Há hoje um intenso debate nos meios acadêmicos e empresariais brasileiros sobre a reforma do sistema nacional de formação de competências científicas e tecnológicas; seu ponto alto ocorreu na Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, ocorrida em Brasília de 18 a 21 de setembro de 2001, promovida pelo Governo Federal, com a Academia Brasileira de Ciências (ABC). Seu objetivo foi legitimar junto à comunidade acadêmica e empresarial o projeto “Diretrizes Estratégicas para a Ciência, Tecnologia & Inovação”, do Ministério da Ciência & Tecnologia (MCT), planejado para nortear a política nacional de ciência e tecnologia nos próximos 10 anos.

O documento básico lá debatido foi o Livro Verde da Ciência, Tecnologia & Inovação, um diagnóstico do estágio atual do sistema de C&T no Brasil, que identifica demandas, gargalos, áreas estratégicas e “janelas de oportunidades”– elaborado por meio de consultas à comunidade científica do país. Antes da etapa nacional, ele foi debatido nas Conferências Regionais, e o resultado desse processo será a produção do documento de diretrizes para a ciência brasileira, o Livro Branco da Ciência, Tecnologia & Inovação, a ser lançado ainda este ano. O que há por trás desse processo de debates, se a opção pela discussão democrática não é exatamente uma marca do atual governo?

A verdade é que a “reforma” do Governo Federal para a área de C&T tem envergadura suficiente para alterar objetivos, pressupostos e mesmo o formato institucional dos estabelecimentos de pesquisa. Uma reforma de tamanhas proporções não poderia prescindir de um amplo processo de convencimento e aliciamento, sem o qual teria o mesmo destino de outras malfadadas tentativas do governo.

O Sistema Nacional de C&T, apesar de seus notáveis feitos e realizações, vive uma grave crise. Paga salários baixos; faltam recursos para projetos e programas, e bolsas para a formação de recursos humanos; laboratórios são sucateados e vivem a falta de insumos e a decadência de equipamentos, situação que gera um perverso perfil de financiamento, que privilegia grupos consolidados, abrindo verdadeiros “clarões” no tecido científico brasileiro, sem novos cientistas para cobrir áreas recém-inauguradas.

Essa crise é o resultado de políticas que não atribuem à ciência um papel estratégico para a construção de uma nação forte, moderna e soberana. O desmonte é resultado da miopia política encabeçada pela burocracia federal, para quem o sistema de C&T é uma fonte de desperdício. “No CNPq, tudo que é cedido é perdido”, dizia José Galizia Tundisi, seu presidente em 1998. Bresser Pereira, ministro da C&T de 1998 a 1999, dizia que, “no Brasil, a oferta de C&T é maior que a demanda” (como isso é possível em um país tão necessitado de soluções?). Pedro Malan é mais claro e incisivo: “O Brasil não precisa de Ciência, pois pode comprar a tecnologia de que necessita”.

Ano após ano, o CNPq vem abandonando sua missão mais importante, o fomento à pesquisa (apoio a projetos de pesquisa propriamente ditos), e se transformando numa espécie de “agência de bolsas” (que também entrou em colapso desde 1996) enquanto que, paralelamente, ganha contornos nítidos a transformação do MCT em órgão executivo de fomento, papel que deveria ser das agências.

Outra instância de coordenação e amparo que vinha sendo esvaziada é o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), administrado pela Finep. Durante muito tempo o Fundo foi o principal instrumento de financiamento institucional científico; em 1975, teve papel fundamental na montagem da pós-graduação brasileira. No final dos anos 90, o FNDCT entrou em crise terminal (reduzido a apenas 5% do orçamento dos áureos anos 70). Agora, vive uma promessa de “renascimento”, com o aporte de recursos dos Fundos Setoriais. O governo federal promete, com a anunciada “reforma” da área de C&T, retirar o setor da atual situação de indigência.

