Significativas mudanças estão em curso no quadro mundial a partir dos atentados, em Nova York e Washington, de 11 de setembro. As ilusões difundidas pelos pregoeiros da globalização neoliberal e da “pax americana” de um mundo pacífico, harmônico e integrado, após a dissolução do bloco soviético, se esfumaram no ambiente de pânico e insegurança generalizados, próprios de um sistema de poder planetário iníquo e gerador de instabilidade. Abriu-se uma crise de inaudita envergadura, em que a paz, a democracia, a civilização e os destinos da humanidade encontram-se sob grave ameaça.

Não se trata propriamente de uma viragem completa na conjuntura mundial. Os acontecimentos em curso não negam nem invertem a lógica essencial dos fenômenos que se desenvolveram desde o início dos anos 90 do século passado. Esses inquietantes fatos não são “um raio em céu azul”, antes são o corolário inevitável, o desdobramento de um rumo dantes traçado, a exacerbação de tendências que vinham evoluindo. Estamos chegando a um ponto de ruptura em que se manifestam através da guerra as lancinantes contradições do mundo contemporâneo. A guerra e o perigo de uma escalada sem precedentes não resultam apenas nem principalmente dos atos demenciais perpetrados em 11 de setembro. Já estavam contidos na cruel realidade do capitalismo globalizado e neoliberal e na política praticada pela nova Administração ultraconservadora dos Estados Unidos, tendo à frente o presidente George W. Bush. Voltaremos ao tema mais adiante. A ética revolucionária abomina o terrorismo

Os atentados de 11 de setembro mereceram o mais veemente repúdio porque o terrorismo é condenável como meio de ação política, infenso aos valores da ética revolucionária que faz os combatentes das causas da emancipação nacional e social empenharem-se em atos heróicos coletivos, concordes com um elevado grau de consciência política das massas populares. Nada justifica a morte de milhares de cidadãos inocentes motivada pelo ataque de um inimigo sem rosto, sem programa, sem bandeira. Atos desvairados e sem legitimação política e ideológica servem apenas para dar força à direita, aos inimigos da liberdade política e dos direitos civis.

O terrorismo internacional é fenômeno nefasto, a ser combatido no âmbito da Organização das Nações Unidas, de acordo com as normas do direito internacional e no estrito respeito à soberania das nações e às liberdades civis. A solução da atual crise não poderá prescindir do concurso da ONU, única organização que representa o conjunto da comunidade internacional. E não basta para isso que o presidente dos Estados Unidos ou qualquer chefe de Estado que se julgue preposto seu acione, como se tivesse poderes para tanto, o secretário-geral da ONU a fim de tomar iniciativas combinadas e decisões destinadas que não serão cumpridas. É indispensável a convocação dos órgãos competentes e a tomada de decisões baseada nos princípios da Carta das Nações Unidas.

Na luta contra o terrorismo não se pode alimentar qualquer ilusão quanto ao papel dos Estados Unidos, que não têm autoridade moral nem política. Como país imperialista, praticou atos de terrorismo de Estado contra populações indefesas e países soberanos. São incontáveis as ações norte-americanas contra as liberdades democráticas e os direitos humanos. É dos Estados Unidos a autoria de crimes como a explosão da bomba atômica em Nagasaki e Hiroshima, o genocídio do povo vietnamita, a morte de 1,5 milhão de iraquianos durante mais de uma década de bombardeios e embargo econômico, para citar os casos mais notórios. O terrorismo de Estado praticado em escala mundial pelo imperialismo norte-americano também deve ser alvo da enérgica condenação de todos os sinceros defensores da democracia e dos direitos humanos.

É inaceitável que no combate ao terrorismo haja a pretensão de confundi-lo com o movimento revolucionário, a luta de resistência, a guerra civil, diferentes expressões de radicalismo político relacionadas com realidades nacionais e sociais concretas. Assim como é inadmissível a tentativa de criminalizar as organizações revolucionárias e inquiná-las todas como terroristas. As autoridades norte-americanas citaram em seu index as Farc da Colômbia, uma organização política e militar que conta com simpatia e solidariedade em toda a América Latina, que combate há décadas por democracia, direitos sociais e contra a corrupção e a violência endêmicas das classes dominantes colombianas.

