*Este artigo é parte de Paisagens do neo-realismo: em Graciliano Ramos e Carlos de Oliveira – tese de doutoramento na universidade de São Pulo (USP), em 1999.

A obra de Graciliano Ramos é um marco para os estudos literários no Brasil. Em torno de seus escritos, parcela significativa da inteligência nacional se expressou. Todas as cores do espectro ideológico reconheceram, de imediato, sua importância em um projeto de formação da identidade brasileira. E, como é natural em tais casos, perspectivas diferentes, até mesmo antagônicas, de abordagem, de interpretação se manifestaram. (1)

De todos os romances de Graciliano Ramos, Caetés foi o menos estudado e o que mais recebeu censuras por parte da crítica. Rara e feliz exceção representa o texto de Zênia de Faria (2) que, por caminhos não paralelos, propõe uma abordagem crítica positiva de Caetés. Dentro do âmbito deste estudo, proponho também uma revisão dessa obra que, a meu ver, merece destaque no panorama literário brasileiro. Na discussão esquemática e classificatória, em voga na época de suas primeiras recepções críticas, Caetés caiu na vala comum das obras tidas como naturalistas; daí a sua depreciação por parte da crítica militante.

Caetés é a história de João Valério e do seu atrito com a realidade de uma, e em uma cidadezinha do sertão alagoano, ou, em outras palavras, com a paisagem social e física de Palmeira dos Índios. O problema do herói é colocado de chofre, logo na primeira página do primeiro capítulo: "Luísa quis mostrar-me uma passagem no livro que lia. Curvou-se. Não me contive e dei-lhe dois beijos no cachaço. Ela ergueu-se, indignada: – O senhor é doido? Que ousadia é essa? Eu … ". (3) É essa ousadia de João Valério, um herói sem nenhuma auto-estima, que provocará o pouco de ação da narrativa. E é esse, também, o traço de mestre demonstrado por Graciliano Ramos, já no seu primeiro romance publicado. (4) Com efeito, João Valério é um pobre diabo do naipe de outro herói, esse famoso: o Luís da Silva, de Angústia.

O primeiro capítulo de Caetés é quase todo uma descrição da precária consideração do protagonista por si mesmo. Com as lentes de um herói que não se ama, o leitor começa a percorrer um mundo cinzento, mortiço, como o espírito do jovem guarda-livros. É através da narrativa na primeira pessoa – de um "animal estúpido e lúbrico", de um empregado que não se coloca no seu lugar – que uma paisagem desolada, de um espírito inconformado, é desenhada. A par da ânsia de auto-espezinhamento, João Valério vai descrevendo o ambiente em que vive e com quem convive. É uma cambulhada de informações.

No meio dessa paisagem social que vai se compondo com nomes e caracterizações, rápidas mas suficientes, vemos uma primeira descrição de ambiente físico, também rápida, reveladora da forma de descrever econômica de Graciliano Ramos: "Os velhos móveis, as paredes altas e escuras, quadros que não se distinguiam na claridade vaga das lâmpadas de abat-jour espesso, que uma rendilha pardacenta reveste, tudo me dava sossego". A técnica é refinada, a pequena descrição exerce um duplo papel: simultaneamente desenha uma sala e o humor do protagonista e, por extensão, o mundo abarcado por sua visão. A claridade vaga, a rendilha pardacenta apontam também para o mundo cinza e colocam de imediato a questão de saber se é o protagonista que projeta o seu ânimo e assim embaça o mundo ou vice-versa.

O primeiro capítulo se encerra com um trecho em que, de novo, uma descrição de paisagem assume um tom e um sentido ambíguos: "Percorri à toa as ruas desertas, envoltas num luar baço, tentando achar tranqüilidade no pó e no calor de janeiro". A rua deserta está para um coração aflito, um luar baço para uma alma embotada e a tranqüilidade no pó e no calor para a impossibilidade desse estado de espírito, por mais que se queira. Além disso, essa é apenas a primeira aparição da rua; a sua função será primordial nos processos de fuga, ou na confusão de espírito de João Valério. Será o elemento paisagístico mais marcante de todo o romance. Vagar pelas ruas é como andar pelo mundo sem sentido.

