Entre abril de 1888 e agosto de 1889, passeou pela Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro um ex-relojoeiro que sorria de tudo e de todos com “a tinta da melancolia”. Era um sujeito cínico, que mal disfarçava sua perversidade e impunha seu capricho de classe ao leitor. Seu pseudônimo, oblíquo e dissimulado como os olhos de Capitu, era, ao mesmo tempo, uma expressão de despedida: Boas Noites. Esse, que seria talvez um irmão de Brás Cubas, um primo de Bentinho, ou um conviva do Conselheiro Aires é, na verdade, o narrador que dá voz nas crônicas ao projeto machadiano de exposição do Brasil aos brasileiros.

      Destrinchar as artimanhas do narrador e revelar nas crônicas a equação crítica de Machado é o que propõe a pesquisadora Gabriela Kvacek Betella em Bons dias! – o funcionamento preciso da inteligência em terra de relógios desacertados: as crônicas de Machado de Assis (Editora Revan). O livro é o resultado do desenvolvimento da dissertação de mestrado da autora, apresentada em 1998 na USP e evidencia marcas de uma pesquisa detalhada e de uma leitura academicamente rigorosa da obra machadiana e de sua vastíssima fortuna crítica.

      Betella encontra em Walter Benjamin o alicerce teórico a partir do qual lê os mecanismos sutis da crônica machadiana. Para ela, Machado constrói suas crônicas aliando a revelação dos grandes fatos históricos ao registro miúdo do “lixo da história”. Assim, segundo Betella, Machado coloca “lado a lado as grandes decisões políticas e a vida acontecendo nas ruas, revirando e aproximando esses dois lados com um poder de relativização desconcertante”. Essa é para a autora uma das marcas mais características da grande unidade formal que há no conjunto de textos analisado. A capacidade do narrador de oscilar violentamente entre o fato das ruas e o fato parlamentar numa mesma crônica mostraria a volubilidade do narrador, que quebra ritmos e finta o leitor.

      O grande momento do livro de Betella é o seu segundo capítulo, em que a autora trata de desenhar o perfil do narrador das crônicas. Sabendo que a crônica, como gênero híbrido, é conduzida por um narrador cuja principal missão é captar a realidade e julgá-la ao mesmo tempo, a autora afirma que Machado cria uma posição de observação ficcional capaz de i) comentar o presente, ii) construir uma imagem deste e iii) julgá-lo de acordo com essa perspectiva fictícia, que, em última análise, é compactuada por algum elemento da realidade observada. Assim, o leitor de Machado tem diante de si uma voz que lhe fala em tom de conversa fiada e que calca raízes no ambiente ideológico da classe dominante, refletindo algo do mecanismo do favor e da irresponsabilidade social. Precisamente por isso, entretanto, é que consegue tocar os verdadeiros problemas das desigualdades sociais.

      No que se refere ao tom do discurso, a autora diagnostica um “inconteste menosprezo pelos outros”, que, ao mesmo tempo, demonstra coerência ideológica, habilidade para lidar com as mais diversas teorias e para justificar sua opinião. Enfim, Boas Noites é alguém competente na arquitetura do discurso. Sua fala se dá a partir de uma posição de classe típica de quem não espera nada da História, mas que, por outro lado, não move uma palha para mudar a situação que critica. Outra forte marca desse narrador das crônicas machadianas, para Betella, é a sua grande capacidade de manipular o leitor, por meio de uma volubilidade simpática somada à erudição, que, todavia, revela também o seu avesso de mau humor, prepotência, cinismo, indiscrição e charlatanismo.

      Qualquer semelhança desse perfil com o pirotécnico e vazio enfant terrible da crônica nacional contemporânea Diogo Mainardi, ou com o histriônico e descabelante tom pseudoagressivo de Arnaldo Jabor não será mera coincidência. A diferença está em que estes se levam a sério. Ainda aí trata-se do velho Machado revelando-nos quem somos nós os intelectuais midiáticos: cem anos antes de nós ou cem anos depois dele.

      Essa conexão entre Machado e a crônica brasileira atual chega a ser indicada no último capítulo, mas não é suficientemente desenvolvida pela autora. Betella ainda procura ler dois momentos de nossa história pelo prisma das crônicas de Bons dias!: a abolição e a proclamação da República. Todavia aqui a análise deixa um pouco a desejar, ficando restrita à explicação factual e à paráfrase do discurso do narrador. Nesses trechos, Betella abandona um pouco o tom dialético que fizera muito bem ao seu texto no capítulo sobre o narrador, conformando-se, muitas vezes, com a repetitividade e o didatismo.

      A reflexão final do livro enfoca  a crônica brasileira atual. Para a autora, nossa literatura parece ter chegado a um limite, desinteressada pela compreensão do processo histórico brasileiro, preferindo “coalhar a produção cultural com fluxos de memórias individuais, imagens cinematográficas, maniqueístas, providenciais, convencionais”. Se abrirmos a crônica do jornal de hoje ou a revista da semana, certamente encontramos isso. Contudo, o próprio livro de Betella parece apontar para um outro flanco desse limite literário. Toda a sua análise é construída à sombra da ótica política de Machado de Assis engendrada por Roberto Schwarz. Se a leitura de Betella é bem arquitetada, pouco ou nada avança em termos políticos na discussão de Machado e o grande risco que corre é o de instrumentalizar um tipo de análise que é frutífera exatamente por ser indócil e nada esquemática. A leitura de Schwarz, assim, seria um limite também para a crítica brasileira. Sua potência política poderia também ter virado mercadoria? Para machadear: o fantasma da leitura de Schwarz seria como o fantasma de Brás Cubas, que sorri dos vivos em seu inexorável caminhar para o nada?