A “reforma” do Sistema Nacional de C&T

A “reforma” da área de C&T começou no início dos anos 90, com o programa de “abertura” e “desestatização” de Fernando Collor, e agora entra em fase de consolidação. Seu principal pressuposto é o reconhecimento do atraso tecnológico, em grande parte fruto do modelo subordinado de industrialização, feito através da aquisição de “pacotes” tecnológicos, que criou o caldo de cultura responsável pelos baixos investimentos em P&D feitos pela iniciativa privada.

O Governo Federal prepara terreno para a transformação dos laboratórios de pesquisa das universidades e institutos em autênticos departamentos de pesquisa a serviço das empresas privadas, com o risco de comprometer a autonomia universitária. Espera assim assumir, no lugar das empresas, os riscos dos investimentos.

Foi para materializar essa estratégia que o Governo criou o “Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia & Inovação” (CT&I), acentuando a indistinção de funções entre centros acadêmicos e a malha produtiva do país. De fato, o conceito de “inovação” refere-se à “introdução de produtos e processos tecnologicamente novos” (DA SILVA et alli, 2001: p. 16) no âmbito da produção. A inovação resulta de um ciclo que começa com uma invenção (idéia nova) e passa pelas etapas de pesquisa, desenvolvimento experimental, engenharia e introdução comercial do produto ou processo. A inovação, portanto, não se restringe à P&D, e tem seu “locus” por excelência na empresa, não sendo função da universidade.

O instrumento principal para a consecução desse modelo é propagandeado pelo governo como a solução para a insuficiência e a instabilidade dos recursos investidos em C&T. São os chamados Fundos Setoriais, que já trazem no nome a incompatibilidade com investimentos maciços em ciência básica, que não é “setorial”, mas cada vez mais ampla, interdisciplinar e avessa à “departamentalização”. De fato, só a tecnologia pode ser setorial, pois ela não diz respeito propriamente à ciência, mas à fusão entre o conhecimento científico e a técnica (esta sim setorial).

Os Fundos serão compostos pela taxação das receitas das empresas beneficiárias de incentivos fiscais, compensação financeira, licenciamentos e recebimento de royalties (remuneração por uso de tecnologia) por parte de empresas concessionárias de serviços públicos. Sete Fundos já estão em operação: os de petróleo e gás natural (CTPetro), atividades espaciais, energia elétrica, recursos minerais, recursos hídricos, transportes e informática. Outros dois estão em fase inicial: o Fundo de Infra-estrutura, composto de 20% de todos os Fundos e que ficará com o MCT e o MEC para o investimento na infra-estrutura laboratorial de universidades e institutos, e o “Fundo Verde-Amarelo”, composto de taxação sobre empresas detentoras de licenciamentos ou outras formas de aquisição de tecnologia no exterior e destinado a projetos de cooperação universidade-empresa. Além desses há também o Funttel (Telecomunicações), composto e operado de forma ligeiramente diferenciada dos demais.

Outros quatro Fundos estão em elaboração. São os das áreas de agronegócios, saúde, biotecnologia e aeronáutica. Juntos, todos esses 14 fundos deverão movimentar mais de um bilhão de reais – tal fato se efetivado, dobrará os investimentos do país em C&T.

Eles representam, diz Jorge Guimarães (Jornal da Ciência, nº 448), uma “profunda reforma no campo (…) do fomento à pesquisa no Brasil”, que afetará o montante e a origem dos recursos investidos, e os objetivos da pesquisa científica e o arcabouço institucional que irá operá-los. Os programas financiados pelos Fundos terão caráter predominantemente: a) indutivo (aos critérios de mérito científico serão adensados os de prioridade); b) tecnológico (pesquisa será desbalanceada em prejuízo da Ciência Básica); e c) empresarial (o eixo das pesquisas será deslocado das universidades e institutos para redes de pesquisas através das quais se associarão empresas e instituições de pesquisa).

