É tempo de total dissolução. Não nos apegamos a nada. Aquela geladeira antiga, que conservou os alimentos de minha avó, é um trambolho guloso de energia, o melhor destino para ela é o lixo. A casa onde nasci e passei a infância, escombros. Aquela rua das brincadeiras, das enxurradas, das molequices de quando ainda havia infância – um tapete de asfalto, buzinas, freadas, batidas. Por medo da morte vamos descartando as coisas. O eletrodoméstico, a cadeira de balanço do papai, as lembranças. O agora que nos interessa é um rótulo de coisas descartáveis. Ótimas, mas logo inservíveis. Temos que continuar vivos para consumir os novos modelos. Nem que seja à custa da depressão, do diabetes, do colesterol ou do enfarte. Repletos de coisas fugidias vamos vazios, sem compromissos. Como os carros que irão ao ferro velho. Como as casas que logo serão demolidas. Como os objetos que preenchem, por alguns instantes, nosso desejo de posse. Assim vamos deixando pela beira da estrada nosso ser vocacionado ao precário. Nossa alma objetual de substância nenhuma. Como objetos fadados à substituição, assim boiamos também nos sentimentos. Roçamo-nos no atritar de corpos que se encostam, acumpliciam e se separam sem remorso ou lembrança. Vamos deixando também os rituais. Elidimos a necessidade da presença, podemos ser apenas casuais, internautas, deletáveis. Amores, relações, como tudo, acabam. Por isso me comovo quando falam em celebração de bodas, simples bodas. Estremeço quando se falam em bodas de prata. Mais ainda, fico estupefato quando se mencionam as duradouras, solenes, bodas de ouro. Num tempo de ficação, test-drive, experiência quem chega aos cinqüenta anos de vida em comum tem algo de fenômeno. Isso foi o que fizeram meus amigos Waldir Aidar e Shirlei Gaino Aidar. Resistiram casados cinqüenta anos. Estão ali cercados de filhos e netos, contentes de viver, abraçar, acolher os amigos. Passaram de um século a outro presos ao compromisso. À busca da ideal felicidade. Certamente que desfrutaram de dias amenos e outros tantos de securas. Como duas árvores fortes, juntas, provando a doçura das chuvas e o rugir das tempestades. Sentiram cansaço e novos entusiasmos no recente olhar de cada filho. Muitos. Cada um trazendo ao mundo sua face nova de vida que quer continuar. Filhos – coisas que não se descartam. Pedaços do homem que continuam. Imagens do encanto de poder reter uma parte da vida que ronda o universo. Tê-los por momentos nas mãos, afagá-los e depois deixá-los ir ao mundo. Hoje chegam ali à casa paterna, para onde voltam sempre, posto que já crescidos, sempre crianças carentes de zelo e atenção. Trazem uma réstia de netos, caras futurinhas em correrias álacres. Waldir e Shirlei não são deste tempo. Vamos tirar retratos bem bonitos de suas bodas de ouro. Talvez tenhamos que provar aos nossos netos que parcerias assim já existiram.
Bodas de ouro
É tempo de total dissolução. Não nos apegamos a nada. Aquela geladeira antiga, que conservou os alimentos de minha avó, é um trambolho guloso de energia, o melhor destino para ela é o lixo. A casa onde nasci e passei a infância, escombros. Aquela rua das brincadeiras, das enxurradas, das molequices de quando ainda […]
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