O segundo capítulo traz a notícia de que João Valério era moço, pobre, gostava de literatura e estava escrevendo um romance que não ia para frente. Luísa era linda, branca, forte, dedos longos bons para beijos e olhos azuis. Adrião Teixeira era velhote, calvo, rico, amarelo, reumático, encharcado de tisanas. E o inconformismo de João Valério, de quem sabe o porquê, o motivo pelo qual Luísa casou-se com Adrião, vem sub-repticiamente à tona:

Luísa é de Adrião numa relação de compra e posse. É, possivelmente, a mercadoria mais querida do velho, mas é mercadoria. O relacionamento amoroso de João Valério com Luísa (que está no futuro do romance) seria permitido – poderíamos até imaginar – em outra paisagem social e física, como mais um agrado do proprietário para com o seu bibelô, desde que não interferisse na moral do mundo dos negócios, em última instância, o que conta. A interferência, nesses casos, nunca é direta, aberta, mas oblíqua. Afeta a aparência do comerciante, a alma do negócio.

Na composição de João Valério os traços são objetivos. A técnica é o chiaro/oscuro: há sempre uma zona de penumbra, como na única informação sobre o seu passado, dada fortuitamente quando o objeto do discurso era o seu livro: "Iniciei a coisa depois que fiquei órfão, quando a Felícia me levou o dinheiro da herança, precisei vender a casa, vender o gado, e Adrião me empregou no escritório como guarda-livros". É claramente insuficiente e vaga esta notícia, mas o narrador não voltará mais a ela, o único acréscimo é em relação ao livro: são cinco anos e um capítulo escrito. É um romance histórico sobre os índios Caetés, mas deles João Valério sabe somente "que existiram, andavam nus e comiam gente" e que "melhor seria compor uma novela em que arrumasse Padre Atanásio, o Dr. Liberato, Nicolau Varejão, o Pinheiro, D. Engrácia" e é o que faz efetivamente. Nesse parágrafo metalingüístico, há uma demonstração inequívoca do domínio da arte narrativa, uma declaração de adesão à escola Realista, além de um petardo pleno de ironia contra os autores citados um pouco antes, Gonçalves Dias e Alencar, os quais, justamente, 'escaparam' da realidade: "Mas como achar enredo, dispor as personagens, dar-Ihes vida? Decididamente não tinha habilidade para a empresa: por mais que me esforçasse, só conseguiria garatujar uma narrativa embaciada e amorfa".

O trecho, "narrativa embaciada e amorfa", reflete mais o Caetés que lemos do que o de João Valério. É metalinguagem. Mas é também a constatação de que a realidade observada não se prestaria a um outro tipo de romance. Construir um mundo edulcorado não fazia parte do ideário de Graciliano Ramos; pelo contrário, a realidade, mesmo essa mesquinha, dizia mais sobre a condição humana do que sobre os discursos empolados de certos escritores e advogados. Combater o bom combate para Graciliano implica em pulverizar a linguagem vazia dos bacharéis. Os tipos recorrentes: Dr. Evaristo Barroca, Dr. Castro, João Nogueira, Julião Tavares são exemplares de uma fauna abundante, são paisagens da sociedade abominada pelo autor alagoano.

"Desdobrei as tiras e li burrices consideráveis em honra do Mesquita, recheadas de adjetivos fofos (00') um largo rio de benefícios inundando Palmeira dos Índios". Nesta passagem do quarto capítulo, um exemplo da aversão que Graciliano Ramos dedicava ao período rebuscado, no qual via não somente um problema de estilo, mas uma questão ideológica: o objetivo político dos Barrocas, dos Juliões Tavares, se manifesta na língua. No mesmo trecho, a indicação do lugar onde se desenrola a história de João Valério e seus amigos: Palmeira dos Índios. Para o leitor familiarizado com os dados biográficos do autor, essa informação aproxima a ficção da 'vida real' . E não cai em engano quem procede dessa forma. É Graciliano Ramos quem pede; em seus escritos posteriores isto ficará cada vez mais evidente. Temos, então, uma outra paisagem, a paisagem da memória a rechear, a consubstanciar a fantasia do escritor.

No capítulo cinco, acompanhamos um ir e vir por ruas mal iluminadas, entrecortados por diálogos curiosos entre João Valério e o seu amigo Isidoro Pinheiro; em um desses diálogos são enumeradas as riquezas de Marta Varejão e o conselho do amigo para que João Valério se atracasse com a moça. O casamento é um negócio, mais vale se ele for bem feito, é dito, em suma, sem a menor cerimônia. Essa concepção está em todos os romances de Graciliano Ramos. Madalena (São Bernardo), Marina (Angústia) e até mesmo sinhá Vitória (Vidas secas) fazem parte dessa premissa.