Os recursos dos Fundos serão recolhidos ao FNDCT e administrados pelos “Comitês Gestores”, com baixa representação da comunidade acadêmica; esses comitês são também setoriais. Para articular o funcionamento dos Fundos, adequando-os às diretrizes gerais, o governo criou uma agência “independente” (independente de quem?), o Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE), sob a forma de “organização social” e que, na prática, traçará diretrizes políticas e identificará prioridades, “blindando” com isso o sistema (como vem sendo feito em diversas áreas do governo com a criação de outras “agências independentes”) através do esvaziamento do MCT, do CNPq e até da Finep, a quem cabe a gestão do FNDCT.

A “blindagem” do sistema é a grande exigência empresarial, garantia contra uma eventual mudança de governo, que poderia “desviar” recursos de origem privada para fins “públicos” (leia-se para pesquisa acadêmica). Essa é a grande disputa que se dá hoje: como serão utilizados os vultosos recursos dos Fundos.

Como podemos perceber, diversas incertezas incidem sobre o modelo instaurado com os “Fundos Setoriais”. Em primeiro lugar, o grosso dos recursos financiará a pesquisa tecnológica, deixando a descoberto amplas áreas de ciência básica e, até mesmo, de ciência aplicada, pois as áreas cobertas pelos Fundos têm potencial de disponibilização de recursos, não sendo necessariamente as que mais demandam recursos para pesquisa. Como ficarão as outras áreas não-cobertas pelos fundos (a Bioquímica é um bom exemplo)? A tendência é de desequilíbrio da cadeia do conhecimento em favor (de alguns) dos elos finais, situados mais próximos das atividades de inovação. Aqui é preciso afirmar, com Roberto Salmeron (Jornal da Ciência, nº 438), que “não há pesquisa tecnológica sem boa e extensiva pesquisa básica”.

Outro problema: as empresas não entendem por “tecnologia” exatamente o mesmo que os cientistas, havendo o risco do uso dos recursos para serviços de engenharia, assistência técnica e similares que pouco ou nada contribuem para a elevação da competência científica e tecnológica do país, como já ocorre com o CTPetro. É necessário portanto exigir que os recursos dos Fundos sejam de fato utilizados em projetos científicos e tecnológicos e que não substituam os indispensáveis investimentos das empresas no conjunto das atividades inovativas.

Outro grande risco relacionado a esse modelo de financiamento foi apontado mesmo por um aliado de primeira hora do governo FHC, o ex-ministro José Goldenberg. É necessário pugnar para que os recursos dos Fundos sejam complementares ao financiamento público normal, e que não substituam os recursos públicos já alocados no FNDCT. Isso, aliás, já começou a ocorrer no caso do CTPetro, que vem substituindo os recursos públicos do Cenpes/Petrobrás. Esse é um risco alto, pois o dinheiro dos fundos é de origem privada e não podemos acreditar que as empresas abrirão mão do lobby para determinar a destinação final dos recursos.

Se os Fundos Setoriais reformam o financiamento, e o CGEE “reforma” o arcabouço institucional, a chamada “Lei de Inovação”, em discussão, completa a reforma sob o aspecto dos instrumentos legais de estímulo à produção de P&D nas empresas. A Lei cria mecanismos de estímulo à relação empresa-universidade, e deve ampliar as dificuldades hoje vividas pelas instituições de pesquisa no Brasil.

A Lei propõe, dentre outras medidas, flexibilizar os contratos de trabalho, permitindo a contratação de pessoal sazonal e temporário para trabalhar em projetos de pesquisa em instituições públicas ou privadas; a celebração, por parte das instituições de pesquisa, de contrato de gestão para “encomendas tecnológicas” ou atividades conjuntas de pesquisa com outras instituições públicas ou privadas; a redução da jornada de trabalho sem redução da remuneração para pesquisadores de instituições públicas que se dispuserem a fundar Empresas de Base Tecnológica (EBT’s); o uso pelas EBT’s, mediante contrato, dos laboratórios das instituições de pesquisa, e a extensão dos incentivos fiscais de micro e pequenas empresas vigentes para as EBT’S.

A Lei de Inovação permite, na prática, a apropriação de recursos físicos e humanos públicos por empresas privadas. Se aprovada, causará sérios transtornos às universidades públicas, que contam já hoje com um déficit de 8 mil professores e com recursos físicos limitados e sucateados. A respeito desse assunto não é dita uma só palavra no Livro Verde, a não ser para constatar genericamente que as universidades públicas passam por um “momento crítico”.