A guerra norte-americana – inominável covardia

A evolução dos acontecimentos vai rapidamente revelando que não é o “combate ao terrorismo” que caracteriza as ações do governo estadunidense desde 11 de setembro. Com os bombardeios maciços ao Afeganistão a partir de 7 de outubro – uma inominável covardia porque se trata da mais colossal máquina de guerra despejando bombas sobre um país incapaz de reagir, exaurido por mais de duas décadas de conflagrações externas e internas, com centenas e talvez milhares de civis mortos e um drama humanitário de feições bíblicas – começou de fato a primeira guerra norte-americana do século XXI. Uma guerra “prolongada e dura”, “extensa, diferente de qualquer outra”, que implicará no uso de “toda arma de guerra necessária” (Bush, discurso ao Congresso dos EUA, em 20/9/2001). O potencial de fogo mobilizado e a agressividade da retórica do chefe da Administração estadunidense indicam que o escopo da operação, denominada pelos imperialistas de “Liberdade duradoura”, mas que bem se poderia chamar “Horror infinito”, não é propriamente a captura de Osama bin Laden e a derrubada do regime Talibã. A própria declaração do governo norte-americano de que ampliará o alvo de seu ataque, relacionando mais de 50 países que no seu entender “são terroristas ou coniventes com o terrorismo”, indica que sob o pretexto de realizar uma expedição punitiva contra um ato insano, o imperialismo norte-americano está intensificando e dando forma a um caminho anteriormente traçado de empregar a força para impor a sua hegemonia e o seu domínio unilateral no mundo. Na verdade, dando agora partida à máquina de guerra, os Estados Unidos têm em mira resolver, desde já, problemas estratégicos, numa perspectiva de muitas décadas. E nessa empreitada não pretendem deter-se diante de qualquer obstáculo de natureza ética, diplomática ou política. Estão dispostos a impor sua tirania ao mundo, o que sugere um tipo novo de fascismo, levar povos inteiros ao desespero, praticar genocídios, provocar novas tragédias humanitárias.

Não nos enganemos. A partir dos ataques ao Afeganistão e da proclamação da guerra “longa e dura” por Bush, o mundo viverá um processo de militarização das relações internacionais, o que trará inevitavelmente duras conseqüências para os povos – limitação de direitos democráticos, crises sociais, perda de soberania nacional. A imposição da hegemonia norte-americana só se poderá consumar deixando atrás de si um rastro de horrores e crimes de lesa-humanidade. Somente o emergir desse novo fascismo e do terrorismo de Estado como meio de dominação imperialista poderá garantir o que os norte-americanos chamam de “a novíssima ordem”. Por isso, é pueril e pusilânime, não fosse oportunismo e capitulação, apenas “lamentar” o ataque ao Afeganistão.

A guerra norte-americana – meio para a dominação e a hegemonia

As forças de esquerda não se podem equivocar em face do que está acontecendo. É imperioso, para elaborar a estratégia do bom combate pela libertação dos povos, compreender as tendências objetivas em curso e não apenas os fatos da superfície. Malgrado os rios de tinta que os propagandistas do império do Norte andaram gastando na década de 90 do século passado, para proclamar o triunfo definitivo da superioridade e da hegemonia dos EUA, os verdadeiros estrategistas desse império sabem que sua superioridade circunscreve-se essencialmente ao terreno militar, o que dá aos EUA a capacidade de destruírem o mundo, mas em nada os ajuda a recuperar o terreno que perderam na competição global com outras potências emergentes. “Os atentados terroristas de 11 de setembro desvendaram a natureza militar da hegemonia americana”, diz o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães em lúcido artigo publicado em Carta Maior. Diz ainda o especialista em política externa no mesmo artigo, referindo-se à estratégia norte-americana adotada após os atentados de 11 de setembro: “A atual estratégia contribuirá para enfrentar, em realidade, as ameaças implícitas à sua hegemonia, que muito se teme, caso venha a se consolidar o processo de emergência de um mundo multipolar, onde se fortalece a Europa como novo Estado e onde se vislumbra, na periferia, a ‘ameaça’ poderosa da China”. Acrescentemos a isso a crise econômica dos Estados Unidos e a “desesperadora” situação do balanço energético desse país, na feliz expressão do cientista brasileiro Bautista Vidal, e teremos a indicação de por que o palco da primeira guerra norte-americana do século XXI é a Ásia Central. Muito provavelmente, nos bastidores da perseguição a Bin Laden estejam sendo ensaiados outros combates de natureza estratégica em termos de geopolítica.

