Cremos que nosso leitor não discordaria, em tese, de H.G. Wells, quando este afirma: “Entramos numa corrida entre a educação e a catástrofe” (Apud RONÁI, 1995); corrida cada vez mais real e imperativa, em larga escala, a partir da imposição de um projeto neoliberal ao mundo globalizado e, em particular, no que se refere ao Brasil. Qualquer que seja o caso, a reflexão crítica é a melhor forma de dar início a essa corrida. A questão é: O que mudar no ensino de modo a minimizar as chances de vitória da catástrofe? Um ponto de partida pode ser a aceitação da observação de Paulo Freire, segundo a qual, lamentavelmente, “atualmente, não se entende mais a educação como formação, mas apenas como treinamento”. (FREIRE, 2001, p. 36). O medo da catástrofe motivou-nos a refletir e a escrever algumas linhas a propósito do ato de ensinar.

Preferimos, aqui, contribuir para o debate sobre o tão desgastado ato de ensinar, enfocando uma questão específica que pode ser resumida na seguinte pergunta: Que predicado de modo a? no sentido de educar ?melhor completa a frase “ensinar é…” permitir aos seres humanos, nascidos e inseridos no tempo, se encontrarem, se realizarem em toda a sua pluralidade? Esta chave deve ser o predicado essencial para a criatividade, para a liberdade.

Na busca a essa resposta, nosso ponto de partida pode ser sintetizado em duas máximas: “O objetivo da educação é o conhecimento não de fatos, mas de valores”, de William Ralph Inge, e “Educação é o que sobrevive quando o que foi aprendido foi esquecido”, do polêmico B.F. Skinner. Estamos procurando, dessa forma, dentre esses valores, aquele que melhor garanta a sobrevivência de alguma coisa após o esquecimento do que foi aprendido e, portanto, aquele que melhor completa a expressão “ensinar é…”. Alguma coisa permanente e transformadora.

Partamos da assertiva, segundo a qual “ensinar é substantivamente formar”. Nela, Paulo Freire embute, de certa forma, sua compreensão de que “saber ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. Dentre as múltiplas possibilidades, destacamos a capacidade de “fazer sonhar”, de libertar o espírito. A mera transferência de conhecimento, ou de informações, jamais levará um sujeito a “sonhar com dias melhores”, a ter perspectivas, a ousar e a criar o novo; poderia, no máximo, fazê-lo tomar conhecimento do novo. Se devêssemos, então, propor um único predicado para o ato de ensinar, diríamos que “ensinar é fazer sonhar”, é levar a sonhar, é levar a descobrir, a criar seu próprio mundo. E é isso que procuraremos justificar neste ensaio.

O espelho profundo e as novas visões

Quando falamos em sonho, não nos referimos a qualquer devaneio, mas àqueles que levam o indivíduo ao encontro de seus anseios, de suas perspectivas, de suas realizações, sem limites; um sonho motivador. Não apenas o sonho no sentido subjetivo do sonhador, nas quatro paredes do seu quarto. Estamos considerando o sonho que envolve o outro, no sentido poético, no sentido ético. Sonho, função do irreal, traduzido ao real na prática como relação entre ciência e poesia, ? do ponto de vista filosófico ?numa pedagogia bachelardiana (1).

Bachelard ganha papel primordial quanto à questão da importância da poesia e das artes na pedagogia, não como meios ou instrumentos didáticos, mas dando-lhes autonomia e estudando-as como processo criativo, como poéticas. Com esta proposta, ele valoriza o homem em uma sociedade produzindo ciência, tecnologia e poesia, conferindo-lhes igual valor na criação de um pensamento, ao mesmo tempo racional e imaginativo, capaz de produzir mudanças no conhecimento e no próprio homem. Razão e imaginação, imbricadas, respectivamente, na ciência e na poética, completam-se.

