Mudança: este sentimento levou Luís Inácio Lula da Silva à presidência da República na eleição de 2002: ele significa a exigência de um novo modelo de desenvolvimento, de um novo rumo para o país. Uma expectativa que não é nova na história brasileira: o conflito entre modelos opostos atravessou todo o período independente onde, ao contrário da pretendida modernidade dos neoliberais, foi a concepção liberal da economia e da integração subordinada do país no comércio mundial que predominou até a República Velha, com exceção dos curtos intervalos quando uma política fiscal e aduaneira protecionista temperou o livre-cambismo predominante.

Modelos de desenvolvimento refletem os interesses dominantes, a concepção de nação que prevalece e os favorece, e também a correlação de forças que permite a emergência desses interesses e sua expressão como política econômica. São modelos históricos no sentido de que são condicionados pela luta de classes e resultam da distribuição do poder dentro de uma dada sociedade e de suas relações externas. Aplica-se, aqui, aquilo que Engels escreveu a respeito da história: ela “se faz de tal modo que o resultado final sempre deriva dos conflitos entre muitas vontades individuais, cada uma das quais, por sua vez, é o que é por efeito de uma multidão de condições especiais de vida. São, pois, inumeráveis forças que se entrecruzam umas com outras, um grupo infinito de paralelogramos de forças, das quais surge uma resultante – o acontecimento histórico – que, por sua vez, pode considerar-se produto de uma força que, como um todo, atua sem consciência e sem vontade”.

Os modelos de desenvolvimento desse tipo não são, por isso, formulações a priori prontas e acabadas, que uma força social propõe ao país. Eles partem de linhas gerais – definidas pelos interesses das classes sociais conflitantes –, mas se definem no choque político, econômico e social. Cada força social compreende as formulações propostas a partir de suas próprias visões de mundo, suas necessidades e interesses, mas a intervenção consciente no processo histórico é apanágio de outro modelo, radicalmente diferente, cujo propósito é a superação do sistema capitalista – o socialismo, que não será considerado neste artigo.

No Brasil, esse conflito refletiu, desde o início, a oposição entre a defesa da independência e autonomia do país, que pode ser chamada de desenvolvimentista, contra a aliança entre a oligarquia mercantil, agro-exportadora, e os interesses externos (no passado, coloniais; depois, imperialistas), que é liberal, ou neoliberal.

Um marco da origem da linhagem liberal foi a queixa, de 1770, dos comerciantes do Rio de Janeiro ao vice-rei do Brasil, Marquês de Lavradio, contra a fabricação de tecidos no país. Eles dominavam o comércio externo e já eram uma facção de destaque nas classes dominantes brasileiras, formada ainda no período colonial, cuja existência estava ligada àquele sistema; suas queixas estão na origem da decisão da rainha Maria I de proibir, em 1785, as manufaturas coloniais. A proibição só foi revogada depois de 1808, quando a família real portuguesa mudou-se para o Brasil. Começou então o combate entre os dois modelos, que atravessou os séculos XIX e XX, e ainda se mantém. Um dos representantes da posição liberal, favorável ao livre comércio, à agro-exportação, ao tráfico de escravos, e alinhada com os interesses da Inglaterra, foi o visconde de Cairu, antiindustrialista, que inventou (em 1811) a distinção entre indústria natural (aquela que tem matérias primas, equipamentos e tecnologias já existentes no país) e contranatural (aquela que fosse protegida por tarifas alfandegárias), argumento que faria longa carreira contra a instalação de indústrias no Brasil. Para Cairu, a proteção à indústria diminuiria as importações, prejudicando o capital mercantil e também os latifundiários, pois as exportações poderiam diminuir.

Esse debate marcou a época da independência; José Bonifácio, ainda em 1821, queria um país autônomo e capaz de defender seus interesses. Para isso, preconizava o fim da escravidão; distribuição de terras a ex-escravos, imigrantes, índios e lavradores pobres; fomento da agricultura de alimentos e matérias primas para a produção nacional; proteção às fábricas nacionais; construção de estradas para interligar o país; e investimentos para elevar o nível de educação dos brasileiros. Combatia ainda o predomínio das finanças sobre o governo: “Infeliz o governo cuja administração econômica é seduzida, e dominada pelas finanças: três vezes infeliz aquele onde se diz a alta finança”, escreveu.

