A propósito dos quatrocentos anos da publicação de Dom Quixote, li notícia, aparentemente nova, de que Cervantes chegou a pedir para ser fiscal de tributos no México, em Guadalajara. Não conseguiu. Porém, sua biografia conhecida já informava que cansado, primeiro, de ser soldado, depois, de fazer uma peça de teatro aqui outra ali, queria algo mais fixo. Por isso, consta que também havia pedido ao Conselho das Índias um posto seja na Guatemala ou na Colômbia. Com isso, vejam só, ele quase acabou sendo um autor latino-americano. No entanto, acabou sendo o precursor do realismo fantástico deste continente. O fato é que acabaram lhe dando emprego de coletor de impostos em Granada. E quem lucrou foi a literatura espanhola.

Não foi nada fácil a vida desse rapaz. Antes de aos 58 anos publicar Dom Quixote teve uma vida de aventuras. Depois, também não foi fácil. Aliás, já começou mal, pois aos 21 anos por se meter em duelos, como diz sua condenação, "o dito Miguel de Cervantes, pelos ditos nossos alcaides, foi condenado a com vergonha pública ter cortada a mão direita e em desterro de nossos Reinos por tempo de dez anos".

Diante dessa ameaça, fugiu. Mas esse trauma ficou impresso em seus medos. Aqui e ali surgem nos textos de Cervantes referências a isso. No prefácio do Quixote, por exemplo: "porque posto que averiguem a mentira, não vos hão de cortar mão com que a escrevestes". Parece que era uma sina o escritor ter problemas com sua mão, pois ela foi praticamente inutilizada na histórica batalha de Lepanto. Ali estava ele, com 24 anos, soldado, dentro do barco "A Marquesa", enfrentando os turcos. Num trecho do Quixote ele narra um episódio que deve ser a narração do que viveu quando duas galeras, proa contra proa, se chocaram, soldados surgiram de todos os lados, arcabuzes e canhões de artilharia soavam, espadas cortavam corpos no ar, muitos precipitavam-se ensangüentados na água. Só no seu navio de guerra, incluindo o capitão, morreram quarenta de seus companheiros.

Textos biográficos dizem que Cervantes estava enfermo, com febre e mandaram que se recolhesse nos fundos do navio. Mas o fato é que recebeu três tiros de arcabuz, dois no peito e um terceiro na mão esquerda, o que lhe valeu a alcunha de "o maneta de Lepanto". Quer dizer: primeiro o rei tentou lhe cortar a mão direita, depois, os turcos levaram-lhe a esquerda, mas mesmo assim acabou sendo o maior escritor de língua espanhola, um dos maiores do mundo. O que prova que o escritor escreve mesmo é com a terceira mão, invisível.

Pouco sabemos das coisas de hoje e sobre as de ontem, só imaginando. Pois não é que consta que havia "soldadas" batalhando lá em Lepanto, como uma tal Maria – a Dançarina que, atirando, matou tantos turcos que acabou recebendo homenagens de João da Áustria e que servia no mesmo lote de soldados, chamado "terço", que Cervantes?

Os escritores – que tanto reclamamos da vida hoje -, deveríamos pedir desculpas a Cervantes, porque ele, sim, tinha todas as desculpas para não escrever seu Quixote, ou a Galatéia e até mesmo as Novelas Exemplares. Em sua agitada vida militar, depois de ter sido camareiro do cardeal Acquaviva, na Itália, andou com as tropas espanholas por Nápoles, Messina, Loretta Ancona, Veneza, Parma, Asti etc. E em meio à vida e à ação militar vai lendo Virgílio, Horácio, Apuleio e os italianos, como Tasso, Baltazar Castiglione, Guarini, Boardo e Ariosto. Embora haja quem diga que quando jovem cursou a Universidade de Salamanca, foi no cenário da própria vida, que fez sua universidade livre.

Mas sua tumultuada existência teria ainda um capítulo dos mais duros e insólitos. Embarcado com seu irmão, também soldado, ao passar pelas costas da França, direção de Espanha, é feito prisioneiro dos turcos e levado para a Argélia. Aí é convertido em escravo e tem de trabalhar, mesmo maneta, construindo as fortificações do porto e como jardineiro de seu dono Hassan – o Dourador.