Enfatizamos que, para Bachelard, a arte, como vertente poética, funda-se nos processos imaginativos e no trabalho da matéria, retomando sempre o imaginativo através do espectador ativo. Já a ciência, cria fenômenos a serem estudados bem além do plano empírico, construindo universos formais. Nada nos é dado no plano da ciência e da arte: tudo pode ser fabricado. Tudo pode ser criado. Porém, para Bachelard, “não criamos com idéias ensinadas”, ou seja, não criamos com idéias reproduzidas ou a partir da tradição. Criamos, assim como o artesão trabalha o barro: transformando a matéria e, ao mesmo tempo, transformando-se (CARUSO, CARVALHO & FREITAS, 2002). O que não exclui, naturalmente, que se possa criar utilizando métodos e processos já conhecidos.

Ao educar-se com esse espírito, o sujeito passa a ver a vida com outros olhos, adquire uma nova visão do mundo e de si mesmo, e vislumbra a possibilidade de “fazer a sua história”, conforme seus sonhos. Essa capacidade da Educação de levar o indivíduo a sonhar tem sido desvalorizada cada vez mais, com graves reflexos na Escola, na vida familiar e nas demais relações sociais.

No entanto, “o sonhador não consegue sonhar diante de um espelho que não seja ‘profundo’” (BACHELARD, 1990, p. 157). É fundamental que seja o educador a dar profundidade a esse espelho, através de sua própria imagem, reflexo de um conjunto de valores e saberes adquiridos. Ele é que deverá motivar seus alunos a sonharem, sob pena de da própria?levá-los à frieza da incredulidade (2). Sua postura diante da vida é um exemplo determinante. Pode-se dizer, como Henry?vida e da vida dos outros Brooks Adam, que o professor afeta a eternidade, pois não é possível precisar onde sua influência acaba [Apud KNOWLES, 1998]. Paulo Freire também alerta:

“O professor autoritário, o professor licencioso, o professor competente, sério, o professor incompetente, irresponsável, o professor amoroso da vida e das gentes, o professor mal-amado, sempre com raiva do mundo e das pessoas, frio, burocrático, racionalista, nenhum desses passa pelos alunos sem deixar sua marca” (FREIRE, 2002, p. 73).

Se positiva, essa marca depende fundamentalmente das relações estabelecidas entre professores e alunos, que deve ser uma relação de respeito à cidadania, como toda e qualquer relação entre seres humanos:

“Na sala de aula, os alunos não deixam de ser pessoas para transformar-se em coisas, em objetos, que o professor pode manipular, jogar de um lado para o outro. O aluno não é um depósito de conhecimentos memorizados que não entende, como um fichário ou uma gaveta. O aluno é capaz de pensar, de refletir, discutir, ter opiniões, participar, decidir o que quer e o que não quer. O aluno é gente, é ser humano, assim como o professor”. (PILETTI, 1987).

Mas é crucial existir nas escolas uma ampla consciência de quão imperativo é sonhar e criar, de quanto é indispensável pôr defronte dos alunos um espelho profundo. É essa dose de utopia coletiva, intrínseca à consciência crítica dos educadores, que faz do ato de sonhar coletivamente um movimento transformador, como afirma Ana Lúcia Souza de Freitas [FREIRE, 2001, p. 29]. Esta consciência transformadora, traduzida em uma postura institucionalizada, deveria ser priorizada nos projetos pedagógicos de todas as instituições de ensino, a começar, obviamente, do ensino fundamental, valorizando, por exemplo, a leitura dos contos de fada, das fábulas, dos clássicos, assim como incentivando as atividades artísticas em geral, que fazem sonhar. É ilusão achar que a televisão faz sonhar; ao contrário, ela é essencialmente alienadora. Todavia, é triste ver a juventude buscar, muitas vezes, o sonho nas drogas. A escola não pode absolutamente abdicar do sonho.

