento descontrolado, colocando o País numa situação ainda mais vulnerável.

Para aprofundar nossa compreensão, tentemos fazer um retrospecto rápido da crise atual, que vem se desenrolando há vários meses. Pode-se dizer que ela já passou por três fases distintas.
O primeiro sintoma da crise ocorreu na Tailândia no mês de maio de 1997, quando houve um primeiro abalo na Bolsa de Valores de Bangcoc e, em seguida, um reflexo também na economia interna da Tailândia. O governo, naquela ocasião, desvalorizou um pouco a moeda tailandesa, vendeu parte de suas reservas cambiais, restringiu um pouco a atuação do capital especulativo, adotando algumas medidas técnicas, que não cabe aqui detalhar. e, com isso, a crise diminuiu temporariamente e foi empurrada adiante.

Nesse contexto, irresponsavelmente, alguns funcionários do governo do presidente Fernando Henrique, inclusive o presidente do Banco Central, Gustavo Franco, chegaram a dizer que a crise não tinha nada a ver com o Brasil, que era um problema da Tailândia. E que, ao contrário, o Brasil iria até se beneficiar, porque o capital que saísse de lá viria para cá. Mas a crise continuou evoluindo e, no final do mês de junho e começo de julho, voltou com muito mais força. Houve uma quebra maior na Bolsa de Valores de Bangcoc, capital da Tailândia, houve uma nova fuga da moeda tailandesa, que estava há mais ou menos quinze anos com o mesmo valor e, portanto, estava sobrevalorizada como a nossa. O governo da Tailândia começou vendendo suas reservas de caixa, perdendo quase tudo, e terminou capitulando. Tornou o câmbio flutuante e a moeda afundou, a Bolsa de Valores despencou e a crise se propagou. Todos os países que viviam uma situação semelhante, com relações econômico-financeiras muito estreitas com a Tailândia, também sofreram o impacto, como as Filipinas, a Indonésia e a Malásia, principalmente. Esses quatro países – Tailândia, Indonésia, Malásia e Filipinas –, como já recordamos, constituem o bloco que se chama de novos “tigres” asiáticos, da segunda geração. Foram exatamente esses quatro países os primeiros a serem atingidos, porque seu desenvolvimento era mais recente e se encontravam em situação mais vulnerável. Em todos eles, a trajetória foi a mesma: perdas no comércio externo, quebra nas bolsas, perda de valor das moedas nacionais, corridas contra as reservas cambiais dos países, que tiveram de desvalorizar suas moedas ou elevar as taxas de juros, ou as duas coisas. Ao fazer isso, entraram numa crise em espiral. O crescimento desacelerou; o desemprego aumentou; as falências começaram a ocorrer uma atrás da outra, de grandes empresas e dos bancos a que elas deviam; e os países foram jogados numa crise profunda. Hoje, suas moedas já foram desvalorizadas entre 40% a 60%, o que representa uma enorme desvalorização. Suas Bolsas de Valores já caíram também aproximadamente 40% a 60% e o movimento financeiro foi mais ou menos reduzido à metade. Ou seja, a crise financeira nesses países é total. Alguns deles tiveram que recorrer ao Fundo Monetário Internacional, fazendo acordos em condições extremamente duras, para obter ajuda, como fizeram a Indonésia e a Tailândia e estão negociando as Filipinas e a Malásia.

Esses países têm relações muito estreitas com os “tigres” asiáticos da primeira geração, por meio de investimentos de empresas e de empréstimos e financiamentos, feitos por bancos e corretoras das praças de Hong Kong, Cingapura e Taiwan. Quando também estes últimos entraram em crise, a crise asiática ingressou em seu segundo estágio.

Os “tigres” da primeira geração seguiram o modelo japonês e tiveram uma grande expansão nos anos 1970. São a Coréia do Sul, separada à força da Coréia do Norte; Taiwan, que não é bem um País, mas uma parte da China ocupada pelas tropas derrotadas do Kuomintang com apoio norte-americano; por sinal, para mostrar sua situação artificial e sua dependência dos Estados Unidos, a moeda de Taiwan se chama também dólar; Hong Kong, que até recentemente era uma colônia inglesa e foi reintegrada à China, como uma região administrativa especial; e Cingapura, uma cidade-Estado separada da Malásia, que é uma grande praça financeira e centro de grandes negócios na Ásia, embora já tenha também uma indústria de tecnologia avançada importante.