Fazer prisioneiro de guerra era o seqüestro daquela época. E negócio lucrativo era o pagamento do resgate. A família se metia em negociações, como hoje. E como eram dois irmãos seqüestrados (ou escravos), a família conseguiu primeiro a libertação de seu irmão Rodrigo. Cervantes ficou por ali mourejando (este é o termo certo) por cinco anos. Consta que tentou fugir várias vezes, mas era logo recapturado. Enfim, um dia sua família e o vice-rei conseguiram os quinhentos escudos. Como a indústria de cativos parecia ser algo comum, a negociação da liberação foi feita com registro em cartório, com documentos firmados pelo notário Pedro de Ribera. Mas em 1587 seria excomungado, em 1597 de novo preso, quando o banco em que tinha economias quebrou, e, em 1605, ano da edição do Quixote, teve problemas com a polícia, pois um homem amanheceu morto na porta da casa onde vivia com a mulher e suas irmãs, chamadas de "as Cervantas" e consideradas de má-fama.

A língua ferina do dramaturgo Fernando Arrabal em Um escravo chamado Cervantes (Record) faz umas considerações sobre aquelas quinhentas moedas de ouro para o resgate do soldado-escritor e o valor desse prestigioso Prêmio Cervantes, posteriormente instituído pelo governo espanhol: "Quinhentos escudos de ouro valiam duzentos maravedis ou cinco mil, oitocentos e oitenta e dois reais. Ou seja, tim-tim por tim-tim, cinco milhões de pesetas atuais: a exata dinheirama que, por mera coincidência, ganha o premiado hoje".

Como se sabe, depois que Cervantes escreveu a primeira parte de seu Quixote, em 1605, um tal de Avellaneda publicou uma falsa segunda parte do livro, o que forçou Cervantes, em 1615, a publicar uma segunda parte autêntica. Pois, Arrabal, revem e arremata, talvez fazendo uma alusão aos tempos de pós-modernidade onde a cópia é mais valorizada que o original: "Se no século XVII, existido houvesse o Prêmio Cervantes de Literatura, não teria estranhado que o ganhasse Alfonso Fernández de Avellaneda, autor do falso Quixote. Cervantes não o teria merecido".

Quem escreveu Dom Quixote? Para efeitos legais, foi Cervantes. No entanto, dentro do livro, está dito que o autor é um árabe de nome Cide Hamet Benegueli. Há, portanto, para começar, uma dupla autoria. A capa aponta Cervantes, um espanhol. A narrativa indica o tal Cide, que teria achado em Alcalá de Toledo, numa rua de comerciantes de seda, uns papéis narrando, em árabe, as façanhas do tresloucado cavaleiro espanhol. Dupla autoria, dupla nacionalidade ou dupla face da Espanha. Os achados manuscritos estavam misturados com outros numa caixa de chumbo enterrada numa ermida.

Mas esse Cide Hamet não é o único "autor" do Quixote. O livro sugere ser apenas um, entre muitos que narraram as peripécias do Cavaleiro da Mancha. E aí cria-se já uma situação insólita, pois o livro, paradoxalmente, nos leva a desqualificar o narrador árabe, porque "é típico das pessoas daquela nação serem mentirosas". Como acreditar na narrativa de um mentiroso?

Percebe-se que o modo de narrar no Quixote desestabiliza, explode a noção cêntrica de autoria. Antes que, em 1614, um tal Avellaneda, aproveitando-se do sucesso do livro, lançasse uma falsa continuação do Quixote, a estrutura do livro original de Cervantes é já um esperto jogo de espelhos brincando com a idéia de autoria falsa e verdadeira. Não é à toa que na introdução da novela Cervantes declara ser apenas o "padrasto" da obra, criando um simulacro de que outros são os autores do Quixote.

Enquanto livros da época apresentavam nas primeiras páginas poemas laudatórios escritos por escritores reais, na abertura de sua história, Cervantes estampa poemas sobre o Quixote, que teriam sido escritos por personagens de obras clássicas publicadas antes que o Quixote tivesse sido escrito.
Assim Amadis de Gaula e Orlando Furioso são tidos falsamente como contemporâneos de Cervantes e surgem como tendo lido a obra deste antes que ela tivesse sido publicada. E não apenas essas figuras lendárias, mas dentro da própria novela o Quixote encontra dois duques que haviam lido o primeiro volume e conversam sobre a própria obra com os personagens. Assim, em Cervantes, personagem é ao mesmo tempo personagem, leitor e comentador da obra em que está inserido.

