Os autores seguintes não tiveram o cuidado de Antônio Cândido de circunscrever essa influência à formação de sua própria geração, generalizando-a para todo um período histórico. Obscureceram, assim, toda a linhagem historiográfica que, vinda de décadas antes do aparecimento de Evolução Política do Brasil, desenvolveu-se à margem de sua influência, ou contra ela, nas décadas seguintes. E reduziram a visão marxista da história de nosso país à linhagem iniciada por Caio Prado Júnior.
Sem desmerecer a importância deste autor, entretanto, é preciso repor as coisas em seu lugar, num quadro em que Caio Prado Jr. tem destaque principalmente devido à influência que alcançou nos meios acadêmicos.

A influência marxista na análise da formação social brasileira aparece inicialmente nos escritos de Manoel Bomfim, autor de A América Latina (1905), onde a luta de classes e as relações econômicas entre a metrópole e as colônias surjam através da metáfora biológica da relação entre o parasita e o parasitado. Mais tarde, em O Brasil na história (escrito em 1926 e publicado em 1930), a influência do marxismo é maior. Ele preconiza uma "explosão revolucionária", a "conquista do poder por uma classe que nunca o ocupara", para impor "um novo padrão de valores". Denuncia o positivismo e sua concepção de progresso ligado à ordem, que resultou na defesa do "privilégio prático do capitalismo", "onde o trabalho é inexoravelmente espoliado e tiranizado" (Sussekind, 1984).

O tema principal de Bomfim foi a formação e o desenvolvimento da nação brasileira, a necessidade e a possibilidade de superar a dominação colonial, no passado, e imperialista, no presente. Possibilidade sinalizada já no século XVII, diz em O Brasil na história, quando os brasileiros expulsaram os holandeses, vencendo "a potência mais poderosa do mundo de então". Prova, diz, da falência dos argumentos racistas sobre a incapacidade do Brasil e dos brasileiros superarem a dominação colonial e imperialista em virtude do clima, ou da indolência, "conclusões", diz "de uma sociologia para brancos" (Bomfim: 1930). Superação que só ocorrerá através de uma mudança revolucionária, diz no posfácio de 1931 a O Brasil Nação, onde acusa a Revolução de 1930 de limitar-se "ao mundo político dos governantes tradicionais" (Sussekind: 1984).

Manoel Bomfim não pode ser considerado, contudo, um autor marxista; seu radicalismo remonta à tradição jacobina que floresceu nas campanhas abolicionista e republicana
e conheceu seu clímax no governo do marechal Floriano Peixoto.

A análise marxista da história requer a assimilação de alguns conceitos básicos, como o de formação econômico-social, modo de produção, forças produtivas e relações de produção, que permitem identificar a natureza da estrutura de classes (e das próprias classes) de uma certa sociedade; a luta de classes que move a história; a natureza e o grau de desenvolvimento daquela formação histórico-social; e as possibilidades de evolução histórica nela inscritas. Uma formação econômico-social é constituída pelo conjunto de relações sociais determinadas historicamente, vinculadas às forças produtivas e à estrutura de classes de uma sociedade; o elemento constitutivo básico deste conjunto é a conexão estrutural entre forças produtivas e relações de produção. Ela evolui de forma contraditória, com elementos de um modo de produção presentes em outro nos períodos de transição, de tal forma que na maioria das vezes o conceito de determinado tipo de formação social não existe em estado de pureza (Moura, 1976).

No Brasil, "o debate científico sobre o modo de produção surgiu no bojo de um contexto político-ideológico, monopolizado, de certa maneira, pelo Partido Comunista do Brasil" (Lapa, 1980). Os espaços privilegiados deste debate foram o próprio partido, alguns círculos universitários, algumas publicações não acadêmicas, e excepcionalmente os sindicatos, "sempre no eixo Rio-São Paulo" (Lapa, 1980).