Em artigo de fundo da publicação comunista italiana L’Ernesto, uma revista de fôlego e inspiração marxista, Fausto Sorini cita o livro de Zbigniew Brezinszi O Grande Tabuleiro, em que o ex-assessor de Segurança Nacional dos EUA afirma: (o ponto de partida) “para a supremacia global é a Eurásia, o maior continente do globo, onde vivem 75% da população mundial e está concentrada grande parte da riqueza do mundo, seja industrial, seja no subsolo, que incide na formação de 60% do PIB mundial e em três quartas partes dos recursos energéticos conhecidos”. O editorialista italiano cita ainda o jornal Il Manifesto, de 4 de setembro de 2001, observando que “a principal preocupação dos Estados Unidos, que naquela região não são hegemônicos, é a de impedir a formação de uma tríade Rússia-China-Índia, cujo potencial precursor é o tratado de amizade e cooperação firmado em julho por Moscou e Pequim. Ainda em L’Ernesto no citado artigo de Sorini, encontramos a afirmação, publicada originalmente em Il Foglio em 26 de setembro deste ano, de Alessandro Grossato, reputado como “um dos maiores especialistas em política asiática” (Sorini), de que “A Eurásia é o coração da Terra, quem a tomar possuirá o mundo”. Il Manifesto de 21/9/2001 destaca que a região-alvo dos bombardeios e de uma eventual ocupação anglo-americana “é para os EUA de crescente valor estratégico: a região compreende o Afeganistão e o Paquistão, faz fronteira, por um lado, com a China e a Índia (potências emergentes que os EUA temem) e, por outro, com o sempre importante ‘corredor petrolífero’ que vai do Cáspio ao Golfo”.

Os atuais planos de guerra do imperialismo norte-americano não foram, portanto, traçados a partir de 11 de setembro. Insistimos que a atual crise mundial e a guerra já em curso constituem a exacerbação de tendências que vinham evoluindo e são o resultado inevitável da política norte-americana.

Lembremos que a primeira ação externa do novo governo dos Estados Unidos foi um inopinado bombardeio aéreo contra o território do Iraque, revelando uma vez mais o caráter arbitrário do imperialismo, mais um episódio em que a potência norte-americana ignora as normas do direito internacional. A repetição de tais ações combinava-se com o prosseguimento das sanções injustas aos iraquianos, impedindo que se curem as chagas econômicas e sociais abertas com a Guerra do Golfo de 1991, constituindo-se ainda como crime de lesa-humanidade, na medida em que provoca a morte de milhares de pessoas por falta de alimentos e medicamentos.

Já durante a campanha eleitoral no ano passado, o então candidato Bush referia-se à “missão” de fazer valer os “interesses nacionais permanentes dos EUA” na luta contra o “mal”. “Este é um mundo mais incerto do que no passado… Mas, ainda que seja um mundo incerto, estamos seguros de alguma coisa… Estamos seguros de que, apesar de que o império do mal morreu, o mal continua existindo. Estamos seguros de que existe quem não pode suportar o que a América representa… Estamos seguros de que existem loucos no mundo, terror e mísseis” (discurso em Albuquerque em 31 de março de 2000). E logo após sua eleição, o novo presidente indicou como iria defender “o que a América representa”, pedindo a seu secretário de defesa Donald Rumsfeld, para ‘desafiar o status quo no seio do Pentágono e preparar ‘a estratégia de guerra (norte-americana) do século XXI’, cujas grandes linhas já são aparentes, ainda que os detalhes não sejam conhecidos”. (Artigo de Michael T. Klare, Le Monde Diplomatique, julho de 2001). A crônica dos primeiros meses do seu governo é ilustrativa de que os EUA optaram por uma política externa unilateral, baseada na força, voltada para o expansionismo e a imposição da hegemonia norte-americana. Os EUA enrijeceram a política para com a China, provocaram-na abertamente no episódio da violação do espaço aéreo chinês pelo avião de espionagem e incitando o separatismo tibetano e o “independentismo” de Taiwan; proclamaram a caducidade do Tratado Antimísseis de 1972 e decidiram desenvolver um sistema antimísseis que lhe daria supremacia absoluta em termos de armas nucleares, o famigerado projeto “Guerra nas Estrelas”; recusaram-se a assinar o Tratado de Kyoto, boicotaram a Conferência anti-Racista da ONU, dela retirando-se com estardalhaço, e respaldaram todos os atos agressivos de Israel contra a Intifada palestina. Implementaram na Europa uma política de militarização, preconizando a expansão da OTAN e criando situações ainda mais tensas nos Bálcãs, a fim de justificar a presença de tropas imperialistas nessa região também estratégica. Na América Latina, desenvolveram-se manobras militares conjuntas das forças armadas sul-americanas com as dos EUA, sob a denominação Plano Cabañas 2001, ao passo que segue a aplicação do Plano Colômbia que significa uma retomada do intervencionismo militar norte-americano no subcontinente. Prossegue também a ofensiva tendo em vista a implantação da Alca, que resultará numa maior subordinação das economias dos países sul-americanos à dos EUA.

