“No princípio era o ermo,/ eram antigas solidões sem mágoa…”. Estes versos abrem o poema de Vinícius de Moraes, base da sinfonia composta por ele e Antonio Carlos Jobim para homenagear Brasília. De fato foram precisos 200 anos desde o primeiro registro da ideia de transferir do litoral para o interior a Capital da República, para que ela se erguesse no Planalto Central, a 1000/1200 metros de altura acima do nível do mar, nos “ermos e gerais” do cerrado goiano.

Para que esse “milagre” ocorresse foi preciso a determinação de Juscelino Kubitschek, a ciência e arte de Oscar Niemeyer e de Lúcio Costa. E o trabalho de 60 mil candangos. A decisão de JK é depositária de um itinerário longo que remonta a José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência – este, aliás, deu o nome à Capital muito antes de ela nascer. Advém da Proclamação da República, da Revolução de 1930. Brasília é filha do “nacional-desenvolvimentismo”, simboliza o triunfo de um projeto nacional que teve de vencer um campo político retrógrado que amarrava o país ao atraso da República Velha.

JK teve coragem política para enfrentar as barricadas da oposição e a virulenta campanha da mídia carioca então influente sobre a opinião pública nacional. Apelaram para tudo. Alardeavam que o lago artificial jamais encheria; o solo era imprestável; e até fantasias de que “os próprios pássaros evitavam a região”. A UDN bombardeava a Novocap, empresa responsável pela administração das obras, com denúncias de corrupção. Qualquer semelhança com os acontecimentos dos dias de hoje não é mera coincidência.

Andre Malraux, ministro da Cultura da França, disse em 1961, em visita à cidade, que as colunas do Palácio Alvorada, do Planalto, “são o elemento arquitetônico mais importante desde as colunas gregas”. Em 1987, a Unesco declara Brasília Patrimônio da Humanidade. A primeira cidade moderna a obter esse reconhecimento. Uma arquitetura na qual não há nada de luxo nem suntuosidade, se impõe por uma substantiva e imperativa beleza. No concreto sulca curvas delicadas.

Mas, como indaga um poema de Brecht, “Quem carregou as pedras?…” Vinícius de Moraes responde. “Foi necessário muito mais que engenho, tenacidade e invenção. (…) Foram necessários 60 mil operários vindos de todos os cantos da imensa pátria, sobretudo do Norte! 60 mil candangos foram necessários para desbastar, cavar, estaquear, cortar, serrar, pregar, soldar (…).” Depois de construir a Capital, os candangos foram viver em distantes margens do Plano Piloto. E de lá para cá não cessam de chegar. Hoje vivem aos milhões nas cidades satélites e nos municípios do Entorno.

Brasília nasce no berço da democracia para logo após sua fundação tornar-se “o quartel general” da ditadura militar que imperou por 21 anos. Neste longo período ditatorial – e mesmo depois como nos anos 1990 da era FHC – o povo em suas marchas e lutas sempre foi recebido com bombas, cães e cassetetes. É uma cidade, portanto, afeita não apenas a solenidades e debates, é um cenário constante de batalhas. Hoje, festeja seu cinquentenário com seu povo e os partidos democráticos lutando para “limpar” suas instituições infestadas por partidos e políticos indignos do que ela representa. Mas, isso passará. Novamente, os candangos e homens de arte e ciência saberão renová-la.

Quis a luta do povo que Brasília festejasse seus 50 anos com um “candango”, metalúrgico do ABC paulista, migrante nordestino, morando no Palácio da Alvorada, e governando a República do Palácio do Planalto. E o Brasil reencontra-se com o desenvolvimento que fez surgir Brasília.

E se o país continuar no caminho aberto pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, aprofundando e avançando seu processo de mudanças, a Capital estará menos distante do sonho de Oscar Niemeyer: “Espero que Brasília seja uma cidade de homens felizes: homens que sintam a vida em toda sua plenitude, em toda sua fragilidade; homens que compreendam o valor das coisas simples e puras, um gesto, uma palavra de afeto e solidariedade”.

Adalberto Monteiro
Editor