A produção científica dos autores comunistas decorria da necessidade de identificar a natureza e o caráter da revolução brasileira, e as classes sociais nela envolvidas; ela foi marcada, nos anos 1920, pela limitada assimilação do marxismo em nosso país e pela influência determinante da Internacional Comunista (IC).

Os dois principais teóricos marxistas foram, então, dois dirigentes comunistas, Astrojildo Pereira (secretário-geral do Partido Comunista do Brasil) e Octávio Brandão. Embora seja corrente apontar suas falhas, é preciso também (como faz Quartim de Moraes) contrastar suas obras com a produção da intelectualidade burguesa de então. Armados, embora rudimentarmente, com um corpo teórico fecundo como o materialismo histórico, eles conseguiram antever os efeitos que a crise mundial teria no Brasil. "Em face da retórica vazia dos liberais encardidos", sua análise política "mostrou-se incomparavelmente mais próxima do curso objetivo do processo histórico", sendo capazes de prever com dois anos de antecedência, em 1928, em documentos do Partido, o colapso do café, o confronto entre a Aliança Liberal e o poder oligárquico, e o levante armado de outubro de 1930 (Moraes: 1995; Pereira: 1982).

Em 1924, sob o impacto da leitura de Imperialismo, fase superior do capitalismo, como diz em suas memórias, Brandão escreveu Agrarismo e industrialismo, ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil (publicado em 1926, em edição do autor, sob o pseudônimo de Fritz Mayer, com a menção de ter sido impresso em Buenos Aires, para "desorientar a polícia"), livro que Astrojildo Pereira considerou como a "primeira tentativa feita no Brasil de análise marxista da situação nacional" (Brandão: 1978). Os erros flagrantes desse livro, somados ao impacto de sua condenação pela IC em sua fase mais esquerdista, soterraram suas eventuais qualidades. Nele, Brandão estudou o caráter da revolução brasileira, analisou nossa formação histórica, as classes e a luta de classes, tendo o mérito de compreender os danos do domínio imperialista e identificar a luta entre o imperialismo inglês, decadente, e o norte-americano, ascendente, pelo domínio de nosso país. Apontou também a luta entre a oligarquia latifundiária e a indústria que nascia, investindo contra as "sobrevivências feudais" (Brandão: 1978).

O debate científico sobre o modo de produção, no Brasil, nasce sob a égide do Partido Comunista do Brasil

Brandão defendia uma política de alianças com os setores progressistas e radicalizados de então, baseado na tese da terceira revolta, que esperava ocorrer após as revoluções tenentistas de 1922 e 1924, na qual o partido teria participação decisiva com a formação de uma "frente única do proletariado, da pequena burguesia e da grande burguesia industrial, contra o imperialismo e os governos dos grandes proprietários rurais feudais" (Brandão: 1978). Esta tese é repetida em "O proletariado perante a revolução democrática pequeno-burguesa", de 1928, onde Brandão propõe a aliança com a pequena-burguesia revolucionária, principalmente os tenentes (Brandão: 1985).

As idéias de Brandão foram acatadas em textos oficiais como as resoluções do II Congresso do Partido Comunista do Brasil, de 1925, que apontam a "luta entre o capitalismo agrário semifeudal e o capitalismo industrial moderno como sendo a contradição fundamental da sociedade brasileira após a República". Ou os documentos finais do III Congresso, de 1928-1929, onde prevaleceu a tese da esperada terceira revolta (Pereira: 1979). As resoluções deste congresso classificaram o Brasil como "um país de tipo semicolonial, economicamente dominado pelo imperialismo, ainda que politicamente independente": de economia agrária, dominada pela grande propriedade com exploração dos camponeses; onde o imperialismo impedia o "desenvolvimento autônomo e normal das forças produtivas"; onde, contudo, "involuntariamente", o imperialismo promovia "certas condições técnicas que favorecem esse desenvolvimento". Por influência da IC, apontava o caráter democrático-burguês da revolução brasileira, na qual a burguesia nacional capitulou perante o imperialismo e aliou-se aos latifundiários que estão no poder, acentuando "mais e mais a exploração econômica" pelo imperialismo, levando à radicalização dos trabalhadores urbanos e rurais e inclusive das "camadas mais pobres da pequena burguesia". Em consequência, certas camadas da pequena burguesia tendem para a revolução e para a aliança com o proletariado, embora a pequena burguesia seja incapaz de levar o movimento às últimas consequências, cabendo sua direção ao proletariado e seu partido, a quem cabe apoiar "os movimentos revolucionários em preparação", com base nos seguintes pontos "que constituem o conteúdo essencial da revolução em sua primeira etapa: a) solução do problema agrário, confiscação da terra; b) supressão dos vestígios semifeudais; c) libertação do jugo do capital estrangeiro" (Carone: 1982).