Num esclarecedor artigo, assinado por Philip S. Golub em Le Monde Diplomatique (julho de 2001), somos informados da existência, desde 1992, de um informe do Pentágono intitulado Defense Policy Guidance 1992-1994. “Escrito por Paul Wolfowitz e I. Lewis Libby, hoje respectivamente secretário-adjunto para defesa e conselheiro para questões de segurança do vice-presidente Dick Cheney, esse texto preconizava ‘impedir a qualquer potência hostil dominar regiões cujos recursos lhe permitissem ascender ao status de grande potência’, ‘desencorajar os países industrializados avançados de qualquer tentativa visando a desafiar nossa liderança ou a derrubar a ordem política e econômica estabelecida’, e ‘prevenir a emergência futura de qualquer concorrente global’. Tal informação, à luz dos atuais acontecimentos, da retórica agressiva e das ações de guerra dos Estados Unidos indica que a decisão de ir à guerra tem no objetivo proclamado de capturar o terrorista Bin Laden, apenas um pretexto”, um vão pretexto.

A guerra norte-americana acirrará as disputas internacionais

Na interpretação da atual crise internacional surgem muitas especulações sobre a formação de novas alianças. Experts a serviço do departamento de Estado difundem que os Estados Unidos foram vitoriosos e conseguiram o alinhamento automático, não só dos aliados tradicionais, como de reais e potenciais adversários estratégicos. É como se todo o mundo se rendesse à ameaça de Bush: “Ou estão conosco ou com os terroristas”. Mais uma vez tenta-se turvar as águas apresentando a eloqüente condenação da comunidade internacional ao terrorismo como a aliança de todos os países em torno dos Estados Unidos.

Nas declarações de muitos governos, porém, o que há é muita cautela, diplomacia, sinceridade no propósito de combater o terrorismo, interesse em conter movimentos separatistas de inspiração fundamentalista. Também não falta quem, entre os aliados dos EUA, queira tirar proveito da situação para acumular força. Japão e Alemanha oferecem tropas para abrir precedentes e romper a proibição de que se militarizem. Os EUA, para fortalecer suas posições, invocam o apoio da China; mas, ao contrário do que se propaga, o grande país socialista asiático não apoiou os bombardeios. Pelo contrário: “É necessário que o Conselho de Segurança jogue seu papel. Qualquer ação militar deve respeitar os princípios e os objetivos da Carta das Nações Unidas, além das normas do direito internacional”, declarou o presidente chinês por telefone ao primeiro-ministro britânico, Tony Blair.” (L’Ernesto, artigo de Fausto Sorini). Durante o encontro da Apec, em 20 de outubro, os presidentes da China e da Rússia pediram a suspensão dos bombardeios anglo-americanos no Afeganistão e voltaram a insistir na convocação do Conselho de Segurança da ONU.

Assim, é ledo engano supor que a partir de agora os EUA ganharam um salvo conduto da comunidade internacional para seguir adiante na aplicação dos seus planos guerreiros, que a OTAN poderá expandir-se o quanto quiserem os seus patrões, que a “Guerra nas estrelas” conta com a aprovação de todos e que todos estão concordes com a expansão dos EUA para a Ásia Central e o Oriente Médio. É inevitável que, uma vez evidenciados os propósitos norte-americanos, voltem a prevalecer as divergências entre os EUA e outros países e se recoloquem na ordem do dia os conflitos econômicos, comerciais, políticos, diplomáticos…

A luta dos povos pela paz

Não cabe dúvidas de que a estratégia imperialista e agressiva dos EUA confrontará irremissivelmente esse país com a esmagadora maioria dos países e povos. No Paquistão, na Indonésia, na Palestina, nos países árabes, a política norte-americana desperta ódio e revolta. Na Europa e nas Américas começam a erguerem-se os protestos contra a guerra que ameaça a civilização. Mais do que nunca, a luta pela PAZ contra a GUERRA IMPERIALISTA entra na ordem do dia. Por toda parte, é necessário organizar o movimento pela paz, com o pluralismo e a diversidade que tal tipo de movimento comporta. A frente-única e a unidade em torno da luta pela paz precisam ser forjadas; tarefa para cujo êxito os comunistas e a esquerda devem contribuir.

Expressão da luta dos povos por democracia, soberania nacional, desenvolvimento e justiça social, em oposição aos tenebrosos planos de dominação do mundo pelo imperialismo norte-americano, a luta pela PAZ coloca-se na ordem do dia como tarefa central do movimento revolucionário, vertente essencial da luta pelo socialismo na época atual.

José Reinaldo Carvalho é jornalista e secretário de Relações Internacionais do PCdoB.

EDIÇÃO 63, NOV/DEZ/JAN, 2001-2002, PÁGINAS 10, 11, 12, 13, 14