– Senhor, isto é mundo pelo avesso – dizia o caboco –, com o perdão da palavra é  mundo ilhado dentro de mundo globalizado…

       – Por acaso, conheces o vasto mundo lá fora – retrucou o doutor –  para dizer assim deste outro cá dentro?

      – Na verdade não sei, meu senhor… Mas, ouvi dizer que se conhece o todo pela parte.

      – Interessante… E de que parte tu estás falando?

      – Da parte que me toca neste fim de mundo. Claro está que eu não me chamo Raimundo nem Drummond. Mas, o senhor que é homem viajado e bem versado na universidade das coisas, podia me contar um bocado de coisas que se passam daí em frente por trás do horizonte…

      A chuva que até então caia a cântaros estiou um pouco. Aí, paresque, apareceu um pajé montado em búfalo: o mesmo animal que outrora conduziu Lao Tsé da China até a fronteira da Índia. Pelo menos, reencarnação da montaria metafísica em figura de animal parrudo que se espalhou ao Ocidente junto com as caravanas de especiaria.

      Devagar o homem e o búfalo atravessaram a campina com augusta materialidade do animal a serviço da humanidade. Ambos se confundiram na distância até ser um único ponto no espaço chuvoso que sumiu nas águas do lago, de volta talvez aos princípios do universo. O chuvisco deu licença ao viajante para sair da toca onde encalhou a viagem filosófica para se abrigar do dilúvio desatado pelo mito amazônico da primeira noite do mundo… Por isto e tão só por isto, àquele exato momento encontrava-se naquele lugar o centro da Terra enquanto o tempo parou. Que nem na época de Josué na história sagrada, apenas contradita pela luneta herética de Galileu…

      O senhor doutor fazia das tripas coração para manter a linha e o prumo da boa educação de primeromundo trazida na monumental bagagem cultural. O fim do mundo se de fato não era o inferno verde, de todo modo resgatado do limbo encalhava no purgatório. O caboco descendente do bom selvagem, afinal; não ajudava o grande homem para muita coisa… Contratado para serviços de mateiro e guia de viagem, o dito cujo era um retórico incurável que debalde tentava avisar estarem abaixo do equador. Ao ver ele o doutor patrão imitar dom Quixote e partir a pé em direção à manada de ondas bravias da maré montante da Pororoca, quis também se passar por Sancho Pança na cobiça da ilha de Barataria e seguir de perto o Cavaleiro da Triste Figura. Assim ele acompanhou o sábio em caminhadinha a fim de distender os nervos em frangalhos ao longo da praia deserta bordejando a manhã: cinzenta que nem a divina preguiça do Padre Eterno no fazimento do mundo com o barro primordial do rio invisível.
 
      Pobre desguiado guia em agonia: o cara não sabia se era melhor deixar o patrão  em muda contemplação da primeira página do Gênesis ou fim do mundo. Se era,  caso contrário; mister ir distraí-lo com estórias da Cobragrande e outros bichos encantados que costumam habitar terrenos baldios da chamada cultura popular… O senhor compreende, não é normal uma pessoa de alta extração social vir da capital descobrir o fim do mundo e acabar ilhado na beira do rio, no mato sem cachorro. 

      Já basta o que se passou com o infeliz descobridor do rio das Amazonas e a esta gente sem eira nem beira que o outro mundo exilou e esqueceu depois do grande naufrágio civilizatório do Novo Mundo… O caboco queria dizer apenas esta enérgica sentença, resumida de 400 anos de marginalização: “meu senhor, o diabo é o colonialismo”. Mas, não acertava a dizê-lo com todas as letras condensadas com a força de um cânone, tal qual o Papa quando proferiu, Urbi et Orbi, o flamejante axioma ultra aequinoxialem non peccavit… Dali em diante não existiu pecado debaixo do equador. Mas, nada servia de álibi a gente carente de alfabetização competente e falta de passaporte válido para atravessar a fronteira da língua falada, escrita, televisionada e canonizada… O jeito era ele passar como imigrante clandestino através de atalhos do discurso e inventar uma sorte de dialeto transcontinental etecetera e tal. Mas – oh, dúvida cruel! – o primeromundo entenderia o que terceiro e quarto mundos tinham a dizer, antes que fosse tarde demais à salvação de todos os mundos?

      O ar úmido no contraste do silêncio levava vozes alheiadas e o rumor infinito da maré mais longe do que o habitual. Os rastos logo se apagavam na areia molhada como se a paisagem conspirasse para borrar a memória daquele sobrenatural dia de dilúvio. O sábio se pusera a caminhar tão logo o tempo permitiu, aproveitou ele  restos de chuvisco para esfriar a cabeça, o outro foi atrás a explicar que naquela terra a gente não manda no tempo… Que o relógio da maré depende da Lua nua e crua. Portanto, o acerto da jornada tinha ido por águas abaixo por motivo de força maior: as pesadas chuvas da noite inteira sem promessa de céu aberto senão no dia seguinte… Aqui quem faz metereologia são os bichos e as plantas com seus sinais sutis. A gente da terra se acostumara, durante milhares de anos, a obedecer sem resmungar.  