Os vislumbres teóricos de Brandão. entretanto, deram-se numa obra com forte sentido personalista e sem influência fora dos círculos comunistas. Astrojildo Pereira, escritor mais propriamente orgânico, foi o principal redator das resoluções dos congressos de 1925 e
1928-1929, e autor de vários artigos para a revista do Bureau Sul Americano (BSA) da IC, onde expunha a avaliação partidária da situação brasileira. Num artigo de 1928 ele caracteriza aquela época como "um período de transição entre a economia agrária e a economia industrial", onde a penetração imperialista se dava através de empréstimos ao Estado nacional, aos estados e municípios, e à iniciativa privada, oriundos da Inglaterra e, depois de 1921, crescentemente dos EUA, com presença de capitais franceses, alemães e italianos. Além dos empréstimos, a presença do imperialismo se dava em investimentos em bancos, ferrovias, indústrias, portos, energia elétrica, serviços públicos, fazendas de café, etc, sendo visível a tendência para o predomínio dos EUA (Del Roio, 1990).

Outro aspecto da atividade intelectual de Astrojildo foi o combate ao pensamento oligárquico. Num artigo publicado em A Classe Operária (1º-05-1929), submeteu as falácias expostas por Oliveira Viana em Populações meridionais do Brasil a uma crítica rigorosa e demolidora. Acusou-o de "justificar, histórica, política e socialmente, o domínio dos fazendeiros, dos grandes proprietários de terras, daquilo que o historiador chama, com admiração, a aristocracia rural". Desmontou a tese da inexistência da luta de classes no Brasil com um retrospecto dos conflitos sociais, concluindo que aqui houve "luta de classes da boa, evidente, caracterizada, autêntica". Ao assinalar as três consequências da obra de Oliveira Viana, Astrojildo demonstrou um domínio crescente do pensamento marxista ao concluir que da tese falsa da ausência da luta de classes no Brasil decorria outra, a compreensão do Estado como externo e superior às classes, cujo controle cabe (tese que coroa a argumentação daquele apologeta das elites) aos "fazendeiros de café, descendentes da velha aristocracia rural” (Pereira: 1979).

As idéias de Octávio Brandão e Astrojildo Pereira sobre a terceira revolta e a aliança com a pequena burguesia, e as resoluções do III Congresso, foram criticadas pela IC no final de 1929 (ver adiante) e pelo BSA. Na Conferência de Buenos Aires do BSA, em abril/maio de 1930, Astrojildo Pereira e Octávio Brandão foram acusados de desvios de direita e de "pequenos burgueses". A tese de Brandão, do caráter "democrático-pequeno-burguês" da revolução brasileira, foi acusada de menchevique, antimarxista e antileninista por negar a hegemonia do proletariado na revolução democrático-burguesa, e as resoluções do III Congresso foram consideradas oportunistas (Duller: 1977).

A precária assimilação do marxismo por Brandão e Astrojildo levou-os a erros, como a caracterização da revolução brasileira como democrático-pequeno-burguesa

A IC e seu BSA estavam, na ocasião, sob influência do esquerdismo das conclusões do VI Congresso, da política de "classe contra classe" e da condenação das alianças com outras forças. Entretanto, Astrojildo e Brandão foram condenados pelos erros que decorriam de sua precária formação teórica. Suas formulações chocavam-se em muitos aspectos com o pensamento de Marx e Lênin, faltando-lhes uma compreensão maduramente marxista da formação social brasileira, embora seus escritos mostrem que tateavam no rumo certo.

