Com o aparelhinho no bolso ou pendurado no cinto, o fulano sente-se membro da família consumista. Não é um sem celular. Toma ares de importância incompreensível. Desatenção pernóstica. Interrompe conversas, invade diálogos. Já vi um que estirava o pescoço, em contorções de galinha bebendo água, falava alto para a platéia involuntária: – Olá doutor, como vai? Falou com o deputado? E nosso negócio? O Senhor sabe, os votos daqui são favas contadas. Depois de olhar, superior, a ralé próxima, desliga sorridente. Outro, de segunda idade, quase terceira, encosta o aparelhinho na bochecha de gozo sedentário e cervejadas crepusculares, murmura para alguém com blandícia e paixão. Remexe dengoso o traseiro murcho, alisa com a mão a barriga insinuante, ajeita a calça, enquanto ronrona doçuras, deixando transparecer o momento de feliz herança juvenil. Uma bicota e um hum… hum, conclui o diálogo de Romeu com alguém no ciberespaço. Para meu amigo Ostra, entretanto, o objeto místico-erótico nunca trouxe o esperado prazer. Nos primeiros dias saiu espalhando seu úmero, disparando torpedos e mensagens. Amigos, vizinhos, parentes e outros incautos. Era uma aventura apertar o botãozinho que comandava a discagem de onde estivesse. Caminhando pela rua, no barzinho, no consultório, ao volante do carrão e até nos lugares recônditos onde se cumprem as necessidades primais do ser vivo, nos banheiros, entre gemidos e sacudidelas. A lua de mel durou poucos dias. Começaram a chegar as faturas. Chamadas de lugares nunca pensados. No meio da noite. Até uma ligação de falso seqüestro. A voz sombria dizia que o irmão estava em cativeiro. Ouvia gritos e apelos. Teve a sorte do gerente do banco desconfiar do saque em dinheiro vivo e avisar a polícia. Escapou da extorsão, mas ficou traumatizado. Ligou para a tal servidora. Quero cancelar minha assinatura. Estou farto de celular. O atendente indaga o nome, CPF… Quer saber o motivo. O Ostra esclarece. Cancelar não pode, pode trocar por pré-pago. O atendente pede um tempo. Fica tocando uma musiquinha chata. Acaba dizendo que não é com ele. Vai passar a ligação. Outro atende. Pergunta tudo de novo. Se não quer outro plano. Fala de uma promoção. Ganharia tantos torpedos, mais não sei quantos minutos para falar com a sogra. Até um aparelho novo. Quero cancelar a assinatura. A ligação cai. Recomeça. Três dias depois, uma semana, um mês. Vai de São Pedro a Nossa Senhora, de atendente a atendente e nada. A conta continua chegando. Cada vez mais alta. E nada de conseguir ser ouvido. Percebe chiste e ironia no atendente treinado. Depois a ligação cai. Sísifo, recomeça. Por fim, Ostra passou a gesticular, falar para seres alados, sorrir desatinado e, para finalizar, fechou-se. Ninguém notou. Porque depois que adquiriu o celular desenvolveu esta mania de Macbeth, de conversar e rir sozinho.
Inferno celular
Com o aparelhinho no bolso ou pendurado no cinto, o fulano sente-se membro da família consumista. Não é um sem celular. Toma ares de importância incompreensível. Desatenção pernóstica. Interrompe conversas, invade diálogos. Já vi um que estirava o pescoço, em contorções de galinha bebendo água, falava alto para a platéia involuntária: – Olá doutor, […]
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