Quando o Brasil, após 15 anos de hegemonia neoliberal, volta a colocar o desenvolvimento como centro das orientações de governo, vale a pena voltar os olhos para esse debate um tanto esquecido.O Ipea está lançando dois livros sobre um dos debates fundamentais da História brasileira. São eles Desenvolvimento, o debate pioneiro de 1944-1945, com ensaios e comentários de Aloísio Teixeira, Gilberto Maringoni e Denise Gentil e A controvérsia do planejamento na economia brasileira, de Roberto Simonsen e Eugenio Gudin. Este último estava esgotado, após duas edições do próprio Ipea, no final dos anos 1970.
Os volumes dão conta da troca de idéias acontecida na Comissão de Planejamento Econômico no final do primeiro governo de Getulio Vargas (1930-1945). De um lado estava o industrial Simonsen (1889-1948) e de outro o liberal Gudin (1886-1986). O órgão, criado em 1944, era vinculado ao Conselho de Segurança Nacional. Na pauta, estava a necessidade ou não da intervenção estatal na economia, tema recorrente na agenda nacional, desde então. Os livros estão disponíveis na livraria do Ipea e também podem ser baixados na página do instituto.
Quando o Brasil, após 15 anos de hegemonia neoliberal (1990-2005), volta a colocar o desenvolvimento como centro das orientações de governo, vale a pena voltar os olhos para esse debate um tanto esquecido.
Concentração de crises
Durante um ano, os dois personagens trocaram idéias e farpas em quatro longos documentos escritos em uma conjuntura nacional e internacional extremamente particular. O mundo emergia de dois conflitos internacionais devastadores, que devastaram a economia de praticamente todos os países europeus. Um saldo de cerca de 30 milhões de mortos e dezenas de milhões de feridos e desterrados em inúmeros países pode ser aferido após a I e a II Guerra Mundial (1914-1918 e 1939-1945). Entre os conflitos, uma quebra econômica no centro do sistema capitalista, em 1929, redefiniu o papel dos Estados na condução da economia. Uma nova geopolítica emergia de tudo isso: a supremacia absoluta dos Estados Unidos no mundo e a construção viável de uma alternativa socialista. O Brasil , por sua vez, vivia seu segundo ciclo industrializante, centrado na decidida ação do Estado.
A expressão interna desses embates geraria disputas nos movimentos sociais, na esfera política e na construção de projetos de país.
Os debatedores eram personalidades de destaque na vida nacional. Roberto Simonsen foi o mais destacado intelectual orgânico da burguesia industrial brasileira. Vitorioso como homem de indústria, dono de mais de duas dezenas de empresa, foi presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e fundador e professor da Escola Livre de Sociologia e Política. Simonsen dedicou sua maturidade intelectual ao estudo do protecionismo e da industrialização como passaporte para o desenvolvimento. Conservador na política, apoiou, como senador, uma das medidas mais antidemocráticas do governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1950), a cassação do registro do PCB (Partido Comunista Brasileiro). É autor do clássico História econômica do Brasil.
Gudin, por sua vez, foi um autodidata, autor de um dos livros-texto mais utilizados nos cursos de economia brasileiros entre os anos 1940 e 1980, Princípios de economia monetária, lançado em 1943. Apesar disso, tratava-se de um teórico superficial, com parcos conhecimentos de História. Talvez por esse motivo, partisse não raro para ataques pessoais contra seus oponentes. Articulador e formulador do golpe de 1964, Eugenio Gudin só é levado a sério pela direita brasileira, que vê nele um modelo a ser seguido.
Intervenção ou não
O debate – constituído por dois longos textos de cada autor – tornou-se exemplar de duas vertentes econômicas, a desenvolvimentista e a liberal. Simonsen defendia a intervenção, o planejamento e o subsídio estatal para a indústria. Gudin abjurava tais propósitos e afirmava ser uma pretensa vocação agrícola a melhor senda para o desenvolvimento nacional. O Estado deveria apenas auxiliar a iniciativa privada quando esta necessitasse. Nada de planos, o mercado definiria tudo.
Nenhuma das posições em debate incorporava demandas sociais que se colocavam no país desde o final do século XIX, como uma melhor distribuição dos frutos da expansão econômica. No entanto, a perspectiva de Simonsen abria caminho para uma mudança na inserção internacional do país e para a incorporação de milhões de trabalhadores na esfera produtiva. Se é verdade que o Brasil cresceu aceleradamente como poucos países do mundo, entre 1930 e 1980, deve-se atentar que este crescimento só foi possível com políticas de arrocho salarial e de concentração de renda, que geraram distorções sociais e regionais graves. Hoje, uma proposta desenvolvimentista só pode ser viável para a maioria da população se ela incorporar medidas distributivistas, que penalize a concentração de renda e de propriedade.
Celso Furtado (1920-2004), o mais radical e talentoso reformista burguês do Brasil, diferenciava desenvolvimento de crescimento. Em entrevista, pouco antes de morrer, ele assim definia a questão: “O crescimento econômico, tal qual o conhecemos, vem se fundando na preservação dos privilégios das elites que satisfazem seu afã de modernização; já o desenvolvimento se caracteriza pelo seu projeto social subjacente. Dispor de recursos para investir está longe de ser condição suficiente para preparar um melhor futuro para a massa da população. Mas quando o projeto social prioriza a efetiva melhoria das condições de vida dessa população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento”.
Vale a pena conhecer o debate dos anos 1940 e as afirmações de Celso Furtado para se formular modelos de desenvolvimento para o Brasil.
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Fonte: Carta Maior