Os escritores comunistas nos anos 1920 combinavam seu próprio impulso de aplicar de forma original e criadora o marxismo que começavam a dominar, combinando-o com a influência das formulações da IC. Décadas mais tarde, fazendo a crítica daqueles esforços teóricos, Astrojildo Pereira diria que ouviam o galo cantar, sem saber onde (Pereira: 1979), exemplo de avaliação cujo rigor ressalta os erros e impede o reconhecimento dos acertos, entre eles o diagnóstico dos levantes tenentistas de 1922 e 1924, que eles viram corretamente não como meras manifestações de descontentamento mas reflexos de mudanças mais profundas, expressos no conflito entre o "industrialismo"que nascia e o "agrarismo" de raízes coloniais, diante dos quais a burguesia era incapaz de cumprir as tarefas históricas de sua própria revolução democrática.

As fontes do marxismo daqueles pioneiros foram, principalmente, o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, traduzido por Brandão e publicado em 1924 (Carone, 1986 – foi a primeira tradução brasileira do Manifesto), e escritos de Lênin, abundantemente citados por Brandão em "O proletariado e a revolução democrático-pequeno-burguesa". Se o domínio que tinham do pensamento marxista era ainda inicial, é preciso reconhecer também que o próprio conhecimento histórico do Brasil ainda era pouco desenvolvido e voltado para a legitimação das ações das classes dominantes. Seria preciso esperar ainda uma década para que estes estudos dessem um salto, iniciando o desbravamento de áreas importantes para o conhecimento de nossa formação histórica, como a economia, a sociedade, as classes, etc.

O outro elemento que aqueles escritores levaram em conta em seus textos foram as teses da IC. Desde sua fundação, os dirigentes comunistas procuraram aproximar-se da Internacional, ligar-se a ela, beneficiando-se de sua orientação teórica e política. Estavam, assim, pré-dispostos a receber favoravelmente também as teses que os ajudassem a compreender, do ponto de vista do materialismo histórico e da ciência socialista, a natureza de nossa formação histórico-social, da revolução que aqui ocorria, e dos papéis que, nela, cabiam à vanguarda proletária.

Na Internacional, a avaliação dos países da Ásia, África e América Latina resultou de uma elaboração lenta, que avançou, congresso a congresso, ao longo dos anos 1920. No VI Congresso, em 1928, a IC adotou a formulação que teria longa carreira nas décadas seguintes, caracterizando esses países como colônias ou semicolônias, dominadas pelo imperialismo e seus aliados internos, os grandes proprietários de terras feudais e o capital mercantil voltado para o comércio externo, e que viviam a transição do feudalismo para o capitalismo; sua revolução tinha, assim, um caráter democrático-burguês. Essa avaliação coincidia em muitos pontos com o próprio desenvolvimento teórico dos escritores comunistas brasileiros, como a denúncia do domínio imperialista, a compreensão de nosso passado (e do latifúndio, no presente) como feudal, e a avaliação da incapacidade histórica da burguesia para cumprir as tarefas democráticas e nacionais que se esperava dela.

As teses do VI Congresso da IC sobre os países coloniais e semicoloniais lançaram as bases daquilo que, no futuro, seria a compreensão do caráter dependente do capitalismo brasileiro: a penetração imperialista, em busca de mercados seguros de investimento e consumo, acelerava o desenvolvimento das relações de produção capitalista nestes países, onde a aliança entre a classe "feudal", o capital comercial e o imperialismo criava as condições para a reprodução e perpetuação da dependência. Esta é a raiz longínqua, e inconfessada, da teoria da dependência, que faria o sucesso de Fernando Henrique Cardoso nos anos 1960.