Suas idéias foram derrotadas pelos colonialistas que dominaram o movimento da Independência, afastaram-no do governo e passaram a ter voz ativa junto a dom Pedro I. O latifúndio e o grande capital mercantil juntaram-se aos ingleses, formando o bloco agro-exportador, cujos interesses haviam imposto os tratados comerciais de 1810, que abria o mercado brasileiro às mercadorias britânicas. Estava aberto e pavimentado o caminho para a manutenção da arcaica estrutura social do colonialismo, e começava a afirmar-se a idéia da vocação agrícola do Brasil; já em 1825 Bernardo Pereira de Vasconcelos dizia que o país devia permanecer essencialmente agrícola.

A política econômica do império foi liberal (ou livre-cambista) até 1844, quando os tratados de 1810 foram substituídos por uma política alfandegária que atendia aos interesses fiscais e protegia a indústria. Foi a tarifa Alves Branco, que permitiu o primeiro surto de industrialização do país. A história do Visconde de Mauá – que já era um grande empresário e construiu então o estaleiro de Porto de Areia, um dos maiores do mundo –, é emblemática de contradições que não foram resolvidas até hoje. Ele prosperou sob o protecionismo, mas não sobreviveu à reforma liberal que, a partir de 1857, eliminou as taxas de importação e prejudicou severamente a indústria que nascia.

Desde então, até o final do império, o cenário econômico foi marcado pela exigência de apoio à economia nacional e à indústria; e da ruptura com o livre-cambismo, considerada por muitos como fundamental para derrotar de vez o colonialismo e completar o processo de autonomia iniciado em 1822. Não foi sem razão que os últimos gabinetes do Império esboçaram uma política de amparo às fábricas nacionais, continuada nos dois primeiros governos republicanos, entre 1889 e 1894, que foram claramente protecionistas.

Para Rui Barbosa, ministro da Fazenda do marechal Deodoro, no primeiro governo republicano, a indústria era fundamental para elevar a riqueza material do país e dar fundamento à democracia que a República prometia. Essa opção foi sinalizada pela lei do Similar Nacional, de 1890, que dificultava a importação de bens já produzidos no país, lei que atravessou todo o período republicano e foi revogada por Fernando Collor de Mello, cem anos mais tarde.

Rui Barbosa foi também autor de uma reforma bancária, para facilitar o crédito e fomentar a produção. Ele previa a emissão da moeda garantida por títulos do Tesouro e ancorada na produção nacional e no crescimento da riqueza do país. Reforma justificada por ele, mais tarde, com o argumento de “que as finanças do Tesouro dependem radicalmente da atividade produtora das forças nacionais, e que não podem ter desenvolvimento sem instituições que impulsionem o trabalho, ministrando-lhe os instrumentos da expansão”. Para os metalistas (os monetaristas da época, que correspondem aos neoliberais de hoje), era uma heresia que contrariava a teoria clássica segundo a qual a moeda só podia ser ancorada em reservas externas obtidas com o comércio exterior. A proteção à produção nacional continuou sob Floriano Peixoto, cujo ministro da Fazenda, Serzedelo Corrêa, foi um importante líder protecionista, para quem só a indústria poderia “desenvolver as forças produtivas dos países novos” e, assim, assegurar a prosperidade da nação, diz Nícia Vilela Luz.