O grande erro do governo com ações como o Fundo Verde-Amarelo ou a Lei de Inovação consiste justamente em achar que a Universidade vai abandonar sua missão precípua para substituir a empresa em atividades inovativas. Segundo Roberto Nicolsky (Idem, nº 51, p. 5), “A chamada integração universidade-empresa é figura de retórica. São entidades que têm objetivos diferentes, linguagens distintas e funções sociais diversas. Não há como institucionalizar essa tal integração. Isso é como obrigar as empresas a agir com padrões acadêmicos e querer que as universidades se preocupem com mercados e lucros. É o desvirtuamento de ambas as instituições, o que é indesejável e ineficiente … Para auscultar o mercado e desenvolver a inovação, a empresa não tem substitutos. A via universitária para gerar inovação tecnológica já foi tentada muitas vezes, tendo resultado em desempenhos modestíssimos”.

Vista em seu conjunto, a “reforma” parte da idéia de que já teríamos uma base científica adequada, restando apenas investir em aplicações e inovação. É justamente essa concepção – que parece dar razão ao “imperativo Malan” (“O Brasil não precisa de Ciência!”) – que têm originado, como resultado das políticas implementadas ao longo dos últimos dez anos, a mais perigosa tendência para o desenvolvimento de nosso Sistema de C&T: a do envelhecimento rápido e precoce do Sistema através da exclusão de jovens talentos.

Essa tendência, curiosamente, tem sido reforçada por praticamente todos os projetos e programas do governo federal para a área de C&T, já que as ações nessa área estão pautadas pela idéia de que ao Brasil não valeria a pena investimentos maciços em ciência básica. Assim, o governo resolveu enveredar de vez pela idéia da concentração em “nichos” que supostamente representariam para o Brasil “janelas de oportunidade”: energia, tecnologias da informação, biotecnologia e as áreas aeroespacial e nuclear.

Como conseqüência dessa opção, o governo concentra esforços nos grupos de pesquisa consolidados, marginalizando no sistema os grupos emergentes – muitos em áreas novas da ciência – geralmente compostos por jovens mestres e doutores. Essa opção se materializa em programas do MCT como o PADCT (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico), o RHAE (Formação de Recursos Humanos para Áreas Estratégicas), o Pronex (Programa de Apoio a Núcleos de Excelência), que serviu para salvar 159 grupos de pesquisa da grande “débacle” que ocorreu em 1997, o recém-lançado Programa de Biotecnologia e Recursos Genéticos e o polêmico “Institutos do Milênio”, que financiará a construção de “redes virtuais de pesquisa”, uma das fixações do Livro Verde.

O modelo de redes de pesquisa, por sinal, atende a um duplo intuito do governo: flexibilizar o modelo clássico de grupos de pesquisa presenciais, estimulando a parceria entre instituições públicas de pesquisa e empresas, e concentrar os recursos em áreas consideradas “estratégicas”. As diretrizes políticas para a área de C&T e os programas “estratégicos” coincidem com recomendações do Banco Mundial que pretende – através do financiamento de programas que estimulem a criação de núcleos de excelência nos países em desenvolvimento – ajudar na superação do “apartheid tecnológico” que distancia nações ricas de pobres.

Vem daí o modelo de “laboratórios associados”, que inspira os programas citados. Nada contra esse modelo, que tem resultado em grandes realizações científicas nas nações desenvolvidas. O problema ocorre quando desvia recursos para a capacitação de recursos humanos e fomento à pesquisa básica, provocando a concentração dos recursos em grupos consolidados. “Essa política”, diz Glaci Zancan, presidente da SBPC, “está paulatinamente envelhecendo o sistema e certamente levará a um decréscimo na produtividade da área. O correto seria manter os pesquisadores mais velhos no sistema e absorver os jovens competentes (…) associando assim a experiência com a criatividade dos mais jovens” (Idem, nº 445, p. 6).