Mas, ao contrário do sociólogo, que tirou conclusões direitistas e conservadoras dessa análise, as conclusões do VI Congresso da Internacional abriam uma perspectiva avançada ao caracterizar a revolução nas colônias e semicolônias como democrático-burguesa, com o objetivo de romper o jugo imperialista e realizar da reforma agrária, permitindo o ulterior desenvolvimento econômico-social. Via, nesse quadro, a possibilidade de uma ação positiva da "burguesia industrial", raiz também longínqua das teses que atribuiriam um papel de relevo para a "burguesia nacional" em países de passado colonial. Se a "burguesia comercial", ou "compradora", e os latifundiários, são aliados do imperialismo, diziam as conclusões do VI Congresso, a burguesia industrial poderia ter um papel nacional-reformista e, segundo sua influência nas massas, opor-se ao imperialismo, podendo assim receber apoio dos comunistas (Del Roio: 1990).

Essas teses foram "postas em prática como modelo único para a América Latina pelo BSA da IC" (Lapa, 1980), e tiveram forte influência nas resoluções do III Congresso do Partido que, como vimos, abandonou a tese da revolução democrática-pequeno burguesa, identificando-a mais corretamente como "democrático-burguesa" a revolução que ocorria no Brasil (Pereira: 1979).

As teses do VI Congresso da IC sobre os países coloniais e semi-coloniais foram baseadas na análise da situação da Índia e, principalmente, da China, onde o levante proletário de 1927 fora derrotado e os comunistas massacrados em cidades como Cantão e Xangai. Para a América Latina, a análise baseava-se principalmente nos desdobramentos da situação mexicana, embora houvesse consciência das importantes diferenças entre os países do continente. principalmente entre o Brasil, a Argentina e o Chile, nos quais havia uma nascente burguesia industrial, e os demais países. O rico debate travado, que resultou nas teses do Congresso. continuou em 1929 e, no caso do Brasil. levou a uma série de reuniões, em novembro e dezembro de 1929, para estudar a situação do país e a atuação do Partido.

Tiveram a participação de um grupo de comunistas brasileiros que estavam em Moscou, de Astrojildo Pereira, secretário geral do Partido Comunista do Brasil, de August Guralsky (que se tomou secretário do BSA da IC sendo responsável pela implantação da orientação obreirista e esquerdista no Partido), entre outros. As reuniões foram dirigidas pelo próprio Dimitri Z. Manuilsky, secretário da IC (Lima: 1982).
Antecipando as críticas que foram feitas, meses depois, na Conferência de Buenos Aires (como vimos atrás), os escritos de Octávio Brandão e Astrojildo Pereira, e as res91uções do III Congresso do Partido foram severamente criticadas nessas reuniões (Lima: 1981). Em fevereiro de 1930, a Internacional divulgou a resolução sobre o Brasil, publicada por A Classe Operária em abril de 1930. Ela dizia que "no Brasil se desenvolvem as premissas de uma revolução do tipo democrático-burguês. O curso e o sucesso da revolução depende da classe que conquistar, nela, a hegemonia" (íntegra em Carone: 1982). Do ponto de vista tático, entretanto, a orientação esquerdista do VI Congresso e do BSA impôs o abandono da busca de uma aliança com os "tenentes", em nome da política de "classe contra classe", e deu origem ao "obreirismo" no Partido, versão sectária e mecanicista da orientação da Internacional para a proletarização dos partidos comunistas.

As idéias predominantes entre os comunistas a respeito da evolução das formações econômico-sociais, fortemente marcadas pelas teses do VI Congresso da IC, completaram-se nos anos seguintes quando se consagrou o esquema evolutivo de cinco tipos de relações de produção, da comunidade primitiva ao comunismo, uma generalização das conclusões de Engels sobre a história européia (em Origem da família, da propriedade privada e do Estado), e já era muito difundida desde a época da II Internacional, embora estivesse "longe de ser um dogma” (Sofri: 1987).