Entretanto, o que se vê na escola hoje é um quadro lamentável. Nossas escolas estão povoadas por profissionais cansados, desanimados, que já desistiram de inovar, temerosos das críticas, dos possíveis fracassos e massacrados pela baixa remuneração. Mais ainda: arriscaríamos afirmar estar sendo praticado, principalmente nas escolas de periferia (mas não somente), o que podemos chamar de uma “pedagogia do medo”, limita, cerceia a liberdade de trabalho do? ou o medo dela ?onde a violência professor e embaça qualquer espelho.

Freire tem razão ao dizer que “a prática educacional não é o único caminho à transformação social necessária à conquista dos direitos humanos”; contudo, acredita que, “sem ela, jamais haverá transformação social” (FREIRE, 2001). Obviamente, a superação desse estado generalizado de violência faz parte desta conquista.

Por pior que seja esse quadro educacional, Paulo Freire afirma: “As coisas podem até piorar”, mas nos exorta a “intervir para melhorá-las” (FREIRE, 2002, p. 58). Não podemos aceitar o discurso acomodado de que “não há o que fazer”, conclui o educador. Devemos, sim, ter a ousadia que motiva o ser humano a fazer o novo, a fazer o que ainda não foi experimentado por ninguém, mesmo que a dose do novo pareça excessiva. “Toda criação deve superar uma ansiedade. Criar é desatar uma angústia”, afirma principalmente o medo do?Bachelard (BACHELARD, 1990, p. 114). Vencer o medo é o que se espera de um educador capaz de transmitir criticamente o?novo conhecimento e, sobretudo, capaz de criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção, pois, como nos ensina ainda o filósofo francês, “por mais efêmero que seja o medo, está quase sempre na origem de um conhecimento” (BACHELARD, 1990, p. 150). Vencer o medo primordial está na essência do ato criativo.

Chegamos, assim, à questão do ato criativo. É preciso difundir a idéia de que, na sociedade pós-moderna, a capacidade de inserção e mesmo a de sobrevivência de qualquer um reside fundamentalmente na criatividade: uma criatividade transformadora (DE MASI, 2000). Essa compreensão é indispensável para se começar a construir a Escola do futuro (3).

Como exemplo que dá concretude a algumas das idéias expostas até aqui, podemos citar uma experiência que há algum tempo vimos defendendo e pondo em prática com um grupo de pesquisadores, professores, licenciandos e alunos do ensino médio, uma pedagogia bachelardiana, mediante nosso trabalho na Oficina de Educação através de Histórias em Quadrinhos (EDUHQ), descrito em outro texto [CARUSO, CARVALHO & FREITAS, 2002], visando à transformação das práticas didáticas tradicionais (4).

Essa nova busca de valorização da criatividade e do ato de sonhar pode ser sintetizada nos seguintes objetivos gerais da Oficina:
. Priorizar uma pedagogia que contemple articulações entre ensino-aprendizagem e conhecimento-sociedade, integrando metodologicamente os conteúdos das disciplinas curriculares, através da produção artística.
. Contribuir para que o aluno possa ser um ator importante na difusão do conhecimento a partir de um processo que se inicia nos processos didáticos e culmina com seu ato criativo; processo esse que deverá lhe dar uma nova dimensão dialógica do processo ensino-aprendizado.
. Contribuir para o aprimoramento dos professores que participarão do projeto, no tocante às técnicas e metodologias de ensino, bem como daqueles que, fora da oficina, posteriormente, terão contato com o material ali produzido, como agentes desencadeadores de outros processos criativos em situações diversas.
. Enfatizar e incentivar a produção artística não apenas como instrumento didático, mas como produção estética autônoma inserida na cultura e na sociedade.
. Criar e desenvolver técnicas e metodologias facilitadoras da transferência de conhecimentos na própria oficina, em sala de aula, através do ensino à distância e na vida prática, imprimindo à produção do conhecimento um aspecto lúdico e estético.

Podemos sintetizar o impacto que essa iniciativa tem demonstrado sobre os alunos do projeto nas palavras espontâneas de um deles, Gleidson de Castro Araújo, a propósito do trabalho na Oficina EDUHQ (5):

“É gostoso escrever e imaginar. Os desenhos nos fazem sonhar. As palavras nos fazem pensar. As histórias nos fazem viajar por um mundo desconhecido”.