Marta era bonita, falava francês, fazia flores de parafina, tocava piano. O herói tenta enganar-se, mas esta era uma solução impossível, pois o livro terminaria aí. É por isso que ainda nesse capítulo, estamos no sexto, Adrião reclama a ausência de João Valério nos serões de sua casa e este se compromete a voltar 'ao casarão dos Italianos'. Na seqüência, a vida pulula em Palmeira dos Índios, as conversas na rua dão um retrato vivo da cidadezinha.

A vida continua, o romance não pode parar. O problema de Graciliano Ramos é o mesmo do personagem-escritor João Valério, ou seja, como preencher as páginas em branco com a história de seus Caetés, quando eles estão tão longe de sua realidade? A solução para ambos é se aproximar da realidade, por isso João Valério comporá os seus índios com características de seus amigos e Graciliano Ramos buscará, ao máximo, levar o leitor para Palmeira dos Índios, enredá-Io na história dos seus habitantes.

A fórmula é única, e é ela que distingue os escritores: a linguagem. A modorra da cidade é contrastada com o virtuosismo do seu relato: "- Pois, meninos, não foi senão isto. Quem havia de supor, hem? Estes dicionários miúdos não prestam. Faltava um pedaço da segunda página. É cavador. Parece que o Eucalipto seca os pântanos. A gente abre e não encontra nunca o que procura. E dá beleza. Vem o sargento: 'Quarenta linhas.' É cavador, é cavador". (C., p. 30)

Essa é uma das "falas embaralhadas" de Padre Atanásio. A desordem mental do diretor de A Semana é expressa, mas também a sua perspicácia para com os movimentos da política. São várias coisas ocorrendo, o cérebro processa e dá uma resposta para cada uma delas, simultaneamente. Da discreta eficiência apontada por Osman Lins, o seguinte trecho é uma outra boa amostra: "Calou-se amuado. Acendeu um cigarro. E, à luz do fósforo, surgiram à direita calçadas altas e desiguais. À esquerda, entre sombras confusas de arvoredos, a mancha negra do açude avultava. Formas vagas, cheiro de aguardente, injúrias obscenas, sons de pífano". (C., p. 34) Alguém amuado diz pouco e, por conseqüência, pouco fica-se sabendo do que se passa no seu espírito. A luz do fósforo pouco ilumina, calçadas altas e desiguais embaralham a visão. A mancha negra do açude avulta, mas por ser negra e pela pouca luz é quase indistinta. Formas vagas, em suma. Cheiro de aguardente que embota os sentidos. Injúrias obscenas, palavras sussurradas. Sons de pífano, dança, bebida, sopro. Todo o trecho tem uma única finalidade: pincelar o quadro de modo que fique apenas entrevisto. Há uma colaboração recíproca entre o físico e o social.

Operar com a língua, compor uma mensagem, requer arte. A lição, em tom de blague, está no capítulo onze, lugar em que é discutido o texto da notícia sobre a visita de D. Josefa Teixeira à redação de A semana, jornaleco do Pároco local. Unificar ou desunificar, desde que de forma consciente, o tom da narrativa, faz parte do bom ou mau uso da língua. Graciliano Ramos sustenta o tom de Caetés, não sem uma ou outra escorregadela, como na passagem sobre as mulheres nordestinas, em que a fala do narrador assume um ar de sociólogo: "Diante das visitas, era reservada: não ia além de uma ou outra frase risonha lançada na conversação. Em família, tomava-se expansiva. É o que se observa entre as senhoras do Nordeste. Como os homens aqui são indelicados e não raro brutais, elas se esquivam, tímidas". (C., p. 60)

Graciliano Ramos, de fato, não contemporiza, não ilude. A paisagem humana, que interiorizou aquela física, dos seus romances é uma coleção de imperfeições – Dona Engrácia: "Detestavam-na, mas temiam lhe a língua. E era geralmente respeitada. Quinhentos contos em terras de café e algodão, prédios, letras, ações da Cachoeira e da Fernão-Velho". (C., p. 59) O respeito que goza Dona Engrácia entre seus pares, decorre diretamente da sua riqueza, como na frase de Graciliano Ramos. Sem subterfúgios, o dinheiro é colocado no seu devido lugar: acima de qualquer outro valor.
O Barroca: "Evaristo queria eleitores conscientes, uma democracia verdadeira". (C., p. 83) Logo ele, cavador, falso, patrimonialista. A desconfiança é justificada, não dá para crer no discurso progressista dos Barroca.