Essa política foi abandonada por Prudente de Morais, líder oligárquico paulista. Ele iniciou o retorno liberal, consolidado por seu sucessor, Campos Salles, e seu ministro da Fazenda. Campos Salles, em 1899, assim definira os “sãos princípios econômicos”: “exportar tudo quanto pudermos produzir em melhores condições que os outros povos, e procurar importar o que eles possam produzir em melhores condições do que nós”. Nesse ano, ele renegociou a dívida externa, aceitando as imposições dos Rottschild, banqueiros ingleses que eram os principais credores do país. Deu como garantia as rendas dos portos, da Estrada de Ferro Central do Brasil e do serviço de abastecimento de água do Rio de Janeiro. Os credores externos impunham condições semelhantes às que, hoje, fazem parte do receituário neoliberal, semelhança ilustrada pelo comentário do historiador José Maria Bello sobre o funding loan: “Residia no equilíbrio do Tesouro o problema essencial do Brasil. Para resolvê-lo, eram medidas indispensáveis: a deflação, a implacável compressão das despesas, o aumento dos impostos, o abandono das obras públicas, o melancólico retorno aos campos, o afastamento do Estado de qualquer atividade industrial, que somente poderia frutificar pela livre iniciativa do indivíduo.”

Desde “que o Governo conseguisse sanear a moeda, elevando as taxas cambiais e equilibrando os orçamentos, a reconstituição das forças econômicas se operaria automaticamente, livre da perigosa interferência oficial”.

Com a revolução de 1930 teve início a chamada era Vargas (que Fernando Henrique Cardoso prometeu encerrar), fortalecendo a idéia da necessidade de uma política para o desenvolvimento do país.
Mas o liberalismo não estava morto, e o debate aberto entre as duas opções eclodiu em 1944, no Conselho Nacional de Política Industrial, polarizado por figuras como Roberto Simonsen, campeão da industrialização, e Eugênio Gudin, o patrono dos neoliberais brasileiros. Gudin rejeitava a industrialização, queria o Estado fora das atividades econômicas, a restrição e o controle do crédito. Pensava que o Brasil devia “exportar muito e importar muito” (como seus antepassados: a dupla Campos Salles/Joaquim Murtinho); pregava a liberdade para o capital estrangeiro; a igualdade de tratamento entre o capital nacional e o estrangeiro; a abolição de qualquer restrição à remessa de lucros; finalmente, o revigoramento da agro-exportação e a preservação de sua preponderância na economia do país, diz Eli Diniz.

Este foi o conjunto de idéias, que Sônia Regina Mendonça identificou como neoliberais, que articulou as oposições ao Estado Novo e, depois, a Vargas e sua herança. Essa ideologia uniu agro-exportadores, grupos importadores, e setores da classe média urbana, todos eles “desejosos de livrar-se quer do confisco cambial, quer da seletividade das importações praticadas pelo Estado”.
O nacional-desenvolvimentismo surgiu contra essas teses, sendo expresso já na Carta Econômica de Teresópolis, de maio de 1945. Os nacionalistas defendiam o desenvolvimento industrial, e inclusive o Partido Comunista do Brasil aderiu a esse modelo como forma de superar o atraso neocolonial. Definido nas décadas de 1940 e 1950, esse modelo teve seu ponto alto nos governos de Vargas (1951/1954) e João Goulart (1961/1964).

Os defensores do modelo mais antigo, mais conservador e enraizado no passado colonial: o liberalismo, mantiveram-se na ofensiva, usando em sua defesa todos recursos internos e externos.
Do entrechoque entre estas duas visões nasceu, na década de 1950, um modelo híbrido, o dependente associado; foi uma espécie de combinação de características de cada uma delas.
Entre os modelos que se definem mais ou menos espontaneamente, ao sabor das condições da luta de classes e suas imposições é preciso considerar ainda aquele que pode ser definido como democrático, econômico nacional e popular.

O modelo liberal ou neoliberal

Conhecido no passado como liberal, ou livre-cambista – e hoje como neoliberal –, esse modelo baseia-se na visão colonial (reiterada pelo imperialismo) de que, na divisão internacional do trabalho, cabe aos países ricos a produção de bens industriais e de alto valor agregado, e à periferia colonial e semicolonial a produção de alimentos, matérias primas e outros insumos. Seu dogma é a teoria das “vantagens comparativas” definida no início do século XIX por David Ricardo, segundo a qual cada nação só deve produzir aquilo que pode fazer melhor, e importar das demais o que elas produzem com mais eficiência, teoria que favorecia as indústrias inglesas. Ela e o livre-cambismo que dela decorreu
foram adotados.

