Um dos principais fundamentos do Sistema Monetário Internacional (SMI), o dinheiro, para Marx, expressa uma dada (e histórica) relação social de produção e acumulação, materializada no excedente. Representa ainda – e até hoje – uma mensuração especial da totalidade dos produtos do trabalho, por isso denominado de “equivalente geral” (Marx).

Na sua relação com o SMI, o dinheiro apresenta formas distintas (polimorfia) e uma hierarquização. Vale dizer, convivem sistemicamente várias moedas (ou instrumentos substitutivos), via de regra intercambiáveis, entretanto assumindo posições distintas na esfera do poder econômico e nas relações internacionais.

Assim, os traços constitutivos de um sistema monetário internacional, em determinada fase histórica são: a) a forma da moeda internacional; b) o regime cambial; c) o grau de mobilidade do fluxo de capitais; e, d) a hierarquização concreta deste sistema – questão normalmente secundarizada mesmo na literatura mais especializada. Por isso, também, à globalização dos mercados financeiros deve corresponder uma organização da moeda que impõe suas regras enquanto se universaliza (Aglietta, 1988).

De modo geral, a moeda conversível deve sempre assumir as funções da moeda nacional (liquidar transações e contratos, unidade de conta e reserva de valor), e no terreno internacional, ipsis litteris. (Morais, 2006) (1). Essa hierarquia é geralmente acordada entre os países centrais, expressando as relações de poder existentes, em torno de uma moeda-chave – a moeda do país hegemônico. Entretanto, como afirmou Suzanne de Brunhof (2005), tais acordos impõem uma configuração sistêmica contraditória, na medida em que moeda-chave é simultaneamente um ativo financeiro, concorrendo com as outras divisas internacionais.

O poder do dólar, como se sabe, consolida-se no SMI do pós-guerra, refletindo a correção de forças (econômica, política e militar) e acordado na Conferência de Bretton Woods (1944). A seqüenciada (e unilateral) erosão das bases dos acordos (1971, 1973, 1979), a meu juízo, integrou uma espécie de programa operado pela hegemonia crescente do grande capital financeiro norte-americano (Barroso, 2005); a moeda-chave sustentou-se então no poderio financeiro dos EUA, em suas instituições e engrenagens financeiras, e decisivamente em seu mercado financeiro (monetário e de capitais) vasto, profundo e líquido.

Analisando esse processo com nitidez, Peter Gowan (2004) enfatiza: (i) entre 1975 e 1979 o dólar perdeu mais de um quarto do seu valor frente ao ien japonês e o marco alemão, tendo o governo (Carter) dos EUA procurado elevar a produção e as exportações; (ii) o governo Reagan e Paul Volker – para impedir o declínio do dólar, o recrudescimento da inflação, que era acompanhada de supercapacidade industrial – pôs o capital-dinheiro no centro da cena pela primeira vez em décadas; (iii) expandiu o Regime Dólar Wall Street (DWSR) segundo os interesses da liderança norte-americana. Concretamente, ainda naqueles dias, tudo isto representava derrubar a inflação (corrosiva da remuneração do mesmo capital-dinheiro), tomar medidas para desregulamentar o setor bancário e financeiro, promover consideráveis reduções tributárias para os ricos – sempre afeitos à finança e ao rentismo –, buscar enfim uma política de fortalecimento do dólar (Gowan, p. 74-75).

Por outro lado, essa série de episódios acima descritos resulta numa espécie de “dança do dólar”, onde a crise do início dos 1970 culmina na drástica subida da taxa de juros ns EUA, em 1979. Entrelaçando-se às realizações dos acordos do Plaza (1985) e do Louvre (1987), que desvalorizaram a moeda norte-americana, em 1980-85 e 1995-2000 sincronizou-se a valorização do dólar e expandiu-se a posição devedora líquida do EUA. Em outras palavras,
“A partir de 1985, com a inflação já sob controle, a política cambial americana muda de orientação e o acordo do Plaza marca o início de um longo período de desvalorização do dólar perante as moedas dos demais países centrais, que, com algumas idas e vindas, dura até 95” (Medeiros e Serrano, 1999:139).

Essas manipulações da política monetária corresponderam (e implicaram) à consolidação do poderio da moeda dólar como moeda-reserva constituindo o fenômeno crucial da segunda metade do século XX – assinala Luiz G. Belluzzo. Quer dizer, a soberania monetária dos EUA assegurou a expansão de suas grandes empresas e permitiu “a adoção das políticas de crédito e de gasto público que sustentam taxas elevadas de crescimento da demanda nominal e, a cada ciclo de expansão, provocam a elevação do déficit em conta corrente, gerando demanda para o resto do mundo” (Belluzzo, 2005: 230).