Desse modo, entramos num jogo de espelhos onde a realidade e a ficção se confundem. Jogo de espelhos, aliás, é uma boa metáfora, posto que foi no período barroco, quando essa obra surgiu, que os espelhos conheceram extraordinária evolução e passaram a ser disseminados nos palácios e residências. Por outro lado, a arte barroca é a arte do "trompe l'oeil", do ilusionismo, do mostra-e-esconde, dos travestismos dos personagens e da ambigüidade. Ambigüidade que começa na dualidade de caracteres que são Quixote e Sancho Pança, e vai se aprofundando, quando nos apercebemos que o próprio Quixote tem vários nomes: Quixote, Quejada, Quesada, Quijana. Há um deslizamento de significados, uma realidade oscilante nos nomes, nas ações e na autoria do livro.

Como já se disse, a obra barroca desestabiliza o espectador e o transforma em ator.
E quando, um ano antes de publicar o segundo volume dando continuidade às aventuras de seu personagem, Cervantes foi surpreendido com o surgimento de um Quixote apócrifo, escrito por Avellaneda, intensificou ainda mais esse jogo de falsidades e verdades. Ao invés de simplesmente ficar irado, fagocitou a obra do outro. Colocou dentro de seu livro um personagem do livro falso, conversando com seus verdadeiros heróis. É disso que trata um dos capítulos finais, quando Álvaro Tarfe (do Quixote de Avellaneda) defronta-se com os heróis de Cervantes. O Quixote verdadeiro pergunta ao personagem do falso Quixote se ele conheceu mesmo o Quixote. O outro responde que o conheceu e era seu íntimo. O Quixote verdadeiro pergunta-lhe, então, se Álvaro o acha parecido com ele. Nesse irônico confronto entre o falso e o verdadeiro, Álvaro diz que "de maneira nenhuma". E repete o mesmo sobre Sancho, o que deixa este irritadíssimo. O Quixote de Cervantes, então, pondo-se em brios, declara-se como o verdadeiro Quixote e leva Álvaro a um escrivão para que ficasse registrado como falso o Quixote da "Segunda parte de Dom Quixote de la Mancha, composto por um tal Avellaneda, natural de Tordesilhas".

A partir dos anos 70 vulgarizou-se a citação de um conto de Borges (autor que parece personagem de Cervantes), no qual Borges fala de um tal Pierre Menard que queria reescrever o Quixote, mas não consegue a não ser copiando-o identicamente. À revelia de Borges, a pós-modernidade tentou se apoderar desse conto para, distorcendo-o, fazer o elogio do falso. Assim, autores incapazes de criações maiores transformam em pastiche aquilo que Cervantes ironizava.

Entre os inúmeros e inesgotáveis temas nessa obra, um dos mais intrigantes é o fato de Quixote, no final, enfermo, recuperar a razão, reconhecer que vivia na fantasia e condenar acerbamente os livros de cavalaria. Sobre isso, pode-se pensar que ele estaria fazendo concessões aos censores religiosos e políticos da época. Quem examina a abertura do livro vê quantas autorizações eram necessárias para se publicar uma obra. Mas pode-se entender também como a última peça que o autor está pregando no seu leitor, para que este mesmo escolha com quem ficar, ou com o alucinado Quixote ou com razoável Alonso Quijano.

Mas seria talvez pertinente introduzir uma outra via de interpretação. Quando Dom Quixote renega suas fantasias, é de se notar que ele está enfermo e com febre. Estranha febre é essa que faz delirar a razão. Que febre de lucidez é essa, que empobrece a vida e a visão do nosso herói?

Então é legitimo supor que ao afastar-se do sonho e aproximar-se da razão o personagem começa a morrer. Por isso, quando ele abomina suas fantasias, os amigos ao pé do leito estranham. E o narrador enfatiza: "Quando o ouviram falar, os três acreditaram que alguma nova loucura havia se apoderado dele". Portanto, é preciso cuidado também com os surtos racionalistas.
Em Quixote, a razão é a véspera da morte.

Affonso Romano de Sant Anna é poeta, ensaísta, cronista e professor. Publicado originalmente no O Globo em duas partes nos dias 19 e 26/02/2005. Artigo gentilmente cedido pelo autor à Princípios.

EDIÇÃO 78, ABR/MAI, 2005, PÁGINAS 44, 45, 46, 47