A teoria das vantagens comparativas, e o livre-cambismo que decorreu dela, foram adotados pelos setores agro-exportadores e mercantis que eram, desde o período colonial, a contrapartida dos grupos dominantes na economia mundial e que, assim, beneficiavam-se da posição subalterna do país no contexto mundial. Estes grupos conseguiram seu poder depois da Independência, da República e da revolução de 1930, e foram o principal foco de oposição ao desenvolvimento autônomo do país após a Segunda Grande Guerra. Hoje, são os principais aliados internos do imperialismo, sendo o esteio da política neoliberal de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Sua influência manifestou-se nos governos do marechal Eurico Gaspar Dutra, entre 1946 e 1951, e Café Filho, em 1954/1955. O liberalismo de Dutra levou a uma abertura econômica que dissipou, em apenas dois anos, as reservas externas de 600 milhões de dólares acumuladas durante a guerra, e que Vargas pretendia usar para a recuperação tecnológica da indústria brasileira. Segundo Edgard Carone, “a conseqüência é que, nestes anos, dá-se a importação livre de bugigangas – brinquedos, eletrodomésticos, bebidas, automóveis”. Após o suicídio de Vargas, em 1954, essa política foi retomada por seu sucessor, Café Filho, e por Eugênio Gudin, cuja presença no ministério da Fazenda foi saudada pelo jornal norte-americano The New York Times como “o homem certo, no lugar certo, na hora certa”. Era o governo da oligarquia agro-exportadora, dos grandes grupos financeiros e dos aliados internos do imperialismo. Durou pouco, pois, apesar das tentativas golpistas de 1955 para impedir sua posse, Juscelino Kubitschek assumiu a presidência e implantou o Plano de Metas, que substituía aquela orientação liberal.

Mesmo em 1964, a resistência contra o modelo liberal foi grande, explicando as contradições da ditadura e o fracasso dos generais em impor, de forma plena, as idéias de Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos, legítimos herdeiros da linhagem de Cairu, Murtinho e Gudin e seguida pelos neoliberais de nosso tempo. Durante o governo do marechal Castelo Branco, eles impuseram o PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo), que seguia de forma submissa a receita do FMI: corte nos gastos do governo, restrições de crédito, arrocho salarial, aumento dos impostos. Política que já havia enfrentado, em julho de 1964, a oposição de cafeicultores e industriais; de trabalhadores; de setores da classe média. Em São Paulo, mais de 5 mil fábricas fecharam; os salários caíram, em 1964, 25% em relação a 1957; 40% em 1966.

Outro traço daquela política, e um dos preconceitos mais fortes do neoliberalismo, é o menosprezo pela soberania nacional, indicada na época pelo próprio presidente da República, o marechal Castelo Branco que, em julho de 1964 disse, num discurso, que “a independência é um valor terminal”, que só pode ser preservado com “a aceitação de um certo grau de interdependência, quer no campo militar, quer no econômico, quer no político”.

O liberalismo puro sangue só se impôs após o fim da ditadura militar: foi o neoliberalismo de Collor e FHC. Suas premissas, registradas no chamado Consenso de Washington, eram as mesmas que se repetiam desde Cairu, do Império, de Joaquim Murtinho e de Eugênio Gudin. Resumindo a receita do FMI, do Banco Mundial, de Wall Street e do governo norte-americano, preconizava uma estratégia de ajustamento econômico, baseada em três passos a serem dados, nessa ordem: 1 – estabilização da economia (combate à inflação); 2 – realização das chamadas reformas estruturais (privatizações, desregulamentação de mercados, liberalização financeira e comercial); e 3 – retomada dos investimentos estrangeiros.