Maiores detalhes sobre a influência desse projeto nos alunos participantes podem ser encontrados em um estudo sistemático [FREITAS, 2003].

Transformar o conhecimento, o homem e o próprio mundo através dos atos de conhecer e de imaginar são ideais que fundamentam essa pedagogia que estamos defendendo e praticando na Oficina EDUHQ. “A vontade de quem não sabe sonhar é cega e limitada. Sem os devaneios da vontade, a vontade não é verdadeiramente uma força humana, é uma brutalidade”. (BACHELARD, 2001, p. 75).

Mais do que ingredientes importantes, a imaginação, o devaneio, o sonho são, na verdade, em nossa opinião, indispensáveis ao conhecimento, à sua assimilação e à sua transformação. Fica mais fácil explicar o porquê desta convicção lançando mão, mais uma vez, de um trecho primoroso de Bachelard, no qual ele afirma:

“(…) a imaginação inventa mais que coisas e dramas; inventa vida nova, inventa mente nova; abre olhos que têm novos tipos de visão. Verá se tiver ‘visões’. Terá visões se se educar com devaneios antes de educar-se com experiências, se as experiências vierem depois como prova de seus devaneios” (BACHELARD, 1998, 18).

Do ato de comer ao ato de criar

Cremos ter justificado a importância crucial do “fazer sonhar” no processo de aprendizagem. Gostaríamos, para encerrar este breve ensaio, de fazer um comentário acerca do crescente predomínio do ensino “bancário” sobre o “holístico”, buscando, para isso, um exemplo que, à primeira vista, pode ser considerado curioso.

As sociedades, ditas primitivas, possuíam (ou possuem) uma característica única que, via de regra, tem sido usada para rotulá-las de “mais atrasadas”: são sociedades pré-escolares. Nelas,

“a prática educativa consistia na aquisição de instrumentos de trabalho e na interiorização de valores e comportamentos, enquanto o meio ambiente em seu conjunto era um contexto permanente de formação” (HARPER et al, 2000).

Paradoxalmente, esse comentário, referente à prática educativa de uma sociedade primitiva, ecoa como um anseio contemporâneo das sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas. Em nossa LDB, por exemplo, afirma-se: “Ensino será ministrado com base [no princípio da] vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais” (LDB, Art. 3o, inciso XI), o que, infelizmente, não acontece na prática social. Excetuando-se a famosa diferença entre o princípio e a prática, nem sempre desprezível, é notável a semelhança do conteúdo das duas citações.

Contudo, a questão de “um contexto permanente de formação”, ou, em outras palavras, a questão da contextualização do ensino, se impõe cada vez mais e é um dos pontos centrais no debate sobre educação escolar hoje em dia, com reflexo evidente, por exemplo, nos vestibulares, que já mudaram seus programas e seus objetivos, enquanto as escolas não. Espera-se que essa contextualização abra caminho para o desenvolvimento da motivação e criatividade dos alunos.

Mas quando nasce o problema da necessidade de contextualizar o aprendizado? É esse um problema característico apenas da sociedade pós-moderna?
Esse problema não é novo e nasce exatamente com a institucionalização da Escola na Idade Média, quando a educação tornou-se um produto da Escola (HARPER et al, 2000) e atingia uma pequena parte da população. A atividade de ensinar passou a ser desenvolvida por profissionais em um espaço físico específico, isolado do resto do mundo e desvinculado das exigências da vida cotidiana: o espaço da escola, no qual se valoriza, de forma crescente ao longo dos séculos, o ensino formal e formalizante, deixando de lado, por exemplo, a experiência extra-escolar do aluno. A esse respeito, Moacir Carneiro (2002, p. 39), refere-se ao Art. 3o, inciso X, da LDB, que trata da valorização da experiência extra-escolar como princípio básico do ensino, afirma ser esta

