Os tempos sombrios da ditadura militar brasileira encontram, finalmente, seu romancista. Outros textos ficcionais já haviam feito referência ao período, mas sem dúvida o livro de Paulo Martins nos oferece a mais ampla e contundente visão da época. E de uma forma surpreendente: contando uma história de amor. Sim, a atmosfera era sufocante, o País governado pela estupidez, a ignorância, a corrupção (a CIA e outras organizações compareceram com milhões de dólares, tendo à frente o embaixador norte-americano Lincoln Gordon), a extrema violência das prisões, torturas, assassinatos, “desaparecimentos”, até o fuzilamento de prisioneiros no Araguaia, quando as forças armadas brasileiras mostraram que continuavam as mesmas que degolaram friamente os sertanejos aprisionados em Canudos.

Carlos Drummond de Andrade escreveu, em “Campo de flores”, estes versos admiráveis: “Onde não há jardim, as flores nascem de um/secreto investimento em formas improváveis.” Foi do que me lembrei ao ler Glória partida ao meio, uma história de amor em meio adverso. Um “secreto investimento” que, apesar de todos os horrores, floresceu, fez com que Ricardo, o militante clandestino, e Florence, a bela francesa de espírito aventureiro, pudessem se iluminar sob o reinado das trevas.

Trevas que vão se adensando. A repressão aumenta. Os companheiros de Ricardo vão sendo presos, torturados, metralhados. Alguns se afastam, já sem esperanças. Ricardo escapa por pouco, mais de uma vez. Por amor, tentando reencontrar a amada, de quem se perdera por mudanças de endereço e obrigações da militância, arrisca-se temerariamente. Embora dedicado à sua causa, cumprindo com rigor suas tarefas, Ricardo é um homem que se debate em dúvidas. Mas, mesmo sabendo que tudo pode dar em nada, que ele mesmo corre o risco ser preso – ou morto – a qualquer momento, não pensa em abrir mão de seus ideais. Nem do direito de amar. Amar em tempo de guerra. Porque é mesmo numa guerra que eles vivem. Uma guerra suja, movida por espiões, delatores, sequestradores, torturadores, assassinos. E tudo sob a esmagadora indiferença de um povo tradicionalmente submisso, conformista.

O autor, Paulo Martins, que por muitos anos viveu na clandestinidade, tendo sofrido também prisões e torturas, pôs no livro muito de sua própria experiência, mas não escreveu uma autobiografia: escreveu um romance. De um tempo de medo e ódio, conseguiu (do que só um escritor de verdade seria capaz) extrair uma história de amor. Contada por um personagem de carne e sangue, pleno de reflexões e sentimentos. Não um homem de papel, como tantos da literatura inferior (sem imaginação, sem lirismo, em especial um certo “realismo” do politicamente correto) que atulha as livrarias. Ser humano como todos nós, feito de fraquezas e forças. Mas, quando tudo parece desabar, quando a felicidade fica impossível, quando a fraqueza parece ocupar todos os espaços, o espírito não perde seu rumo. É o que dizem as linhas finais: “O trem já marchava a toda velocidade, num balanço cadenciado. E quando as últimas luzes desapareceram, e até a mirrada luz do vagão se apagou, vi que não havia mais cidade. Então, puxei a cortina e fechei os olhos. Não tinha outra alternativa imediata, senão entrar de novo no pesadelo.”

Sim, voltar ao pesadelo, à luta, apesar dos pesares. Final que, na verdade, não é um final. A história continua. E o que foi contado prossegue se contando, pois agora está num livro que, sem dúvida, por todas as sua inúmeras qualidades, permanecerá vivo com seus horrores e, sobretudo, seus sonhos de justiça e de amor. Um belo romance.