O programa do PSDB para a eleição de 1994 refletia essas idéias conservadoras. Chegou a prever “uma verdadeira avalanche de capitais que virão do exterior ou serão transferidos da especulação financeira para a produção” e baseou nessa idéia temerária sua estratégia de desenvolvimento. Seu aliado, o PFL, falava em “incorporar as idéias do moderno liberalismo” e em “uma economia de mercado onde os agentes econômicos possam exercer plenamente as liberdades de produzir, investir e consumir”. Onde está escrito “agentes econômicos” deve-se ler o capital, e principalmente o grande capital. Aqueles dois partidos conservadores queriam reduzir o papel do Estado no desenvolvimento e Fernando Henrique Cardoso repetia dogmas liberais já testados e ultrapassados dizendo ser preciso “aproveitar nossas vantagens estratégicas: metas audaciosas na agricultura, programas intensivos de treinamento de mão-de-obra, expansão dos setores de serviços, especialmente no turismo, etc. E muito investimento (privado, local e internacional, junto ao que seja possível no setor público) em energia, portos e transportes”. Sem dizer nada sobre indústria ou política industrial, indicava o sentido da integração subordinada do Brasil ao sistema produtivo mundial, e defendia e atualizava a velha opção pelo atraso e pela dependência.

O modelo nacional desenvolvimentista

A idéia de um desenvolvimento capitalista autônomo, que emergiu com força nos dois primeiros governos republicanos, tomou corpo sob Vargas, na ditadura do Estado Novo, quando o governo passou a intervir de maneira direta para favorecer o desenvolvimento industrial.

Mas foi com a volta de Vargas à presidência, em 1951, que a disputa entre os modelos de desenvolvimento assumiu sua feição moderna. Já como senador, na legislatura iniciada em 1946, Vargas havia investido contra a orgia liberal de Dutra, insistindo na necessidade do desenvolvimento do país. “Limitar a atividade de uma nação que se encontra entre as três primeiras do mundo, como potencial de energia hidrelétrica e jazidas de ferro, limitar essas energias à vida rural, significa dar provas de incapacidade e de mentalidade colonial”, disse ele. E insistiu nesse ponto durante a campanha presidencial de 1950: “A minha atuação obstinada foi transformar em nação industrial uma nação paralisada pela monocultura extensiva e pela exploração primária das matérias primas”.

Transformar o velho Brasil agrário numa nação industrial moderna e autônoma, esse foi o sonho nacional reformista: dotar o país de infra-estrutura industrial, com a implantação de um parque siderúrgico, de uma fábrica de motores e de caminhões, garantir o controle pelo país de suas reservas minerais e recursos naturais. Era um nacionalismo moderado, que admitia a participação do capital estrangeiro, desde que controlado por leis nacionais; era um programa para a burguesia brasileira. Vargas entrevia a possibilidade desse desenvolvimento através da ampliação do mercado interno e do fortalecimento da produção destinada ao consumo nacional. Outra base do modelo era a regulamentação da remessa de lucros dos capitais estrangeiros (lei que Vargas havia instituído em 1945, e foi revogada pelas forças conservadoras que o depuseram); política externa independente e definida de acordo com os objetivos políticos, econômicos e culturais do país; reforma agrária.
Vargas não pôde terminar seu segundo mandato, e suicidou-se para não ser deposto. Com ele, o nacional reformismo também foi afastado do comando da economia do país, ao qual voltou em 1961, quando – depois das peripécias que resultaram da renúncia do presidente Jânio Quadros e da tentativa do golpe militar contra a posse do vice – João Goulart assumiu a presidência. Ele era uma espécie de herdeiro político de Vargas, com a desvantagem de ser ainda mais vacilante e conciliador do que o velho caudilho. A marca de seu governo foi a luta pelas reformas de base, a feição que o nacional reformismo assumiu então: democratização do Estado; reforma da Constituição de 1946; democratização do ensino e da cultura; reforma agrária; melhoria no abastecimento e combate à carestia; combate aos monopólios privados; estatização e apoio creditício à produção; desenvolvimento econômico independente; estatização do câmbio, comércio exterior, crédito e da exploração das riquezas minerais; planejamento governamental; defesa das empresas brasileiras; política externa independente. A mudança fundamental almejada era o fim do latifúndio e o controle do capital estrangeiro, por meio da lei de remessa de lucros.

