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    Comunicação

    Sons para Lumumba

    I Em Drottninggatan nevava sobre teu nome, Lumumba.  Município de Blekinge, comarca de Hällaryd, e teu nome sobre o muro como notícia maior: “Lumumba död i fängelse?” E eras notícia maior. No vídeo eu te via preso de pés e mãos amarradas no caminhão militar. E o vídeo mostrava ao mundo tua mulher e teus […]

    I

    Em Drottninggatan nevava
    sobre teu nome, Lumumba. 

    Município de Blekinge,
    comarca de Hällaryd,
    e teu nome sobre o muro
    como notícia maior:
    “Lumumba död i fängelse?”
    E eras notícia maior.
    No vídeo eu te via preso
    de pés e mãos amarradas
    no caminhão militar.
    E o vídeo mostrava ao mundo
    tua mulher e teus filhos
    com olhos de só penar.
    E o mundo avistava o Congo
    com mortos de não contar,
    pois a milhares de vidas
    faltava boca e lugar.

    Malaxado, malaxado
    teu silêncio maleiforme
    formava a lei, nossa lei
    de ganhar sem ter ganhado…

    Em Drottninggatan nevava
    sobre teu nome, Lumumba.

    II

    Ablator ONU! Ablator ONU,
    onde as flores de maio, as libertinas dálias?
    Onde o ato e o desato atrás dos loiros fios do aparato?

    Inútil betumar o mar do mundo
    Lumumba, mar e mundo, rosamundo
    e dor à tona
    que os moribundos babam na babel belona!

    Ah, crepúsculo, quantos mortos soma a tua quimera?
    Quando te movimentas sobre a escura terra,
    quantos crimes circulam em ti, molusco
    de ouro e sangue, derrotada esfera?

    III

    Rodados longos rosários
    redondos como maçãs,
    sobre o negro obituário
    conversavam conversavam
    bocas cheias de avelã.
    A palavra era bondosa
    e as almas quase gasosas
    de se sentirem tão sãs.

    Na luva dos comentários,
    sempre o K de Ku-Klux-Klan!

    IV

    Meu nome é índio, Lumumba:
    desde o berço até a tumba
    me chamarei Moacyr.
    Félix me quer a Europa
    de Roma e todas as opas
    que me ensinaram a trair
    com posturas de savant
    meu ser tamoio ou tupi:
    filho de peixe das águas
    que levam sumo ao caqui,
    filho da dor andeja
    escorrendo como chuva
    nos olhos da gente ali.
    Mas no meu corpo, Lumumba,
    uiva um cão de treva e mágoa
    todo feito de negror:
    e é teu Congo que lateja
    neste verso sofredor
    quando a noite assim me fala
    do que morre em mim, senzala
    sob os relhos do feitor.
    Desde o berço até a tumba,
    meu grito é negro, Lumumba!

    Se jornaleiramente amor é morto
    e os homens triturados como nozes,
    de que nos serve o luto do abaruna
    vestindo em sombra o riso dos algozes?

    Desde o berço até a tumba,
    meu grito é negro, Lumumba!

    V

    Patrice negro e congolês Lumumba!

    abaeté e abaçaí dos abaíbas
    eu te proclamo, nós, mulato e branco
    filho de muitas raças misturadas,
    negro, cafuzo, mameluco e índio,
    de alpargata de couro,
    de blusão operário,
    de gravata sem festa,
    na jangada, no trem, no bonde, no ar
    da escura mina e do aeroporto aberto,
    das mesas burocráticas,
    sob a fundura das sondas ou em Volta Redonda,
    sobre as dragas do São Francisco
    ou sob a lâmpada do apartamento em vigília,
    de um unicórnio azul a recontar os grilos
    de uma lívida floresta alada, do fundo poço
    banhado essencialmente
    pelas contradições de céu e inferno, e avanço
    e fuga, e sonho e realidade, e lógica e loucura,
    da roda humana com seus grandes eixos
    de nervo e inconsistência, resistência e fim
    eu te saúdo, fogo e canto, lágrima
    do imóvel ser tornado em vir-a-ser,
    do fatum a transcender-se em ato,
    do gesto a distender-se em vida,
    da vida a transformar-se em homem

    Patrice negro e congolês Lumumba!

    VI

    Bambo bambu, molambo
    de infinitas bandeiras
    no céu de África acesa,

    vão ceifar-te as lupangas
    do Tshombe dos belgas
    em Catanga, em Catanga?

    Em Catanga, em Catanga
    colho a estrela madura
    de um sonhar amarelo,

    e em Catanga, em Catanga
    abro a boca da noite
    com o meu grito mais belo
    – e sugo a liberdade, o futuro,
    com a mesma natural voracidade
    com que nos quintais chupava as mangas
    arrancadas por mim no alto muro!

    VII

    Só querias de verdade um mundo alegre.

    Lâmina com que os ventos se interrogam
    no chão sem fim depois da infância finda,
    é triste o homem quando só no Espaço
    – bailarino entre fontes absurdas.
    Isto sabemos e necessitamos:
    essa tristeza é nossa.
    Mas é desumana
    quando seus frutos, como agora, amargam
    por serem falsos frutos, coisas podres
    da vida imersa ainda em Natureza.

    Só querias de verdade um mundo alegre.

    Por isso é tua, Lumumba, a minha melancolia.
    Tua, Lumumba, a minha noite imensa e vazia,
    a minha exigência feroz
    de um outro dia.

    Só querias de verdade um mundo claro
    ao gesto meigo de uma filha tua…

    Vamos fazer zabumba, ó Lumumba,
    até que sejam corações a Rua?
    Vamos fazer zabumba, ó Lumumba,
    até que as nuvens sejam fadas nuas?

    Vamos pintar o som do sol na lua?

    Karlshamn, janeiro de 1961.
    (Violão de Rua II – 1962)

     

    Moacyr Félix
    Invenção de Crença e Descrença
    Editora Civilização Brasileira – edição 1978

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