Ou seja, o dólar assumiu o papel de moeda financeira de origem pública e denominador comum da riqueza financeira mundial. De modo que, “a despeito do monumental déficit em transações correntes, a demanda pela moeda americana é, mais do que nunca, função do poder dos Estados Unidos como país hegemônico e, portanto, de seu papel de garantidor universal da riqueza privada, cujo valor repousa, em última instância, nos títulos públicos americanos, enquanto ativos líquidos da economia global” (Belluzzo, 2006) (2).

Além disso, para Randal Wray (2002), no caso de uma nação – os EUA – que opera como moeda fiduciária [de elevadíssima confiança], um regime cambial flutuante, a dívida do Tesouro nada mais é do que reserva que rende juros, onde o motivo da emissão de títulos da dívida pública é o enxugamento do excesso de reservas. Por tais razões, “também não faz sentido falar em risco de default da dívida pública denominada em moeda nacional”, quando essa nação trabalha num regime de flutuação cambial (Wray, p. 206).

Conforme Maria C. Tavares e Luiz Melin, nesse quadro internacional e nessa hierarquia, o dólar passou a desempenhar não mais a função de reserva de valor como num padrão monetário clássico: cumpre principalmente o papel de “moeda financeira” (3) num sistema liberalizado e desregulamentado e num regime de taxas de câmbio flutuantes. Nas palavras argutas de Michel Aglietta (1988: 126-127), isso implica identificar, então, uma nova hegemonia das finanças sobre as taxas de câmbio, onde três fatores passariam a se desenvolver: a) a ampliação dos portfólios financeiros diversificados; b) elevação da capacidade de substituição mútua entre os diferentes tipos de ativos financeiros; e, c) crescimento da mobilidade internacional dos capitais.

Sobre esta questão, é semelhante o pensamento de Aloísio Teixeira (2000). Qual seja: a natureza fiduciária do dólar, o seu elevado grau de confiança, garantiria também um grau de autonomia de política ainda maior para o país emissor e portador da moeda-chave. Por sua vez, a gestão da política monetária norte-americana e as variações da taxa de juros básica do sistema, que influenciam marcadamente o rumo dos fluxos internacionais de capitais, passariam a depender estreitamente do ciclo econômico doméstico norte-americano.

Trata-se, sem dúvida, de um relativamente recente fenômeno da economia internacional, em que, ao se libertarem das amarras da conversibilidade ao ouro, os Estados Unidos puderam incorrer em déficits comerciais recorrentes, o que resulta em outra singularidade do atual sistema monetário internacional: o caráter devedor líquido do país emissor da moeda-chave. De outra parte, a progressiva liberalização dos fluxos de capitais foi montando um mercado unificado de dinheiro e ativos financeiros em escala global, sob o comando do sistema financeiro estadunidense. São os novo os “mercados da riqueza”, denomina-os L. Belluzzo.

Para Braga e Cintra (2004), contemporaneamente, as finanças dolarizadas mais se assemelham aos bancos múltiplos que atuam como supermercados financeiros, sob a proteção do Fed (Banco Central dos EUA). Diante do poderio dos mercados financeiros norte-americanos (liquidez, profundidade, sofisticação, introdução de inovações e custos de emissão) o sistema financeiro dos EUA e o padrão dólar chamado flexível atuam como o mercado mundial de crédito e de capitais, por ser: a) o mais internacionalizado de todos os mercados nacionais; b) comandar o dinheiro que se apresenta como “o verdadeiro dinheiro mundial”.

De acordo ainda com especialistas no estudo do padrão dólar de hoje, e especialmente do mercado financeiro dos EUA, essa parece ser a grande vantagem para os EUA da ausência de conversibilidade em ouro: “a eliminação pura e simples da sua restrição externa. Agora, os EUA podem incorrer em déficits em conta corrente, permanentes e crescentes, sem se preocupar com o fato de seu passivo externo líquido estar aumentando, uma vez que este passivo externo é composto de obrigações denominadas na própria moeda e não conversíveis em mais nada” (Serrano, 2002) (4).