Até o mais ferino, Nazaré Miranda, se rende. Engole o seu ácido, a sua ironia: "Guiado pelo olhar dele [Nazaré Miranda]. Descobri junto à mesa o Dr. Castro, feliz e papudo, mostrando os dentes e despejando sobre Clementina o brilho dos seus olhos pretos ( … ) Compreendi o reviramento de Nazaré. Estava tudo em ordem". (C., p. 118) Que melancolia, "estava tudo em ordem", nenhuma surpresa. A promessa de casamento da filha com um Dr. Bacharel apaga tudo, conforta, faz com que até o incrédulo perdoe.

Mas a repugnância de Graciliano Ramos aos Drs. Castro, aos tipos mofinos, dissimulados, assume proporção especial. O impulso assassino que dará cabo de Julião Tavares em Angústia, já se manifesta em Caetés: "Riram em torno, gaguejei explicações parvas e encolhi-me, rangi os dentes, sentindo a vaga tentação de estrangular o Dr. Castro, que sorria para Clementina". (C., p. 140). Aliás, Julião Tavares, a meu ver, não é só uma espécie de duplo de Luís da Silva, como depois da observação de Laura Austregésilo, Antonio Candido sugere. É sim o outro Dr. Castro. Ou melhor, é o Dr. Castro em outro romance com outro nome e com o papel mais destacado. "A sua morte [de Julião Tavares], como bem viu Laura Austregésilo, é a vingança sobre os aspectos humanos que mais o repelem, e, convém notar, já se esboçavam no Evaristo Barroca de Caetés". Esses aspectos humanos repelentes esboçavamse no Evaristo Barroca, é verdade, mas já estavam por inteiro no Dr. Castro. Evaristo Barroca, depois que se tomou deputado, poderoso, sai do círculo de João Valério, ou o freqüenta só marginalmente. É uma figura asquerosa, sem dúvida, mas distante. O Dr. Castro é quem participa do mundo de João Valério – como Julião Tavares toma parte na vida de Luís da Silva -, é o serviçal dependente dos favores do político poderoso, sem personalidade, oco e, principalmente, de linguagem oca. Julião Tavares é filho de capitalistas, tem uma riqueza derivada e vive no meio de pobres-diabos, é o burguês que ainda não assumiu suas funções de mando. O ódio de Graciliano Ramos se concentra contra esse tipo, o dependente, o que é mas não é. Enfim, contra lacaios, sempre vacilantes e oportunistas, que se expressam numa fala vazia e abundante para esconder a própria falta de expressão.

Adrião, que casou com uma mulher jovem e bela e foi traído, é a contraparte do Dr. Castro. Adrião é prático e seguro de si. Pedindo satisfações a propósito do afastamento de João Valério de sua casa, não admite tergiversações. Em outra passagem, quando já recebeu a carta anônima, exige explicações objetivas de João Valério:

"- Então, Valério, não responde? – Responder… Ora está aí. De duas uma: ou o senhor não acredita, e neste caso … Olhei, por cima das grades do escritório, as pipas de aguardente e os sacos de açúcar. Ninguém. Foram jantar. Continue, fez Adrião. E deixemo-nos de palavrórios difíceis, que não gosto deles. É verdade ou mentira?" (C., p. 181-2)

Essa a linguagem que Graciliano Ramos aprecia. Adrião é tudo o que o Dr. Castro não é. Não é empregado e não depende dos políticos, em decorrência disso tem opinião, ou melhor, não tem a obrigação, a necessidade, de se pronunciar sobre todo e qualquer assunto. O mutismo é o melhor remédio contra a 'Iambança' verborrágica. Poder gozar do direito ao silêncio é o que almejam os personagens de Graciliano Ramos, por isso o modo como é visto Adrião por João Valério é, no fundo, respeitoso. Adrião, homem com posição econômica definida, tem o direito de falar objetivamente – coisa que nem João Valério, nem Luís da Silva (Angústia) e nem Fabiano (Vidas secas) conseguiram e que, numa outra vertente, Paulo Honório (São Bernardo) praticou intensamente. A lição, portanto, diz respeito à ordem econômica. Os homens, em uma sociedade com razoável distribuição de renda, se libertariam do palavrório oco? Por outro lado, o maior obstáculo para essa sociedade de novo tipo, seriam os Barroca e, principalmente, os Drs. Castro. Vítimas e, ao mesmo tempo, propagadores dessa sociedade contaminada e dessa linguagem empolada a serviço da classe detentora do poder.