Em 1919, numa conferência sobre o Estado, Lênin havia abordado este esquema, afirmando sua validade para a Europa e sugerindo sua aplicação à "grande maioria dos países", que teriam evoluído da escravidão para o feudalismo (Lênin: 1968). Lênin procurava, aqui, a lei geral de desenvolvimento de todas as sociedades, mas tinha a prudência de deixar em aberto a possibilidade de variações locais, nacionais, dessa lei geral que, em sua formulação, não estava ossificada na visão de uma evolução unilinear para todas as sociedades.

Em fevereiro de 1931, a Associação dos Orientalistas Marxistas promoveu um debate, em Leningrado, cujos resultados assinalaram uma "etapa fundamental na marcha doravante vitoriosa da tendência unilinearista" (Sofri: 1987), baseada naqueles textos de Engels e Lênin, sem a prudência científica que convidava ao exame concreto de cada situação histórica particular. Em 1938, o engessamento teórico foi completado na fórmula staliniana segundo a qual "a história conhece cinco tipos fundamentais de relações de produção: a comunidade primitiva, a escravatura, o regime feudal, o regime capitalista e o regime socialista" (Stalin: 1978). Deve-se observar, aqui, que o fechamento do esquema interpretativo não era absoluto – o texto referia-se a cinco tipos fundamentais, e não a apenas cinco tipos. Entretanto, nas décadas seguintes, esta formulação foi a marca dos estudos históricos marxistas.

A severa e crescente repressão anticomunista sob o regime de Vargas foi agravada pelo esquerdismo obreirista e pela instabilidade na direção do partido (que prolongou-se até meados dos anos 1930), acontecimentos que tiveram, como consequência, a paralisação do debate e da elaboração teórica.
Evolução Política do Brasil, de Caio Prado Jr., apontada como obra inaugural dos estudos históricos marxistas em nosso país, foi publicada nesse contexto. Nela, diz o prefácio, pretende-se aplicar na análise do passado brasileiro um "método relativamente novo": a "interpretação materialista". Caio Prado Jr desmistifica os heróis e os grandes feitos – grandes apenas por concordarem "com os interesses das classes dirigentes". Valorizou as revoltas populares, tradicionalmente tratadas como explosões "bestiais", e fugiu do mero relato dos feitos oficiais, esmiuçando a conjuntura das diferentes épocas estudadas, tentando encontrar no conflito entre interesses econômicos, sociais e políticos a explicação para a ação dos agentes históricos. Esta foi sua inovação entre os escritores que se dedicavam à história do Brasil. Evolução política do Brasil e as outras obras que a seguiriam (Formação do Brasil Contemporâneo, 1942; e História Econômica do Brasil, 1945) nasceram como resposta a preocupações surgidas na militância política de seu autor. Fundador do Partido Democrático de São Paulo (1926) e da Aliança Liberal (1929), Caio Prado Jr. foi presidente da Seção Paulista da Aliança Nacional Libertadora (1935) e deputado estadual pelo Partido Comunista do Brasil (1947).

O ponto central de sua análise é a constituição da nação a partir da colônia e a busca da identidade nacional. É aqui que Caio Prado Jr. é mais desenvolto e tem uma contribuição consistente. Ele parte da interrogação sobre o "sentido" da colonização, concluindo que decorre da expansão comercial européia, que condicionou transformações econômicas, sociais e políticas de âmbito mundial, dando origem ao capitalismo moderno. O Brasil, diz, constituiu-se para fornecer mercadorias exigidas pelo consumo europeu. "No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização nos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial", "destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos americanos" (Prado Jr: 1963).

A questão central é a busca das articulações da exploração colonial com esse processo de transição do feudalismo para o capitalismo que ocorria nas metrópoles e suas consequências para a colônia. Polemizando com as teses da IC, Caio Prado Jr diz que nosso passado colonial nunca foi feudal, como não é semifeudal o latifúndio de nosso tempo. Foram o capitalismo, a empresa como um empreendimento de caráter capitalista, e o empresário, que dominaram nosso cenário econômico e social desde os primeiros tempos da colonização.