Desregulamentado, liberalizado e sem limite à capacidade de endividamento da economia norte-americana: esse é o padrão monetário internacional que fornece a liquidez ao sistema. Conforme M. Metri (2003), e como já dito acima, esse tipo de banco múltiplo atrai, amplia e redistribui capitais pelo mundo. Através das contas financeiras dos países que sediam os principais mercados financeiros (EUA, Japão, Reino Unido e Canadá, área do euro e mercados de países em desenvolvimento), pode-se observar que o sistema financeiro americano organiza a intermediação de grande parte do fluxo bruto global de entrada de capitais e do fluxo de saída.

De outra parte, quando completou cinco anos de existência (2004), o euro, moeda única européia apresentou, nesse curso, uma desvalorização de 30%, para logo após alcançar uma valorização de 40%, decorrentes do movimento dos fluxos de capitais. Na desvalorização do euro, capitais internacionais se moveram imediatamente para o mercado financeiro e de capitais norte-americanos. Ademais, em 2003, quando houve uma valorização de 25% do índice Dow Jones, traduziu-se então um ganho de apenas 3% em euro, uma vez descontada a desvalorização de 22% do dólar (Cintra, 2005).

Por sua vez, o Tesouro dos EUA passou então a estimular uma política de desvalorização da sua moeda, em relação às principais moedas internacionais, tentando diminuir o alto déficit comercial e reduzir as pressões deflacionistas em preços de bens e serviços, em função da capacidade ociosa em alguns setores da economia. No entanto – e nada surpreendente – o sistema monetário internacional caminha ainda lentamente para a formação de uma polarização entre o dólar e o euro. Inobstante o avanço do euro em matéria estoque de crédito bancário internacional, e em relação ao mercado internacional de securities (bônus, notas, comercial papers); assim como o mercado de capitais em euro vai ganhando profundidade (5).

Especialmente com certa alteração da rota dos fluxos de capitais mais recentemente – desde o reposicionamneto de alguns países « emergentes » e desde o marco da crise asiática de 1997 –, quando inúmeros países em desevolvimento trornaram-se superávitarios nas transações correntes, surge um sério problema no sistema financeiro internacional, comandado pelo imperialismo norte-americano: a incapacidade desses mercados liberalizados e desregulamentados permanecerem com fluxos de capitais para países e devedores de maior risco. Nesse exato sentido, após a crise de 1997 (Aglieta, 2004 : 24-37), por exemplo, os bancos e os investidores de títulos e ações reduziram suas exposições (ao risco) nos mercados “emergentes”. Embora mantendo o volume de Investimento Estrangeiro Direto (IED) em níveis relativamente altos, o fluxo líquido passou então a ser negativo em 2000. Liderados pelos asiáticos e produtores de petróleo, isso significa que os países em desenvolvimento tornaram-se emprestadores líquidos de capital para o sistema financeiro internacional (Prates e Cintra, 2006: 8-10).

Em todo caso, nos momentos de pico dos ciclos mantêm-se as taxas de crescimento, a liqüidez global, reproduzindo-se, no entanto, os desequilíbrios. O que já foi denominado por vários autores de “fuga para a frente”. Paralelamente, os bancos centrais quando reduzem as taxas de juros, ampliando assim a oferta de crédito, no mínimo reduzem a propagação das crises financeiras – as abortam, digamos – ; porém, atuam como emprestadores de última instância: criam condições para o refazimento do caminho de multiplicação da riqueza financeira. Ocorre que, agora, em estruturas cada vez mais amplas e complexas – espécie de espiral. Diferentemente, no cume dos ciclos expansivos, elevam as taxas de juros para conter a alavancagem e a exuberância irracional, nas palavras de A. Greenspan, e os ciclos são retomados.

Desequilíbrios e instabilidades que, conforme Hyman Paul Minsky (1994), são sempre inerentes a uma economia capitalista que opere “sem restrições” – ou liberalizada –, que tenha um sistema financeiro sofisticado, “complexo e em contínua evolução” e que apresente períodos de estabilidade e períodos de comportamento turbulento e “até mesmo caótico”; a instabilidade é endógena a este sistema. Ou instabilidade “perversa” e existente pelo menos desde o fim da conversibilidade do dólar (1971), onde se combina alta especulação financeira com crescimento “capaz de evitar colapso, garantir todo tipo de lucros” – e financeirização, disserta Braga (1997).

