Em pleno contexto de preocupação social, econômica e política com a dramaticidade da violência urbana, discursos e soluções de caráter superficial e até mesmo fascista têm aparecido em vários meios de comunicação e meios políticos. Setores e candidatos propõem mais investimento na repressão, mais cadeias, mais polícia – alguns falam em maioridade penal para os jovens e outros até em pena de morte.

O professor Aziz Ab Saber, presidente de honra da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e um dos dirigentes do Instituto Florestan Fernandes, que coordena o programa de governo da candidata Marta Suplicy (PT, PCdoB, PCB e PHS), em São Paulo, pensa e escreve o contrário.

Para o eminente cientista, a saída é emprego, educação, saúde, cultura e lazer.
Assim, conectado com outros programas públicos que possam atender tais demandas essenciais aos seres humanos que habitam as grandes cidades brasileiras, ele propõe uma solução simples, viável, barata e avançada para ser levada em conta por governos progressistas, democráticos e que queiram viabilizar espaços de cidadania para os jovens, ao invés de encarcerá-Ias; espaço de lazer com cultura; ao invés de condená-Ias à droga e às escolas de crime – para depois reprimi-Ias.

O professor Aziz, em seus estudos, experiências acumuladas e andanças por todo o Brasil, e com base em pesquisas que demonstram a diminuição da violência em lugares onde há opção de lazer,fez uma síntese das tipologias dos parques urbanos e desenvolveu proposta das mini vilas olímpicas, aqui fundamentada como pré-projeto. Um espaço público, adaptado às áreas metropolitanas, que congrega opções para os jovens, as crianças, os pais, os idosos, enfim os habitantes das regiões periféricas das grandes cidades – "os que não têm condições de participar dos espaços abertos da chamada metrópole central" – a partir da iniciativa do poder público, gerido pelas entidades comunitárias.
Aziz AbSaber já recebeu inúmeros prêmios no país e de instituições internacionais pela concepção de projetos de grande repercussão a baixo custo – a exemplo do projeto Floram.

AS OPORTUNIDADES de lazer que as populações das periferias possuem são tão exíguas e deploráveis, que nos obrigaram a uma incursão demorada sobre o seu mundo real. Na realidade, a idéia de realizar uma campanha pública a favor de mini vilas olímpicas, consolidou-se em função de uma (re )visita meditada sobre o cotidiano do homem e das famílias, nas margens esquecidas de uma região metropolitana submetida a um perverso subdesenvolvimento. Os resultados dessas observações nos deixaram algumas imagens a serem consideradas por todo um conjunto de cidadãos.

A concepção: do lazer à cidadania e à defesa da democracia .Sem emprego e sem dinheiro, a maior parte da população periférica não tem condições de participar dos espaços abertos da Metrópole Central. Sendo que a Metrópole Intermediária – em diversos sentidos tão dinâmica – não possui infra-estruturas minimamente adaptáveis às expectativas dos jovens e adultos, moradores de periferias carentes. Nessa conjuntura, plena de limitações, as comunidades pobres se sentem enclausuradas e impotentes. Aos sábados e domingos – os dias mais importantes para os jovens desterrados da periferia urbana – utilizam pequenas glebas, ocasionalmente vazias, para treinos e jogos, limitados ao mais popular dos esportes praticado no Brasil, o futebol. Os espaços dessas práticas, na maior parte dos casos, são os terrenos de fundo de vales, ainda não ocupados, pertencentes ao(s) município(s), ou particulares, ansiosos por mercadejar seus terrenos periféricos, indiferentes às restrições de uso no eixo desarranjado dos pequeninos cursos d' água. Agora, o antigo riacho meandroso ficou na categoria popular de águas espraiadas, perdendo fluxos por meses devido à urbanização caótica.

Nesses fundos de vales ou em terraços artificiais talhados nas colinas e vendidos a preços aviltados por prefeitos bisonhos, existem os únicos espaços factíveis para o esporte preferido dos jovens. Espaços de disponibilidade temporária, a qualquer hora sujeitos à construção de fábricas ou galpões, ou loteados para a obtenção de lucros fáceis e garantidos. Em raros casos, dentre eles, ocorrem grupos de espectadores, curiosos em observar o desempenho de alguns jogadores, que cedo se destacam. Quando começam a aparecer barraquinhas de petiscos baratos e venda de refrigerantes, as autoridades deveriam se alertar sobre o fato de que ali existe um embrião de uma mini-vila olímpica.