Da mesma forma como os escritores comunistas do começo do século, o marxismo de Caio Prado lr era limitado, fato que autores acadêmicos começam a reconhecer. Carlos Nelson Coutinho, por exemplo, mostra como, ao opor-se ao modelo interpretativo dominante na IC e no Partido Comunista do Brasil, ele usava um "estoque de categorias marxistas" pouco rico, confundindo o predomínio de relações mercantis com a existência do modo de produção capitalista, e usando de forma pouco rigorosa a noção de burguesia (Coutinho: 1989).

Caio Prado Jr. não trabalha, em seus escritos, com a noção de modo de produção, de formação econômico social, ou de relações de produção. Ao enfatizar a análise da circulação de mercadorias entre a Colônia e a Metrópole, deixa em plano secundário as relações de produção e, em consequência, a dinâmica interna da sociedade colonial – e essa é a principal debilidade de sua visão da história.

Muitos dos preconceitos correntes na época estão presentes em seus escritos. como a idéia de que, ao contrário dos portugueses, os demais povos europeus não se adaptam aos trópicos, ou a tese de que "boa índole" do brasileiro, exemplo para ele de um aspecto fecundo da escravidão: a "figura boa da ama negra", diz, cercou "o berço da criança brasileira de uma atmosfera de bondade e ternura", criando o sentimentalismo, tão característico da índole brasileira que, se "amolece o indivíduo e o desampara nos embates da vida", contribui "para quebrar a rudeza e brutalidade próprias de uma sociedade nascente" – uma visão idílica das relações de classe que surpreende num autor que se autoproclama marxista (Prado Jr.: 1963).

Há também em seus livros frequentes opiniões de cunho racista, entre elas a condenação da escravidão devido à "barbárie" das raças que forneceram os escravos, os indígenas e o negro africano, "povos de nível cultural ínfimo, comparado ao de seus dominadores". Ou quando diz que a empresa do colono branco nos trópicos reuniu "a natureza pródiga em recursos aproveitáveis" ao "trabalho recrutado entre raças inferiores que domina: indígenas ou negros africanos importados" (Prado Jr.: 1963).

Passando ao largo da intensa luta dos escravos contra a opressão, atribui a eles uma passividade sem respaldo no exame da história da luta de classes no Brasil. Os escravos, pensa, foram "máquinas de trabalho apenas, e sem outro papel no sistema" (Prado Jr.: 1963).

Estas limitações aparecem em seu exame da escravidão moderna, que não consegue entender e considera estranha à civilização européia. Por isso, pensa que ela renasce nas Américas "de chofre", sem ligar-se "a passado ou tradição alguma", Surge "como um corpo estranho que se insinua na estrutura da civilização ocidental, em que já não cabia. E vem contrariar-lhe todos os padrões morais e materiais estabelecidos". Foi um "recurso de oportunidade de que lançarão mão os países da Europa a fim de explorar comercialmente os vastos territórios e riquezas do Novo Mundo" (Prado Jr.: 1963).

Não compreendendo a escravidão como um modo de produção, encarou-a como "um negócio apenas, embora com bons proveitos para seus empreendedores", mesmo tendo identificando no trabalho servil a trave mestra da estrutura das colônias e "o cimento com
que se juntarão as peças que as constituem" (Prado Jr.: 1963). As idéias de Caio Prado Jr. tiveram larga influência entre os estudiosos contemporâneos da história de nosso país, principalmente entre os universitários. Antônio Cândido, no prefácio a Raízes do Brasil, pode ter decifrado o segredo dessa fortuna ao afirmar que um mérito de Formação do Brasil Contemporâneo é o fato do marxismo aparecer nele, "pela primeira vez como forma de captação e ordenação do real, desligado de compromisso partidário ou desígnio político imediatista" (Cândido: 1973). Esta é uma diferença fundamental entre sua obra e a de outro marxista notável, Nelson Werneck Sodré, cujas idéias serão apresentadas na próxima edição, que continuará a exposição da evolução da visão marxista de nossa história e o rico debate sobre a formação histórico social brasileira.

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