“uma das desafiadoras questões do ensino brasileiro. A nossa tradição escolar, radicalmente formal e formalizante, tem impedido o desenvolvimento de uma cultura pedagógica que valorize o patrimônio de conhecimentos que o aluno construiu e constrói fora do espaço de sala de aula. No fundo, esta dificuldade traduz a relevância absoluta que se dá à qualidade formal do conhecimento (…). O extra-escolar representa um canal importante para abrir espaços de articulação escola/comunidade, pela possibilidade de construir um conteúdo de ensino capaz de ‘satisfazer as necessidades de aprendizagem’”. Acrescenta, ainda, o comentarista da lei:

“o extra-escolar não é a sub-educação. Pelo contrário, o extra-escolar é o trabalho, a convivência, o lazer, a família, o amor, a festa, a igreja, (…), a vida, enfim” (CARNEIRO, 2002, p. 39).

Ou seja, a “aquisição de instrumentos de trabalho e a interiorização de valores e comportamentos”, mencionados no comentário sobre as sociedades pré-escolares, são questões que decididamente encontram-se hoje fora da escola, dissociadas do aprendizado escolar. Desta forma, ou se reconhece e se incorpora o extra-escolar no processo de aprendizado, ou mudam-se radicalmente os currículos e a própria concepção de Escola. Qualquer que seja a tendência, em nossa opinião, ela vai exigir mudanças profundas na Escola e na formação dos professores, pois estes atualmente “recebem uma formação que lhes dificulta o desenvolvimento da capacidade para construir interseções de saberes no bojo das disciplinas que ministram” (CARNEIRO, 2002, p. 39). Isso, por sua vez, dificulta enormemente o desenvolvimento da interdisciplinaridade e a construção de qualquer contexto permanente de formação que valorize o indivíduo e seja capaz de motivá-lo para os estudos e para a vida. Dificulta o “ensino holístico”.

Referindo-se ao tempo em que não havia professores, o livro Cuidado Escola! destaca o fato de que, naquela época, “aprendia-se fazendo, o que tornava inseparáveis o saber, a vida e o trabalho” e ilustra esta frase com a foto de um grupo heterogêneo de uma tribo primitiva, na qual os mais velhos ensinam aos mais jovens a caçar. A foto, de grande força, pode ser tomada como ponto de partida de uma reflexão sobre o ensinamento e a motivação envolvidos no simples ato de “ensinar a caçar”. Em primeiro lugar, trata-se de aprender uma atividade essencial para saciar a fome e garantir a sobrevivência da tribo; portanto, de uma necessidade altamente motivadora e muito básica. Todavia, a interdisciplinaridade envolvida é enorme. Usando a divisão tradicional de conteúdo dos currículos atuais, poderíamos dizer que o jovem aprende “Biologia”, por exemplo, quando aprende a conhecer os habitats, as características e os hábitos alimentares dos animais (“Zoologia”) ou quando aprende a escolher a madeira apropriada (“Botânica”) para manufaturar o arco e a flecha. “Ecologia”, quando aprende a respeitar a Natureza que é a fonte de sua subsistência. “Física”, quando lhe é ensinado que deve mirar um pouco acima da caça para não errar (“Gravitação”), ou qual deve ser a tensão ideal a ser dada à corda do arco (“Acústica”), ou, ainda, a escolher a pena ideal para dar maior estabilidade ao vôo da flecha; problema “interdisciplinar” que envolve “Hidrodinâmica” e “Etologia”. “Química”, para conseguir venenos que facilitem abater animais grandes, sem prejudicar a saúde de quem vai ingerir a caça. “Matemática”, aprendendo a contar e a ter noções de direção e sentido, essenciais para não se posicionar a favor do vento e assim ser percebido pela presa que escapa vitoriosa. “Geografia”, ao aprender a topografia do terreno e a conhecer os espaços da savana ou da selva. “História”, quando ouve os relatos dos sucessos e fracassos de seus antepassados. “Sociologia”, aprendendo a importância de caçar em grupo e de socializar o produto da caça, e assim por diante.