Converia logo, comprar, readquirir ou desapropriar o aludido terreno, com vistas a implantação progressiva, sob projetos em módulos, de um espaço público polivalente, de elevado interesse comunitário. É possível pensar que mini-vilas olímpicas, que venham a ser implantadas – em repiquete – nos mais diferentes e factíveis terrenos pré-identificados pelos jovens, possam se constituir num componente da transformação social e cultural, de importantes setores das imensas periferias de São Paulo. Em um exemplo a ser seguido por outras grandes cidades do país. Não se pode pensar, entretanto, apenas num projeto construtivo caro e limitador. O principal – a essência mesmo do projeto – deve estar voltado para o cultural e a conquista da cidadania. Pensamos em uma mini-vila olímpica que se desdobre em uma festa semanal das comunidades do entorno. Um ponto de encontro em que as mães estejam mais próximas de seus filhos, protegendo-os em relação ao manhoso aliciamento por narcotraficantes. Um espaço preferencial aos sábados e domingos, que seja capaz de retirar os pais adultos das margens dos balcões dos bares e restaurantes, onde apenas existe a possibilidade de tomar a sua cervejinha tradicional. Um lugar de desdobramento de práticas esportivas interessando às diversas preferências da comunidade, sobretudo dos jovens. Uma área de maior abrangência esportiva, voltada para o futebol, o vôlei, o basquete; incluindo espaços para corridas, passeios em trilhas. Talvez um dia, a piscina; mais de imediato, a "escola" de capoeira, o coral e o teatrinho comunitário. E, a oportunidade de alguns iniciarem a discussão dos problemas de seu bairro, exigir a atenção dos poderes públicos, e implantar centros de alfabetização de adultos. Acrescentando inovações educativas informais, paralelas ao ensino público informal, tão degenerado e insuficiente culturalmente falando, ainda que com muitas e raras exceções. Num processo crescente e desdobrativo, em que se dê respaldo e melhor categoria às rádios comunitárias; e em que se faça um efetivo combate à violência e aos valores negativos da condição humana. Enfim, um feixe de objetivos que realize a passagem de uma mini-vila olímpica em um rústico porém funcionante clube da comunidade periférica e, sobretudo, em um centro de defesa da democracia.

A implantação: passo a passo

Para tornar possível a implantação de uma mini-vila olímpica é necessário começar pela identificação dos diferentes tipos de terrenos vazios onde as crianças, e sobretudo os adolescentes, praticam futebol nos feriados ou fins de semana. Cada terreno observado possui uma conformação diferente ou similar, obrigando a ligeiras adaptações dos projetos. Sendo que para eles serem viáveis, é necessário que sejam modulares e de implantação progressiva. Pelo menos em sua fase inicial; independentemente de melhorias futuras, pressupõe-se pequenos projetos, simbólicos e de baixo custo. Para não dizer, de baixíssimo custo.

Tratando-se de terrenos vazios, de meio a dois ou três hectares, pensa-se em uma seqüência de implantações. Primeiramente, em um tratamento linear do entorno, marcado por três a seis palmeiras imperiais, nos quadrantes extremos do terreno, sob espaçamento de 8 metros. No canto mais próximo das moradias dos pais, há de se estabelecer um pequeno rancho das crianças, bem ideado, incluindo bancos laterais e mesas para exercícios de desenhos, concurso de redação – por mais singela que elas sejam. Incluindo, se possível, um "baú" de livros infantis, pré-selecionados e atraentes. Alguém da comunidade se encarregará de distribuir pranchetinhas e papel para os exercícios de desenho e modestos concursos de redação, ou listagem dos problemas de seu bairro, segundo a ótica de cada um. Os recursos necessários para construir o "ranchinho da cultura" orçariam apenas em algumas centenas de reais, ao par com esforços costumeiros da autogestão comunitária (mutirão).

Os outros componentes do embrião de uma mini-vila olímpica seriam dois ranchos mais amplos, a serem implantados em sítios ligeiramente mais elevados, para que se possa ter uma visão mais abrangente do espaço total. Um desses ranchos deveria ser dedicado à presença das mães, a fim de que as mesmas possam ficar mais próximas de seus filhos em uma área de lazer organizado. O outro, seria um espaço para os adolescentes dele se utilizarem em dias de chuva, ou para descanso entre as práticas esportivas mais cansativas, ou ainda para capoeira, coral e teatro popular. Próximo dos edifícios rústicos, sanitários femininos e masculinos, de uma aprimorada qualidade e asseio, sob uma certa vigilância comunitária. Dois anexos que funcionem como vestiários decentes para os esportistas.

Nessa idealização para a fase inicial das mini-vilas olímpicas, pode se pressupor doações de pessoas esclareci das e sensíveis: fogões para a cozinha comunitária semanal ou quinzenal no pequeno pavilhão das mães; refrigeradores usados funcionantes; livros e cartilhas para o chamado "baú de livros" destinado a crianças e adolescentes; materiais para as diferentes atividades esportivas (bolas, raquetes, redes, faixas demarcadoras coloridas; entre outros); pratos e talheres para a cozi-nha comunitária (quinzenal ou semanal); banquetas para os principais edifícios das mini-vilas olímpicas, entre outros equipamentos funcionais, indispensáveis e prioritários. Daí por que um compartimento fechado, relativamente pequeno, no rancho das mães e outro em módulos progressivos, cuja essência é a conquista da cidadania e a defesa da democracia no rancho dos adolescentes. O tempo se encarregará de implantar o palco do teatrinho popular, enquanto a escola de capoeira permaneça no rancho dos adolescentes, segundo dias e horários pré-estabelecidos. E, assim, um dia, chegará a vez de uma piscina, no momento em que mini-vilas olímpicas, dirigidas por comunidades de moradores, venham a se transformar em ativos clubes das comunidades da periferia. Nada obsta em modificações e acréscimos de funções e atividades na trajetória de cada mini-vila olímpica. O que está acima de tudo é a constituição de um novo e atraente patrimônio da comunidade capaz de dignificar crianças, adolescentes e adultos, utilizando os valores culturais mais nobres de uma rica cultura popular.