Destruir os seus representantes, liquidá-Ios, poderia ser o caminho, daí a vontade de estrangular o Dr. Castro e a consumação dessa vontade no assassinato de Julião Tavares. Graciliano Ramos, com enorme clarividência, percebeu que o exercício do poder, mesmo na incipiente democracia capitalista, passa pelo uso da linguagem. O mundo administrado é uma realidade, mas o controle desse mundo, ao contrário do que pensou George Orwell, não se dá através de câmaras mudas que vêem, do olhar do grande irmão. São câmaras cegas que falam. A linguagem vazia da mídia é a forma indolor de entorpecimento da razão.

O romance de João Valério com Luísa só se consuma no décimo nono capítulo, dois terços do livro já percorridos. O traço de mestre de Graciliano Ramos, aludido anteriormente, lembrava esse fato. O motivo principal está sempre presente, mas em segundo plano; no primeiro plano, o narrador vai construindo um mundo de paisagens físicas, sociais e humanas que impregna toda a história, que são as condições de sua realização. E não é determinismo mecânico do meio, é a criação de um mundo fechado, onde ações e reações se condicionam reciprocamente. O fetiche, no sentido marxista do termo, isto é, de transformação do produto do trabalho humano em coisa de caráter místico, é somente latente, porque aqui vivemos em um mundo parado. Os sinais de produção e distribuição de objetos, em moldes capitalistas, apenas acenam, ainda de longe.

Caetés nem é preâmbulo, nem é romance defeituoso em decorrência do seu naturalismo congênito. Ao contrário, é uma grande obra justamente por dosar todos os elementos e características que farão de Graciliano Ramos um dos mais importantes escritores do país a uma realidade concreta. Com efeito, todas as qualidades do autor de São Bernardo estão presentes em Caetés, mas dadas na justa medida que requereria um argumento desenrolado numa cidadezinha estagnada do Nordeste brasileiro, onde o capitalismo na sua feição mais enérgica – e transformadora – de busca desenfreada do lucro ainda não tinha chegado. Possuir a mulher do patrão, nas condições dadas, é ato de herói problemático que se rebela contra a alienação vigente. O que o velho Adrião conseguiu através de sua boa posição social, João Valério conseguirá pela ousadia, inconformismo, vigor físico e intelecto.

Luísa se entrega no décimo nono capítulo; entre o vigésimo e o vigésimo quinto capítulos, toda a cidade parece saber e comentar o assunto. No vigésimo sexto capítulo, Adrião recebe a carta anônima e, ao contrário da famosa polêmica sobre a traição ou não de Capitu, a questão sobre quem escreveu a carta anônima não gerou praticamente nenhum comentário.

Adrião dá um tiro no peito no vigésimo sétimo capítulo, morre no vigésimo oitavo. No vigésimo nono João Valério, depois de dois meses da morte de Adrião, procura Luísa e, sem qualquer ênfase, concluem que "desapareceu tudo". Logo no início do trigésimo capítulo, depois da informação de que três meses se passaram, somos comunicados que ele, João Valério, agora é sócio de Vitorino, irmão de Adrião. Em seguida: "Abandonei definitivamente os caetés: um negociante não se deve meter em coisas de arte". Mais para o final: "Gosto da Teixeira ( … ) No silêncio do meu quarto, penso às vezes que a vida com ela seria doce. E digo a mim mesmo que ainda podemos ter quatro filhos vermelhos, fortes e louros. Parece-me que vou casar com a Teixeira". Tudo isso é dito num tom sombrio. É o desfecho natural das coisas, o animal se ajeita para procriar com segurança, regras e medidas obedecidas.

O romance terminou. Porém Graciliano Ramos acrescenta mais um capítulo de confissão genuína:
"Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha, com algumas diferenças ( … ) Explosões súbitas de dor teatral, logo substituídas por indiferença completa …

Admiração exagerada às coisas brilhantes, ao período sonoro, às miçangas literárias, o que me induz a pendurar no que escrevo adjetivos de enfeite, que depois risco ( … ) Um caeté. Com que facilidade esqueci a promessa feita ao Mendonça! E este hábito de fumar imoderadamente, este desejo súbito de embriagar-me quando experimento qualquer abalo, alegria, ou tristeza! ( … ) Se Pedro Antônio, Balbino, pobres diabos que por aí vivem, soubessem exprimir-se, quantos pontos de contacto!" (C., p. 222-3).
Assim, a linha tênue que separa o narrador do autor se estreita ainda mais, ou se rompe definitivamente. Parece ser esse o salto mais inspirado, ou seja, a interpretação direta da "pessoa" por detrás da "máscara" do personagem. Talvez seja esse o passo mais difícil, ver e reconhecer em Graciliano Ramos, por trás da sua hagiografia – com a qual ele nunca foi conivente – também os instintos mesquinhos, a violência (in)contida, o inconformismo desesperado de sossego. Ver em Graciliano Ramos uma paisagem única que alcance todas as suas paisagens.