O modelo associado dependente

Uma alternativa ao conflito entre o desenvolvimentismo e o liberalismo começou a surgir ainda no segundo governo Vargas, quando algumas autoridades, como o economista Roberto Campos, passaram a defender o capital estrangeiro para financiar a industrialização. A conciliação dos interesses do imperialismo e da oligarquia agro-exportadora com a idéia de desenvolvimento tomou impulso sob o governo Café Filho, que criou a certidão de batismo de um novo modelo, chamado associado dependente: a Instrução 113 da Sumoc (que era o Banco Central de então), de 17/1/1955.

Ela deu aos investidores estrangeiros, diz o historiador Caio Prado Jr, “o direito de trazerem seus equipamentos sem nenhuma despesa cambial, enquanto os industriais nacionais eram obrigados a adquirir previamente, com pagamento à vista, as licenças de importação exigidas para trazerem do exterior os equipamentos de que necessitassem.”

Seus autores foram Eugênio Gudin (diretor no Brasil da multinacional norte-americana Amforp, American Foreign Power) e seu escudeiro, Otávio Gouveia de Bulhões, dirigente da Sumoc. A semente que lançaram floresceu no governo de Juscelino Kubitschek (1956/1961), que aprofundou a substituição de importações e, com a Instrução 113, acelerou a vinda de multinacionais.

Para a classe dominante brasileira, foi um verdadeiro achado; esse projeto de modernização conservadora unificou suas várias facções, deu-lhes um projeto nacional, ligou-as aos interesses do imperialismo e, ao mesmo tempo, promoveu a modernização sem alterar as velhas estruturas sociais e a dependência externa. Com a grande vantagem de, com o crescimento na oferta de empregos, responder às pressões populares.

Era um caminho adequado também para o imperialismo, ao levar a uma industrialização que não concorria com seus interesses, como chamaram atenção Lincoln Gordon (o poderoso embaixador norte-americano na época da conspiração contra Goulart e do golpe de 1964) e Engelbert L. Grommers num estudo sobre os investimentos americanos no Brasil entre 1946 e 1960, publicado em 1962.

Segundo eles, a associação tinha vantagens econômicas e políticas. Econômicas: ela “reduz os gastos de capital requeridos por um projeto”, e o investidor estrangeiro se beneficia da experiência local de produção, do pessoal técnico e gerencial e das redes de distribuição já instaladas. Políticas: a associação “pode significar proteção contra pressões nacionalistas”.

O modelo associado dependente baseou-se na aliança entre o Estado, empresas privadas nacionais e empresas multinacionais, cujo motor era a atração de capitais, tecnologias e empresas estrangeiras. Foi temperado pelo reconhecimento da potencialidade reguladora do poder do Estado – tida como capaz de conservar as vantagens do sistema capitalista e eliminar seus problemas.

O resultado foi uma mudança de rumo na industrialização que, até então, ela era parcialmente autônoma, baseada em empresas brasileiras, estatais e privadas, e apontava para a formação de um incipiente setor de bens de produção. Sob Juscelino e seu Plano de Metas, ocorre “o ingresso maciço de capitais externos, que se dirigem precipuamente para o setor de bens de consumo duráveis”, que passa a liderar a nova expansão industrial, diz Duarte Pereira. A industrialização passa a ter “características inteiramente novas, que vão ficar ainda mais claras durante os governos militares, os quais não alteram esse padrão, mas o aprofundam”. A conseqüência é uma industrialização deformada, que precocemente torna-se monopolista, que “aumenta a dependência ‘estrutural’ e ‘tecnológica’ do país em relação a importações”, além de transferir para o exterior “os impulsos dinâmicos que poderiam originar-se da inter-relação entre os diferentes segmentos industriais.”

Sob os militares de 1964, esse modelo teve uma inflexão não democrática. A ditadura nasceu dividida, e o foco da divergência não era a presença do capital estrangeiro ou a manutenção do latifúndio e do predomínio dos interesses agro-exportadores, mas o papel do Estado no desenvolvimento. Essa divergência está na base da evolução contraditória da ditadura que, tendo nascido contra o estatismo nacional desenvolvimentista, fomentou a maior intervenção do Estado na economia.