Portanto, esses quatro países ou regiões especiais – Cingapura, Hong Kong, Taiwan e Coréia do Sul – foram o segundo grupo a entrar em crise bastante profunda a partir do mês
de outubro. Em síntese, o primeiro sintoma surgiu na Tailândia em maio. A crise se reduziu
um pouco, mas voltou no final de julho, atingindo aqueles quatro países da segunda geração de “tigres”. Veio novamente com maior impulso no final de outubro e acabou atingindo a primeira geração dos “tigres” asiáticos. A crise tende a alcançar agora o “tigre” pioneiro e maior de todos, o Japão. É o terceiro estágio.

O presidente do Banco Central chegou a dizer que a crise não atingiria o Brasil

Isso acontece porque esses países, particularmente a Coréia do Sul e Taiwan, em parte Hong Kong e Cingapura, têm relações muito estreitas com o Japão, que faz grandes investimentos neles. Eles têm também vínculos estreitos com bancos japoneses. Então, na hora em que a crise se agravou nesses países, ela rebateu no Japão porque, é claro, se há uma quebra nas empresas, elas se tornam insolventes e deixam de pagar aos bancos. E, como os bancos locais se refinanciavam nos bancos japoneses, quando esses bancos locais entraram em crise, não tiveram como manter em dia seus compromissos com os bancos japoneses. Estes últimos sofrem o impacto e entram também em dificuldades. Então, a crise bancária se tornou ameaçadora. Ora, o Japão já enfrentava uma situação grave desde o início dos anos 1990. Vinha enfrentando uma crise bancária séria, devida a uma sequência de falências nos negócios imobiliários nos Estados Unidos e também no próprio Japão.

Houve uma grande especulação imobiliária nos anos 1980, que envolveu grandes bancos e corretoras. Nessa situação, já instável, com a crise na Coréia do Sul e em outros países, os bancos japoneses entraram em uma situação extremamente delicada. A não ser que o governo japonês crie um programa, parecido com nosso Proer, que assuma essas dívidas e que as securitize, é grande o risco de uma falência em cadeia de bancos e corretoras japonesas.

Uma idéia da gravidade da situação é dada pela Coréia do Sul, que tinha reservas em moedas estrangeiras, no final de outubro, de cerca de US$ 22 bilhões, com o agravamento da crise e a fuga de capitais em meados do mês de novembro, tem agora, em dezembro, apenas US$ 6 bilhões. De US$ 22 para US$ 6 bilhões. Só que ela tem dívidas a pagar até o dia 31 de dezembro de 1997, de cerca de US$ 20 milhões. Quer dizer, tem US$ 6 bilhões em caixa e US$ 20 bilhões a pagar até o final do ano. Portanto, ela se tornou praticamente insolvente. Por isso, foi necessário fazer um acordo rápido com o FMI, para evitar que a Coréia do Sul se declarasse insolvente, como o México em 1982, tornando a crise extremamente dramática. Mesmo que o problema imediato seja equacionado, a Coréia do Sul tem mais cerca de US$ 50 bilhões a vencer em dívidas, até aproximadamente os meses de outubro e novembro de 1998. Se ela não pagar essa dívida, os bancos japoneses, ingleses e americanos, que são os credores, sofrerão um impacto muito importante.

Portanto, quando a crise atingiu os primeiros “tigres” asiáticos de uma forma especial, a Coréia do Sul, ela começou a ameaçar o Japão, configurando-se um terceiro estágio em seu desenvolvimento. Se isso acontecer, se a crise repercutir de forma profunda sobre o Japão, iniciando uma série de falências de empresas e bancos japoneses, o Japão, que já amarga um crescimento de cerca de 1%, pode cair a zero. Já tem um desemprego em torno de 4%, em um País que praticamente não conhecia desemprego. Se a crise abalar o Japão, rapidamente atingirá, de forma profunda, os Estados Unidos.

Porque o Japão é o principal detentor de títulos do Tesouro americano. O Japão detém cerca de 30% da dívida em títulos do governo americano. Esses títulos são as reservas dos bancos japoneses. Se os bancos japoneses forem pressionados a arcar com os prejuízos de empréstimos irrecuperáveis, como aliás estão sendo, o recurso que terão para fazer frente a parte dos compromissos será vender os títulos americanos no mercado internacional para fazer dinheiro.

Se os bancos japoneses jogarem essa massa de títulos do governo americano no mercado financeiro internacional, eles vão ser desvalorizados. É a lei da oferta e da procura: com muita oferta de títulos para poucos compradores, seu valor cairá. Na hora em que cair, a situação financeira dos Estados Unidos, que já é delicada, porque há, neste ano, um déficit comercial de cerca de US$ 200 bilhões, e uma dívida pública extremamente alta a ser financiada, se tornará gravíssima. Então, a maneira de evitar que a situação nos Estados Unidos escape de controle será aumentar o valor das taxas de juros, oferecer juros mais altos sobre os títulos, para poder atrair o restante do capital que existe espalhado pelo mundo e assim financiar o Tesouro americano. Na hora em que os Estados Unidos puxarem esses juros e sugarem esse resto de capital volátil e instável, que está a girar pelo mundo, então a crise do conjunto do mercado capitalista se tornará gravíssima. Particularmente em países como o nosso, a fuga de capitais será imediata e nossa situação, que já é difícil, se tornará pior.