      Por certo, aquela viagem filosófica de terceira categoria estava irremediavelmente perdida. Isto porque ninguém se lembrara de combinar o tempo com o secretário particular do Senhor Jesus Cristo. “Antigamente, diz-que – o caboco andava e falava atrás do grande homem, o qual quase não lhe prestava atenção –, minha avó dizia que toda boa viagem começava com novenas e despedidas regadas a café e beju de macaxera a todos parentes da aldeia, a gente ia de casa em casa se depedir. O tempo era suficiente, não carecia pressa pra nada. Embora raramente um velho alcançasse idade de cinquenta anos… Hoje em dia muitos dobram a casa dos cem, mas a gente não tem mais tempo pra coisa nenhuma. O senhor não acha isso estranho? Pra que serve tamanha idade se a vida não servir a alguma algo que preste? Me diga, doutor”.
 
      – Sabe aquela estória do padre e o remador? – o cara insistia.

      – Não, não sei não senhor – respondeu o viajante sem deter o passo. 

      Naquele tempo, até pra ir ao céu ou ao inferno a gente carecia de remo, canoa e, sobretudo, bom remador… Claro que não se faz meninos ribeirinhos nem remador bacana por geração espontânea. Um padre pra ir salvar almas no outro lado do rio precisava ter a seu serviço índio manso ou preto escravo bem catequizado que lhe levasse sertão adentro numa canoa maneira debaixo de tolda panacarica. Esta rica invenção tecida de palha para proteção de gente branca a salvo da inclemência do sol e da chuva. Foi assim que o reverendo, que não pegava no pesado nem pra ir ao paraíso; mas não largava de fazer sermão gastando tempo e ensinando catecismo,  perguntou mais ou menos assim: “Meu bom caboco, tu aprendeste a ler e a escrever? ”Não, seu padre – respondeu o remador – mea mãe não teve posse pra me mandar ensinar”. O padre, penalizado, aduziu. “Oh, meu bom caboco, você perdeu metade de sua vida!”. Como a viagem fosse longa a lista de perguntas sobre o que o caboco não aprendeu e o tanto que ele perdeu na vida foi aumentando… Até que, lá pelas alturas de um largo que o rio fazia antes de chegar ao derradeiro estirão, levantou-se o vento pela proa e o banzeiro das ondas balançou a frágil embarcação de popa à proa. Aí o padre se calou e foi a vez do remador perguntar, com a simplicidade: “Seu padre, que eu mal pregunte: o senhor aprendeu a nadar?” O homem de Deus assustou-se e respondeu depressa, “Não, meu filho; eu não aprendi a nadar”… “Antão, meu mestre; agora o senhor vai perder sua vida todinha e eu da minha ainda vou ver se salvo alguma coisinha”…

      Quanto à perdição da viagem filosófica em apreço em comparação ao natural pragmatismo do afilhado de São Pedro Safadinho, era este pescador um católico por necessidade e acaso temente a todos santos, caruanas e encantados que Deus o livre… Daqueles uns como seus parentes que em estado de necessidade se pegam aos pajés primeiramente. Só depois de bem desenganados confiavam em remédios de farmácia. Ultimamente, o caboco está vivendo um dilema. Acostumado ao fato de que a vida é uma coisa sem fronteiras, de repende ele deu-se conta pela voz de um compadre convertido pelo pastor crente que se casou com a filha lá desse um, que o mundo velho está de cabeça virada e vai ter que se acabar. Portanto, Jesus voltará para emendar o que está errado. Ou seja, o que padres e políticos obraram. Ainda mais, dar termo às velhas crenças dos pajés, que nada são mais de que arte do Diabo. E o compadre avisava, “Corra seu homem, enquanto há tempo! Olhe pra mim e veja como Deus me ajudou, aleluia!”. De fato, era visivel a mudança de vida do compadre. “Mas, meu amigo como foi que Deus lhe ajudou a melhorar?”…”Veja meu compdre, o pastor se casou com minha filha”. Restava um problema ao mateiro, ele não havia filha em ponto de casar.  

      – Me diga, meu branco – rogou o caboco ao viajante – o que o senhor pensa disto tudo?

      – Cavalheiro – disse, meio enfezado, o grande homem botando banca e limites à intimidade –, verdadeiramente não entendo o que me diz…

      – Ora, patrão; me desculpe a franqueza, mas aqui na terra a gente que não é besta diz que pra bom entendedor meia palavra basta.

Belém, 26/10/2007