Considerações finais

Ao que tudo indica, nas questões precedentes concentram o essencial da dinâmica dominante no sistema monetário internacional – no padrão de acumulação de riqueza “financeirizada”, liberalizado, do capitalismo atual. Cotejamos várias análises que não apontam – nem à longa distância – para um “colapso do dólar”; tampouco para uma recondução sistêmica a uma fase de crescimento econômico mais demorado, robusto, com expansão do emprego e contenção da orgia dos fluxos financeiros, como na “repressão financeira” do “capitalismo atípico”, inicialmente forjado em Bretton-Woods. Instabilidade e crises financeiras recorrentes (e interpeladas) são as marcas indeléveis deste regime alimentador de extraordinárias assimetrias econômico-sociais; são partes constitutivas dele.

Crises financeiras severas, que se reciclam a partir de 1987 – crash profundo em Wall Street –, motivando o BIS (Banco de Compensações Internacionais) a exigir que instituições financeiras assegurem capital suficiente para cobrir possíveis perdas de valor em seus ativos, através dos denominados Acordos da Basiléia (1988).

Historicamente, não houve, até hoje, possibilidade de dominium e reprodução de um padrão monetário e sua moeda-reserva internacional, dissociados dos poderes da potência hegemônica. Com forças e fraquezas, observa-se claramente que os EUA e sua moeda – superpotência em decadência histórica – começam a sofrer implacável concorrência que ressurge e emana da lei do desenvolvimento desigual dos países.

Sérgio Barroso é doutorando em economia social e do trabalho pela Unicamp e diretor do Instituto Maurício Grabois.

Notas

(1) Sobre o assunto, considerem-se assim as duas hierarquias: 1) do sistema nacional: moeda manual (padrão de medida); dinheiro de crédito (comercial); dinheiro bancário (escritural); dinheiro estatal (nacional) (Banco Central) ou metal monetário. 2) do dinheiro internacional: moedas conversíveis (central e secundárias), inconversíveis e metal monetário. A hierarquia internacional do dinheiro é determinada pela sua aceitação em transações internacionais, pela sua utilização como reserva de valor (do valor criado em outros países) ou acesso a mercados financeiros maiores. Ver: “O papel do capital financeiro no capitalismo atual. Traços marcantes da globalização neoliberal: O Sistema Financeiro Internacional e seu papel na acumulação”, de Lecio Morais, mimeo, texto/roteiro 2006.
(2) Ver: “A nova hegemonia”, de L. G. de Mello Belluzzo, in: Carta Capital, n. 389, p. 42. Antes escreveu Belluzzo: “O divisor de águas [da nova situação da economia mundial] foi a reafirmação do papel do dólar como moeda de transações e de reserva do sistema monetário internacional, no início dos anos 1980” (idem). Ver igualmente, “Dinheiro e as transfigurações da riqueza”, onde Belluzzo reitera que os títulos da dívida pública americana consolidaram sua posição como um refúgio seguro. Em circunstâncias – cada vez mais presentes, dado particularmente a flutuação das taxas de câmbio – de instabilidade e incerteza do investimento global é para os Treasuries que a demanda imediata se orienta (in: Poder e Dinheiro – uma economia política da globalização, Tavares, M. e Fiori, J. (orgs.), Petrópolis, Vozes, 1997, 2ª edição).
(3) Cf. “A reafirmação da hegemonia norte-americana”, in: Poder e Dinheiro – uma economia política da globalização, Tavares, M. e Fiori, J. (orgs.), Petrópolis, Vozes, 1997, 2ª edição.
(4) Considerando o volume “extremamente elevado” da dívida externa dos EUA, Suzanne Brunhoff, no entanto, já observara: “Esta [dívida], porém, não tem nada em comum com as dívidas dos países do Sul. De um lado, é denominada em dólar, moeda doméstica dos estados Unidos, de outro, é financiada pelas aplicações estrangeiras, públicas ou privadas, em títulos norte-americanos – ações ou obrigações do Tesouro, investimentos diretos diversos (compras ou criação de empresas etc)”. Ver: “A instabilidade monetária internacional”, da autora, p.p. 80-81, in: A Finança mundializada, Chesnais, F. (org.), São Paulo, Boitempo, 2005.
(5) Conforme, ainda Cintra (2005), “O fortalecimento do euro como moeda-reserva internacional sugere a possibilidade de os EUA encontrarem dificuldades para o financiamento do seu déficit” (ver: “Papel do dólar ainda confere poder extraordinário aos EUA”, de Marcos A. M. Cintra, in: www.desempregozero.org.br).

EDIÇÃO 89, ABR/MAI, 2007, PÁGINAS 56, 57, 58, 59, 60