A Escola hoje (e desde sempre), como já mencionamos, tende a valorizar enormemente o ensino formal e formalizante. Escola e Sociedade valorizam muito mais a razão do que a prática. Essa escolha remete automaticamente à segmentação do saber e à exigência de um alto grau de abstração. Esses ambos fatores dificultam bastante a interdisciplinaridade, a contextualização do ensino e a própria motivação do aprendiz, tornando o exemplo do “aprender a caçar” cada vez mais fugidio.

Nesse ponto, cabe então a pergunta: na realidade da Escola de hoje, o que poderia desempenhar o papel motivador da caçada no imaginário coletivo? Com o problema da fome pelo menos apesar das graves injustiças e desigualdades que?teoricamente resolvido , que motivação poderia?assolam grandes áreas do planeta, inclusive do Brasil “substituir” a necessidade de se alimentar? A resposta, em nossa opinião, é o gesto criativo, é o ato de criar que pode (e deve) substituir o ato de comer. E este ato, como argumentamos, é absolutamente dependente da capacidade de sonhar. Precisamos, portanto, construir uma escola na qual ensinar seja fazer criar, fazer sonhar. Continuando com a metáfora da aula-caçada, cabe ainda enfatizar que não apenas àqueles que “comem”, mas também (e principalmente) aos que “têm fome” deve ser oferecida a possibilidade essencial de criar e de aprender o valor desse ato criativo.

As sociedades evoluíram, tornaram-se muito mais complexas, mas a questão da sobrevivência é eterna. E a sobrevivência na sociedade pós-moderna, como ressaltou o sociólogo italiano Domenico de Masi, reside fundamentalmente na criatividade (DE MASI, 2000), e no sonho, acrescentaríamos. Essa compreensão é indispensável para se começar a construir a escola do futuro; uma escola que educa, uma escola que faz sonhar. E isso não se faz sem se pensar também em reestruturar as licenciaturas (CARUSO, 1995).

Gostaríamos de concluir enfatizando que, durante o processo de criação, os alunos, assim como os velhos alquimistas, mais do que conseguindo transformar a matéria, estão, na verdade, sonhando e conseguindo mudar o seu próprio eu (JUNG, 1998).
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Francisco Caruso é do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e do Instituto de Física da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Maria Cristina Silveira de Freitas é do Centro de Estudos Supletivos da Marinha, com Especialização em Educação na UERJ em andamento. Os autores agradecem pelos comentários críticos de Mirian de Carvalho, Stella Maris, Alberto Santoro e Isac João de Vasconcellos.

Notas
(1) Gaston Bachelard ampliou os campos da Epistemologia e da Estética, instaurando novas idéias que revolucionaram a crítica literária e a crítica de arte, bem como a pedagogia das ciências, com alcance mais amplo.
(2) É inegável que a motivação é essencial para toda e qualquer atividade humana. Em particular, do ponto de vista do educador, não é possível afirmar que um determinado sujeito esteja motivado para aprender algo, sem que o primeiro tenha sido capaz de identificar, no segundo, um certo grau de consciência do valor do aprendizado e do crescimento intelectual, que se concretizam numa “vontade de aprender”. Aproveitando as palavras de um poeta brasileiro, talvez se possa afirmar que a essência da motivação, compreendida como uma necessidade básica do homo sapiens reside na sua capacidade de “cantar e? desse ser racional que busca se educar ? cantar a beleza de ser um eterno aprendiz” (GONZAGUINHA, 1999).
(3) Voltaremos a essa questão na próxima seção.
(4) Mais detalhes sobre o projeto podem também ser encontrados em http://www.cbpf.br/eduhq.
(5) Aluno do ensino médio do CIEP 169 de São João do Meriti, que participou da Oficina durante dois anos desde a sua fundação em dezembro de 2001.

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EDIÇÃO 83, FEV/MAR, 2006, PÁGINAS 67, 68, 69, 70, 71, 72