Devemos esclarecer, nesse sentido, que nos inspiramos muito nas atividades desenvolvidas em alguns pátios escolares, incluindo nisso, a força de que é dotada a merenda para uma alimentação mínima para as crianças e adolescentes. Nossa proposta, porém, procura atender ao imenso volume da população pobre periférica, assim como melhorar e incentivar as iniciativas que partiram dos próprios adolescentes que elegeram as práticas esportivas como uma de suas preferencias essenciais.

No que se refere à educação – como já expomos em muitas ocasiões – o problema é mais amplo e complexo. Os pátios das escolas, por menores que sejam (e alguns são relativamente grandes) deveriam receber oficinas de diversas naturezas, na condição de treinamento para conhecimentos técnicos modernizantes, capazes de facilitar e qualificar os menores na sua futura inserção profissional e sócioeconômica. Mesmo porque, entendemos que o melhor tratamento que se possa dar à educação em um país de escala continental e de sociedade extremamente desigual, será aquele em que se apóie em três blocos potencializadores e indutores: a recuperação seletiva do conhecimento acumulado; um esforço permanente para abranger a regionalidade física, ecológica, social e cultural da área de vivência do alunado; e, um conjunto de "oficinas" para treinamento e identificação de vocações.

Uma escolha variável (caso a caso, e sobretudo, de região para região). Computação, quase sempre. Na beira mar, oficinas para a feitura de um barco, rede de pesca, um aquário significativo, culminando com ensinamentos sobre a engrenagem e o funcionamento de um motor de popa. Uma oficina para culinária nutritiva com gastos mínimos. Outra, para o bom uso das águas e precauções para evitar a poluição hídrica. Uma oficina para que enfermeiras residentes na região expliquem e realizem medidas de pressão, índices de glicemia, importância diferencial dos alimentos. Em muitos casos, uma oficina "tipo caixa-econômica", para que os meninos premiados por suas notas e educação tenham um dinheirinho quando terminarem seus cursos. No mesmo local, um rol de pequenos equipamentos escolares, a preço de custo: canetas Bic, lápis de cor, cadernos, papéis, réguas, cola, borrachas ou corretores, pranchetinhas para desenhos e exercícios. Oficinas para o desenvolvimento da arte de fazer maquetes: a maquete da escola; a maquete ideal de uma mini-vila olímpica; a planta de uma "casa dos meus sonhos". A oficina do recorte e classificação de artigos e notícias de jornais, com (re )leitura crítica semanal, para os interessados. Enfim, oficinas selecionadas, entre muitas outras idéias para um aprendizado que faça um paralelo e minimize a formalidade da escola tradicional. Tudo com a ajuda voluntária e graciosa de alguns missionários da nacionalidade. Estratégias simples para a verdadeira construção da cidadania.

A viabilidade da proposição desse novo tipo de parque distrital, adaptado às áreas metropolitanas periféricas é um fato absolutamente incontestável, desde que se adotem estratégias factíveis, como algumas detalhadas no presente estudo. Às vésperas de eleições municipais, é possível comprometer partidos e candidatos com a idéia mestra de uma campanha por mini-vilas olímpicas. Devido ao fato de que a Grande São Paulo comporta mais do que duas dezenas de municípios, alguns dos quais dotados de amplas, densas e violentas emergências dos valores humanos menos nobres, seria ideal que o plano-mestre das mini-vilas olímpicas fosse realizado por uma instituição pública de abrangência metropolitana, que fosse ativa, antiburocrática e disposta a discutir idéias. Na lamentável ausência de um órgão metropolitano dotado de inteligência e poder, a campanha por uma rede de mini-vilas olímpicas tem de seguir outras trajetórias, bem mais lentas e frágeis.

O detalhamento aqui realizado na categoria de pré-projeto e tendo por base uma área-piloto em teste, constitui um apelo aos cidadãos sensíveis e de bom senso, voltados para o social, no contexto do desenvolvimento desigual. Talvez outros tenham idéias e projetos diferentes e de implantação mais rápida e menos sofrida. Tanto melhor! Alegarão outros – com evidente superficialidade – que seria melhor abrir o pátio das escolas municipais e estaduais para uma clientela mais diversificada.

Aziz AbSaber é presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC).

EDIÇÃO 58, AGO/SET/OUT, 2000, PÁGINAS 71, 72, 73, 74