Anselmo Pessoa Neto é professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG).

*Com este texto sobre a obra Caetés, Princípios continua abordando aspectos da obra de Graciliano Ramos. Em edições anteriores já publicamos os artigos "Graciliano Ramos e o Partido Comunista" (Princípio nº 3) e "Graciliano Ramos e a Constituinte" (nº 5), de Clóvis Moura; "A literatura brasileira e seu conteúdo social" (nº. 13), de Clóvis Mello; "Signos e ideologia na obra São Bernardo" (nº 18), de Maria Luiza Ritzel Remédios; "Consciência lingüística de Fabiano" (nº 32) e "A linguagem como traço distintivo de humano" – sobre Vidas secas (nº 34), de Maria Lourdes Motter. Comissão Editorial

Notas

(1) Dois textos importantes para a crítica a Graciliano Ramos dão uma idéia dos debates e dos posicionamentos que ocorrem em relação à obra do autor alagoano. Refiro-me ao ensaio de Otto Maria Carpeaux e ao de Wilson Martins. Que se leia, como amostra, o primeiro parágrafo de ambos. Percebe-se uma continuidade na divergência. Da mesma forma, o estudo de Antonio Candido refere-se explicitamente ao texto de Carpeaux e recupera, implicitamente, a idéia central do ensaio de Wilson
Martins, dando-lhe um novo viés: "Em todos eles [os livros], o problema do bem e do mal encarado de um ângulo materialista e que nos dois livros autobiográficos é proposto em função da sua própria vida". Caminhos diferentes também tomam os escritos de Álvaro Lins e Rui Mourão. Nesses casos, uma síntese é proposta por Osman Lins. Em um texto curto e criativo, o autor de Nove Novena fornece indicações inteligentes de como abordar questões relevantes da obra de Graciliano Ramos. De importância, mas hoje suspenso pelos acontecimentos políticos e culturais, é o trabalho de Carlos Nelson Coutinho. Nem por isso João Luiz Lafetá, em um texto em tudo atual, deixa de prestar uma espécie de homenagem a uma visão datada e cuja importância deriva justamente do fato de ser datada. Por outro lado, as manifestações acerca de Caetés, primeiro romance de Graciliano Ramos, de 1933, são poucas e, no geral, en passant. As mais aprofundadas como as de Álvaro Lins:

"Um livro maciçamente ruim. A vulgaridade do ambiente do romance – e todo ele se processa através de coisas reles, pequenas intrigas e conversinhas de uma cidade do interior – parece ter contaminado a própria arte do romancista, de modo que assunto e realização permanecem no mesmo plano medíocre". As de Carlos Nelson Coutinho: "Caetés, o primeiro romance de Graciliano, foi escrito entre 1925 e 1928. Essa época representa, na história do romance brasileiro, um período de domínio quase incontrastado do naturalismo, que encontrara no 'regionalismo' modernista – isto é, na reconstrução superficial de ambientes e de costumes exóticos – um forte incentivo. Embora contenha elementos que anunciam o vigoroso realismo da década de 30, Caetés é – em sua estrutura, em seu conteúdo e nas técnicas literárias que manipula – um romance naturalista." E as de Antonio Candido:" a obra de Graciliano Ramos Caetés dá a impressão, quanto ao estilo e quanto à análise, de deliberado preâmbulo; um exercício de técnica literária mediante ao qual pode aparelhar-se para os grandes livros posteriores". São, como vimos, manifestações extremamente negativas, vinculativas ou, ainda, que apontam Caetés como começo um pouco trôpego.

(2) Zênia de Faria. "A ficção como crítica". ln: revista Signótica. Goiânia:
CegraflUFG, n.o 3, jan/dez 1991.
(3) Graciliano Ramos. Caetés. Rio de Janeiro: Record.
(4) Ver a entrevista de Graciliano Ramos a Homero Senna, em que aquele dizia:
"( … ) Mas tinha o bom senso de queimar os romances que escrevia. Queimaram-se diversos. Caetés, infelizmente, escapou e veio à publicidade".

EDIÇÃO 59, NOV/DEZ/JAN, 2000-2001, PÁGINAS 75, 76, 77, 78, 79, 80