Causas da dependência tecnológica brasileira

Tática semelhante tem sido usada pelo governo em relação à comunidade empresarial, ainda bastante resistente à idéia da Área de Livre Comércio das Américas – Alca. É com a finalidade de aliciar o empresariado para uma nova onda de abertura que o governo federal acena com a estratégia dos Fundos Setoriais, vendidos como instrumentos que darão à indústria brasileira novos padrões de qualidade e competitividade.

Achar que a Alca induzirá as empresas a investirem em tecnologia, livrando nosso país da dependência nesse setor, é incorrer no erro das teses professadas já na primeira onda de abertura no início dos anos 90, que não resultou na esperada modernização do parque industrial brasileiro, mas no aniquilamento da maioria das empresas e na desnacionalização do que restou. Achar que uma segunda onda de abertura resolverá o problema tecnológico de nosso país é desconhecer rotundamente as causas do atraso e da dependência tecnológica brasileira.

Essas causas são esclarecidas no Relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre as Causas e Dimensões do Atraso Tecnológico Brasileiro, encerrada em setembro de 1991, há mais de dez anos, o qual sugeria que as preocupações do governo brasileiro com a C&T tendem a ser acentuadas em períodos de maior abertura.

Segundo esse relatório, o atraso tecnológico brasileiro decorreu de uma industrialização subordinada, baseada na concessão de grandes subsídios para as empresas que aqui se instalavam, criando uma reserva de mercado oligopólica para empresas em boa medida transnacionais. “Com a crise de divisas dos anos 50 e a introdução do processo de substituição de importações, houve a possibilidade de instalação de um parque industrial com assistência tecnológica estrangeira. Com isso, a indústria brasileira que se instalou conseguiu evitar os riscos de investimentos de custo imprevisível e resultado incerto, mas teve a desvantagem de não procurar gerar tecnologia própria” (CONGRESSO NACIONAL, 1992: p. 149).

Segundo esse relatório, “a característica do investimento direto estrangeiro em subsidiárias de empresas transnacionais ou a de importações de máquinas e equipamentos em caixas pretas por empresas locais é a de que, num caso e noutro, não se faz absorver tecnologia nenhuma” (Idem, ibidem: p. 157).

A principal conclusão dos parlamentares na análise da defasagem tecnológica brasileira foi de que não pode haver uma verdadeira política científica e tecnológica sem uma autêntica política industrial, sendo o inverso também verdadeiro. “O modelo instituído pelas políticas econômicas no Brasil inviabiliza o desenvolvimento tecnológico, independentemente de serem bem ou mal concebidas as políticas de ciência e tecnologia e as de educação” (Idem, ibidem: p. 157).

Com efeito, como querer que indústrias nacionais, frente aos permanentes juros altos e enfrentando a concorrência de poderosas empresas estrangeiras, ainda façam investimentos de alto risco? E como querer que empresas transnacionais realizem investimentos em P&D que, de forma geral, já estão sendo realizados em suas matrizes? Isso não significa dizer que as transnacionais jamais investem em tecnologia em suas filiais, mas que, quando o fazem, raciocinam com base em interesses transitórios e de olho em objetivos globais, às vezes visando alcançar um padrão técnico que torne a filial uma plataforma de exportação para mercados exigentes, às vezes objetivando apenas inovações secundárias e complementares àquelas feitas na matriz, sempre mais densas tecnologicamente. De onde depreendemos que “a questão do controle nacional do capital das empresas emerge como uma condição decisiva para o sucesso inovativo” (Idem, ibidem: p. 149).

A alegada “falta de cultura empreendedora” do empresariado nacional na verdade é fruto de anos de um modelo de desenvolvimento que praticava verdadeira “reserva de mercado” às avessas, privilegiando não um ambiente de concorrência entre empresas nacionais, mas a oligopolização na maioria das vezes beneficiária de transnacionais. É essa a causa de fundo da baixa interação entre centros produtivos e de pesquisa em nosso país, que “decorreu das coerções do próprio mercado, condicionado pelas políticas econômicas, daí derivando, também, o imediatismo que se atribui aos empresários. A proteção comercial ajudou a garantir reservas de mercado para produções de transnacionais e de empresas locais tecnologicamente dependentes” (Idem, ibidem: p. 169).