Portanto, na realidade, nós estamos nessa situação: a crise já atingiu de forma profunda os países do Leste asiático e ameaça se propagar para o Japão. A crise sofreu, portanto, um processo de ampliação geográfica, foi se espalhando de um País para outro, embora continue concentrada basicamente no Leste da Ásia. Ao mesmo tempo, houve um aprofundamento. A crise começou como uma crise financeira. Das Bolsas de Valores se propagou para os mercados de câmbio, porque os investidores estrangeiros, quando querem sair das Bolsas, precisam transformar seu dinheiro, de moeda local em estrangeira. E, então, a crise vai para o mercado de câmbio, porque eles aparecem por lá para comprar grandes quantidades de dólares para poderem sair do País e, dessa forma, acabam criando um impacto no mercado de câmbio, pressionando a taxa cambial. Para segurá-la, o governo vende suas reservas e, se não consegue deter o fluxo, é obrigado a desvalorizar a moeda local ou a elevar as taxas de juros, como fez Hong Kong e Cingapura. Mas, ao elevar as taxas de juros, o governo cria uma situação insustentável para que as empresas continuem se expandindo e agrava a crise de endividamentos. As empresas começam a cortar investimentos, refazer planos. O comércio se encurta e a crise, de financeira, se transforma em econômica. Atingindo a economia real, começa a diminuir a atividade econômica, a aumentar o desemprego, a pressionar o salário dos que continuam ocupados, a desequilibrar completamente os orçamentos públicos e a reduzir os gastos sociais do governo. A crise, de econômica, começa a transformar-se em social e política, como já é visível na Indonésia e na Coréia do Sul.

Em face desse quadro inquietante, há duas alternativas. A primeira é que o grande capital financeiro internacional e as instituições que o representam – como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial –, os governos americano e japonês e também os dos países europeus consigam mobilizar-se e montar um programa de ajuda, que segure a crise nos países asiáticos. Todo o esforço do grande capital, agora, é criar esse dique, para que a crise continue fundamentalmente na Ásia, não se propagando de forma dramática para o Japão, porque então vai rebater nos Estados Unidos e na Europa. Eles querem erguer uma barreira. Todos os programas de ajuda para a Coréia do Sul, por exemplo, são na realidade para que os bancos sul-coreanos possam pagar os bancos americanos e japoneses. Quer dizer, é uma ajuda direta à Coréia do Sul, mas na verdade é uma ajuda indireta para a seu próprio capital financeiro, uma ajuda para que seus bancos não entrem em falência.

O Japão é o maior credor dos EUA, sendo o principal detentor de títulos do governo americano

Não será fácil fazer isto, porque o volume de recursos é fantástico. O Fundo Monetário Internacional já raspou o tacho. Antes de entrar nesse conjunto de pacotes, o valor da reserva do Fundo estava em torno de U$$ 30 bilhões. Por isso ele pleiteia mais recursos dos países-membros. Mas há uma dificuldade de juntar o capital necessário para segurar essa crise. Mas, se eles conseguirem superar as dificuldades e reunir o capital público e privado necessário, a crise ficará com o foco na Ásia, embora já tenha respingado para outros países.

Se eles não conseguirem confinar a crise nos “tigres” asiáticos, ela atingirá de forma profunda o Japão e, a partir dele, os Estados Unidos e a Europa Ocidental. A crise se tornará mundial, no conjunto do sistema capitalista. A conjuntura econômica mundial sofrerá uma reversão e voltaremos àquela conjuntura do final dos anos 1970 e início dos anos 1980 ou mesmo à situação de 1929 a 1933, de extrema gravidade para o conjunto do mundo capitalista. São essas as duas alternativas.

O trágico para nós, como para os países asiáticos já atingidos, é que, mesmo que ocorra um cenário menos danoso, nossa situação já é extremamente grave. Se ocorrer esse cenário de agravamento da crise, então nossa situação se tornará explosiva. Ou seja, nós já estamos numa crise muito grave, e com possibilidades de ela se tornar mais séria ainda. E nessas conjunturas, já sabemos, a conta é enviada para ser paga fundamentalmente pelos trabalhadores e pelos pequenos e médios empresários.

