Naquele povoado, o Campo Largo, de fato, passei a entender o que era horizonte. A redondeza da terra. Os vapores subiam e desciam o Rio Grande, no rumo de Barreiras e da Cidade da Barra, que demandava ao São Francisco, Bahia, África, Europa e até aos outros planetas. Aperfeiçoei no conhecimento da palmatória. O menino, na sabatina, perguntava: – sete vezes nove? – Oitenta e seis – respondia bronco. Errou, sua besta! Sete vezes nove é sessenta e três. Três bolos… Autorizava a professorinha terna e sádica, escondendo sorrisos. Não vale fechar a mão. Assim foi até que o brejeiro ficasse andando feito doido enjaulado cantando e decorando tabuada. Não restou uma operação que não ficasse gravada indelével no cerebrozinho de caboclo dágua. Podia ser salteada, de trás pra frente, de qualquer jeito. Soma, subtração, multiplicação e divisão. Virou uma calculadora móvel. Era só apertar o botão da memória e ia debulhando os resultados, condicionadamente. Esquecer, nunca mais. Fiquei ali coisa de um ano. Depois, minha mãe mandou positivo buscar, que era muito ciosa de sua ninhada e não queria espalhada feito filho de perdiz. O Campo Largo foi minha universidade. Aprendi quase tudo que sei até hoje. O que é bom e o que é mal. Aprendi que não se mexe com quem está quieto. O povoado tinha casas encostadas umas nas outras, acompanhando o desenho do porto. Pouco mais de uma rua, com alguns coqueiros e mungubas corpulentas de sombra. Depois de remexer os livros dos primos, dos tios, jornais que chegavam, folhetos políticos, ia passarinhar na beira da lagoa ou experimentar afogamentos no barranco do rio, acompanhado da malta hidrófila. Numa dessas incursões, encontrou num estreito beco de cerca de meio metro de ancho, um par de olhinhos. Podia ser uma coruja. Um mocó. Um preá. Quem sabe? Arranjou uma vara suficiente e pôs-se a cutucar o viventezinho acomodado. Primeiro ouviu uns chiados, como pequenos espirros, depois veio uma onda gasosa, de odor de guiné esmagado que lhe invadiu as narinas, a boca, ardeu os olhos e se espalhou pelo beco, principalmente se agarrando na roupa, na pele, no cabelo. Atrás da emanação pestilenta, veio saindo, calmamente, um faceiro animalzinho de listas brancas em corpo preto, carinha suave, quase ridente. De momento em momento, quando o menino procurava se acercar, levantava as patinhas traseiras, eriçava a cauda peluda graciosa e despejava outro jato no ar, empestando tudo. Descoberta a feitura, ganhou uns tabefes. Foi despido na frente de tios e primas, de adultos e meninos. As roupas queimadas ali mesmo. E, tome banho! Dezenas. Até recuperar parte do cheiro tolerável de gente. Tinha que comer na cozinha. Proibido de entrar nas salas quando houvesse visitas. Padeceu de zombaria, mofas e exclusão vários dias. Também quem mandou mexer com quem estava quieto? Neste caso cutucara no fundo do beco uma jaritataca, ou jaratataca que por trás de sua feição de cachorro de madame esconde uma arma terrível capaz de afastar cães, onças e até meninos peraltas.
Jaritataca! Jaratataca!
Naquele povoado, o Campo Largo, de fato, passei a entender o que era horizonte. A redondeza da terra. Os vapores subiam e desciam o Rio Grande, no rumo de Barreiras e da Cidade da Barra, que demandava ao São Francisco, Bahia, África, Europa e até aos outros planetas. Aperfeiçoei no conhecimento da palmatória. O […]
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