Desde a República Velha os militares defendem a modernização com objetivos corporativos próprios – implantar uma base industrial que permita a auto-suficiência na produção de armas e suprimentos bélicos; o controle dos recursos naturais do país, particularmente os minerais; a adoção de uma matriz energética autônoma; a construção de uma infra-estrutura de comunicações integrando o território nacional. Com a ditadura de 1964, e sem o relativo impulso autonomista desse programa, os militares o colocaram colocá-lo em prática. No conflito entre o nacional desenvolvimentismo de Vargas e Goulart, e o liberalismo de Castelo Branco, prevaleceu entre os chefes militares um modelo que, subordinado à doutrina de segurança nacional, atendia àquelas exigências e propunha-se a vencer o subdesenvolvimento que tornava o país vulnerável ao que seus idealizadores chamavam de “estratégia indireta dos comunistas” e, ao mesmo tempo, permitia que o Brasil cumprisse sua vocação de grande potência, como queriam os generais. Nesse rumo, à margem de qualquer controle democrático, os militares agravaram as contradições do modelo dependente e associado, aprofundando a dependência externa do país e tornando mais agudas suas graves desigualdades sociais.

A propaganda conservadora garante que o nacional desenvolvimentismo “não deu certo” e, por isso, deve ser arquivado. É um engano apologético: tendo enfrentado a oposição de interesses poderosos, no país e no exterior, ele nunca chegou a ser adotado de forma completa. Foi derrotado militarmente em 1964 e, por isso, nunca pôde demonstrar seus méritos e defeitos. Desconhecendo essa verdade histórica, os neoliberais explicam a crise da década de 1980 com a tese falsa do fracasso daquele modelo.

O que sucumbiu na verdade foi o arranjo elaborado pela aliança entre conservadores, antiindustrialistas e representantes do imperialismo, o modelo dependente e associado, e sua versão militarista, que fracassou juntamente com a ditadura de 1964. Foi o esgotamento do modelo dependente associado, e não do nacional-desenvolvimentismo típico da era Vargas e Goulart. Baseado no financiamento externo, suas dificuldades cresceram quando o fluxo de investimentos estrangeiros se inverteu, diminuindo as aplicações em países como o Brasil. Crise que coincidiu com o amadurecimento das contradições sociais na sociedade brasileira, levando-a a uma encruzilhada histórica. A vitória da direita em 1989 – com Fernando Collor –, foi uma tentativa de saída conservadora para o impasse, com a volta da hegemonia liberal. Fernando Henrique Cardoso aprofundou esse rumo, agravando as contradições. O resultado foi a emergência de uma frente compondo forças nacionais, progressistas, democráticas e populares, que levaram à sua derrota na eleição de 2002 e à abertura da possibilidade da construção de um novo rumo para o país.

O modelo democrático nacional desenvolvimentista

A exigência de um novo rumo está na agenda brasileira. Ele é indicado pela emergência de um projeto que nunca pode ocupar o poder estatal nem comandar a política econômica de qualquer governo republicano, diz o analista José Luís Fiori. Seus primeiros sinais apareceram na luta ideológica e democrática anteriores a 1964. Aquelas “mobilizações e lutas sociais começaram a se identificar com um projeto de desenvolvimento econômico nacional e popular, que tangenciou, no campo das idéias, o desenvolvimentismo conservador”. Vertente “nacional, popular e democrática” que, diz ele, teve uma primeira versão no Plano Trienal de Celso Furtado e João Goulart, de 1963.