Para finalizar, como entender o significado profundo da crise asiática em andamento? Ela representa a crise terminal do neoliberalismo? É o toque de finados desse projeto recente de desregulamentar, desestatizar e tirar a proteção do trabalho, incrementando o desenvolvimento do capitalismo e os ganhos do grande capital dessa forma extremamente perversa? Em minha opinião, não. Porque hoje, na realidade, no mundo capitalista, há três grandes modelos: o anglo-americano, que foi a origem do projeto neoliberal; modelo europeu-continental, que é capitalista e monopolista, mas preserva traços e conquistas do Estado de Bem-Estar Social, alcançados pelas lutas operárias de várias décadas e pela presença próxima de um sistema socialista alternativo, hoje desmontado; e o modelo nipo-asiático, porque começou no Japão e se propagou para outros países vizinhos, que é um modelo de taxas de salários muito baixas, mas que mantém certa estabilidade no emprego da força de trabalho e reserva um papel importante ao Estado e, por isso, não é um modelo neoliberal estrito. A propaganda que o neoliberalismo fez desse modelo, interessada e distorcida, destacava apenas o grande esforço exportador. Mas internamente o Estado desempenha um papel decisivo, cria restrições às importações, resguarda o sistema bancário nacional, financia as empresas de forma direta, escolhe os setores prioritários para a expansão. Então, não é caracteristicamente neoliberal. Por isso mesmo, os Estados Unidos se prevalecem da crise atual para exigir que esses países imediatamente se enquadrem no modelo anglo-americano. As condições que estão sendo impostas com os programas de ajuda exigem a redução das barreiras às importações, a abertura de novos setores para a penetração de capitais externos, a desestruturação de bancos locais para permitir que os bancos estrangeiros entrem nos mercados financeiros locais diretamente, a flexibilização dos direitos dos trabalhadores.

Então, agora é que se tenta enquadrar esses países de forma mais profunda no modelo neoliberal, porque, no fundo, esse modelo é a maneira dos Estados Unidos preservarem sua hegemonia e recuperarem sua influência econômica, política e cultural no conjunto do mundo capitalista.

A crise, que era financeira, tornou-se econômica na Ásia e no Brasil

Aos trabalhadores restam também duas alternativas. Uma seria capitular às dificuldades, que são grandes, e buscar uma linha de acomodação, de perder menos. É a linha da Força Sindical, de certos setores políticos de centro. Não apenas se resignam ao capitalismo e à dependência, mas também aceitam como inevitável o projeto neoliberal e apenas procuram,
dentro dele, obter concessões. É uma linha evidentemente destruidora da soberania nacional e de qualquer projeto próprio dos trabalhadores.

A outra alternativa implica três tarefas articuladas. A primeira é persistir na resistência econômica, tentar defender os empregos e os salários, impedir o desmonte da legislação trabalhista e da organização sindical. Essa resistência econômica precisa, no entanto, ser combinada com a apresentação de uma alternativa política ampla, que possa atrair outras forças sociais e políticas e criar uma coalizão suficientemente forte para derrotar o governo Fernando Henrique, sua aliança conservadora e sua política desnacionalizante e antitrabalhista, abrindo novas perspectivas para o País.

Precisamos, portanto, não só de resistência econômica e sindical, mas também de uma alternativa política de curto prazo, em torno de alguns objetivos imediatos, com a participação de amplas forças políticas e sociais, para demonstrar na prática que, mesmo nos marcos do capitalismo, é possível uma política econômica alternativa menos danosa ao País e a seus trabalhadores.

Mas essas duas tarefas, de resistência econômica e alternativa tática, não se viabilizarão se, ao mesmo tempo, não nos empenharmos em formar e unir forças sociais e políticas mais avançadas, que compreendam que os resultados obtidos contra o neoliberalismo nos marcos da ordem capitalista vigente, por mais importantes que sejam, são limitados e provisórios.

Por isso, mesmo apoiando esses objetivos parciais, temos de continuar buscando melhorias mais profundas e duradouras, que exigirão não apenas políticas alternativas dentro do capitalismo, mas um sistema alternativo ao capitalismo, uma forma diferente de organizar a política, a economia e a cultura do País, Sistema que, na época contemporânea, apesar da derrota temporária da maioria das experiências socialistas, tem de continuar a ser buscado no rumo de um projeto socialista renovado.
Por isso, encerro essa breve exposição com a lúcida advertência do escritor português e comunista José Saramago, em debate recente em São Paulo: "Para que haja socialismo, é preciso que haja socialistas", porque o socialismo não é um produto espontâneo da História.

Eu acrescentaria: para que haja socialismo, é preciso que haja, sobretudo, operários, socialistas.

* Jornalista. O presente texto é uma versão condensada de sua intervenção no II Seminário Operário do PCdoB/SP, realizado em dezembro de 1997.

EDIÇÃO 49, MAI/JUN/JUL, 1998, PÁGINAS 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36