De fato, uma política cujo objetivo seja a autonomia tecnológica do país jamais poderá ir à frente no contexto de um modelo econômico dependente. “O impasse fundamental do desenvolvimento científico e tecnológico reside, pois, no modelo econômico em vigor” (Idem, ibidem: p. 159) – modelo que só tende a se agravar com a Alca.

Munido dessa compreensão; o Relatório do Congresso Nacional conclui que “sem a reforma total das políticas econômicas, não há como reverter o processo, em curso, de atraso tecnológico crescente” (Idem, ibidem: p. 163).

Olhando pela ótica inversa, nenhum país atrasado tecnologicamente pode ser verdadeiramente soberano social e economicamente. A tecnologia é hoje uma questão de poder, pois “é determinante, do lado da demanda, da forma como os recursos humanos e naturais vão ser utilizados, como a força de trabalho, em particular, vai ser utilizada (…). Por outro lado ela é também determinante (…) do suprimento de bens e serviços que serão dados à população, que camadas da população vão ser atendidas (…) Por isso a política de C&T é fundamental na determinação, a médio e longo prazos, do tipo de Nação que vamos ter” (Idem, ibidem: p. 151).

É fundamental, portanto, que a sociedade brasileira se dê conta de que nada adianta produzir sem saber como e por que se produz, ou a produção se tornará frágil e efêmera naquilo que tem de estratégico – a capacidade técnico-científica do ser humano. É esse na verdade o principal fator determinante da moderna agregação de valor a produtos e processos. E é precisamente por isso que um bom e competente sistema de produção de tecnologia não pode jamais prescindir de ampla, extensiva e desinteressada pesquisa básica de qualidade. Afinal, por mais que sejam demorados os resultados em termos de aplicações, a principal característica da moderna tecnologia é a de ser intensiva em ciência. Como bem diz Barbieri (1990, p. 56), “para uma unidade produtiva isoladamente considerada é possível a produção de tecnologia sem a produção de novos conhecimentos científicos.

Porém, em nível global da sociedade, isso não seria possível por muito tempo (…) Não é mais possível sustentar um ritmo adequado de produção de novas tecnologias sem a correspondente produção de conhecimentos científicos (…). Sem pesquisas científicas o progresso tecnológico torna-se inviável em médio e longo prazos”.

E não é por outro motivo que o relatório do Office of Technological Assessment do Congresso norte-americano afirma: “Em longo prazo, nem o país nem seus cidadãos podem controlar nem influir sobre o que não conseguem produzir com competência” (CONGRESSO NACIONAL, 1992: p. 161). Taí uma coisa com a qual fica difícil discordar dos norte-americanos.

Fábio Palácio de Azevedo é ex-diretor da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG)
e atual diretor de C&T da UJS. Representou
a entidade na Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação.

Referências
BARBIERI, José Carlos. Produção e Transferência de Tecnologia. São Paulo: Ática, 1990.
BAUTISTA VIDAL, J.W. O Esfacelamento da Nação. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
CONGRESSO NACIONAL. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre as Causas e Dimensões do Atraso Tecnológico – Relatório Final. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1992.
SILVA, Cylon Gonçalves da et MELO, Lúcia Carvalho da Silva de (Coords.). Ciência, Tecnologia e Inovação: Desafio para a Sociedade Brasileira – Livro Verde. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia / Academia Brasileira de Ciências, 2001.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Programa Nacional de Atividades Espaciais: 1998 – 2007. 2ª ed. Brasília: Agência Espacial Brasileira, 1998
SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA (SBPC). Jornal da Ciência. Números 403 a 468. Rio de Janeiro: dez 98 a out 01.

EDIÇÃO 63, NOV/DEZ/JAN, 2001-2002, PÁGINAS 69, 70, 71, 72, 73, 74