O desenvolvimento capitalista médio já alcançado pelo país, com sua “base produtiva instalada relativamente avançada, uma economia diversificada, produz quase tudo o que é necessário à vida”, admite a alternativa ao neoliberalismo, diz Renato Rabelo. E fundamenta a proposta de um novo rumo: “Essa base produtiva instalada, capaz de produzir de aviões e automóveis a locomotivas, infra-estrutura, petróleo, etc, permite um desenvolvimento autônomo, motivado pela expansão interna, cujo motor de crescimento possa ser o mercado interno”. Para isso, “e como condição para que o crescimento acelerado ocorra – é preciso reerguer e fortalecer a nação”. As contradições internas e internacionais que precisam ser enfrentadas são enormes. A primeira decorre da dependência, da “submissão ao projeto hegemônico de uma grande potência, os EUA”, diz ele. “Enfrentá-la e afirmar, perante ela, um projeto nacional autônomo, é uma das premissas” de um novo projeto. “Para enfrentar essa situação é preciso romper com a dinâmica em que o Estado se endivida com o grande capital e, depois, incapaz de saldar suas dívidas, entrega a ele o patrimônio público. O Estado precisa retomar sua capacidade de grande investidor, dirigente estratégico, alavancador do desenvolvimento e distribuidor de riqueza.”

Outra premissa é a questão democrática. “São elementos inseparáveis a implantação desse novo tipo de desenvolvimento que o programa oposicionista pleiteia a ampliação e fortalecimento da democracia. A formação da maioria de forças em busca da alternativa antineoliberal depende desse amplo apoio popular.”

Um novo modelo de desenvolvimento democrático e nacional precisa também romper com a teoria monetarista da moeda. “O que procuramos”, diz Renato Rabelo, “é uma estabilidade duradoura, e sua saída é apoiar a moeda no desenvolvimento próprio, interno, sustentável. Nenhum país pode viver principalmente com o capital que vem de fora. E uma moeda forte de verdade deve estar baseada na poupança nacional.”

Este caminho foi apontado em 1989 pela Frente Brasil Popular, e reiterado nas campanhas de 1994, 1998 e 2002. O eixo principal de seu programa foi a defesa do povo contra a exclusão social, contra o desemprego, o arrocho salarial, a miséria; a defesa da democracia, contra as ameaças de rompimento da ordem constitucional; e a defesa da soberania nacional, ameaçada pelas imposições imperialistas que se acentuaram nos últimos anos. Priorizar o mercado interno e o desenvolvimento sustentável baseado na distribuição de renda e no aumento da capacidade de consumo dos brasileiros.

Preocupação reafirmada em 1994, na frente União do Povo – Muda Brasil, que defendeu um governo das forças progressistas, nacionalistas e democráticas para realizar aquele programa e construir um Brasil novo e soberano, avançado e democrático. Outra definição desse programa está registrada no manifesto da Frente Democrática e Popular, de 1999, através do qual as forças progressistas e avançadas do país apresentaram uma plataforma de desenvolvimento independente e sustentado. O documento Em defesa do Brasil, da democracia e do trabalho propôs um novo governo e uma política levando em conta “as questões fundamentais necessárias a um novo rumo”, escreveu Renato Rabelo. “Traz no centro três grandes bandeiras: a reconquista da soberania do país, o desenvolvimento da democracia e a retomada e ampliação dos direitos sociais.”

E apontava com clareza os desafios atuais: “Nunca o presente e o futuro do Brasil estiveram tão ameaçados. Jamais sofreu a nossa soberania as humilhações que ora suportamos. Vivemos um momento crucial em nossa história. Ou os brasileiros dão um basta nesse processo de desconstrução da Nação, ou o próprio futuro de nosso país estará comprometido”.

A proposta democrática e nacional tem antepassados ilustres, como José Bonifácio e Rui Barbosa. Em quase dois séculos de vida independente, o país continua convivendo com problemas ainda não resolvidos. Um deles é a injusta distribuição da posse da terra no país, já denunciada pelo Patriarca da Independência. Outra questão é a necessidade de se completar o processo de autonomia do país rompendo de vez com a dominação externa.É imperioso também completar, radicalizar e consolidar a democracia e os direitos públicos e civis, incorporando todos os brasileiros á luta política, em igualdade de direitos, para que possam participar da construção de um país cuja modernidade seja expressa pelo bem estar do povo e pela saúde da economia, cuja moeda esteja ancorada no solo firme do trabalho das empresas e do povo brasileiros. E que, hoje, é um caminho cuja construção é necessária e possível.

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EDIÇÃO 68, FEV/MAR/ABR, 2003, PÁGINAS 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19