O ministro Ubiratan Aguiar, por exemplo, foi vereador na cidade Fortaleza, durante a ditadura militar, com fortes ligações com o regime. Outro ministro, Valmir Campelo, ocupou cargos no Distrito Federal delegados pelo esquema de poder dos militares. O ministro Benjamin Zymler graduou-se em engenharia pelo Instituto Militar de Engenharia do Exército. José Jorge também tem em seu currículo a passagem por cargos em Pernambuco igualmente ligados à estrutura da ditadura. José Múcio Monteiro Filho, também de Pernambuco, tem uma conhecida trajetória política ligada aos militares golpistas. E Augusto Nardes foi um prócere do esquema político comandado pela Arena e o PDS — sustentáculos do regime militar — no Estado do Rio Grande do Sul.

São fatos que explicam a opção do TCU pelo ataque aos benefícios concedidos pela Comissão de Anistia. Eles compõem o curso de uma história marcada pelo acirrado conflito entre duas concepções histórias, acentuado com o golpe de 1964. A natureza dos crimes cometidos pelos golpistas está impregnada na concepção dos que se apóiam na defesa do latifúndio e na restrição à democracia para erguer barricadas contra o avanço social do país. O Brasil já havia passado por quarteladas — como a derrubada do governo de Getúlio Vargas em 1945, a tentativa de impedir as posses de Juscelino Kubitschek e João Goulart.

No documento O Golpe de 1964 e seus Ensinamentos, redigido logo após a derrubada do presidente João Goulart, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) avaliou que o ocorrido era resultado dos avanços de um projeto estratégico conservador. Para combatê-lo, era necessário pôr em prática outro projeto estratégico: a União dos Brasileiros para Livrar o País da Crise, da Ditadura e da Ameaça Neocolonialista, título de outro documento dos comunistas. "Perigo sem precedente paira sobre o Brasil, sujeito a viver longo tempo sob o regime ditatorial, a ter seu desenvolvimento interrompido e a perder suas características de nação independente", disse o PCdoB.

Peças no tabuleiro

A disposição das peças no tabuleiro do Brasil de hoje tem como referência o fio condutor da nossa história e sua acentuada inflexão em 1964. Uma análise mais profunda mostra que a elite brasileira nunca teve um projeto honesto de desenvolver o país tendo como norte o interesse nacional. Ela desgosta de um projeto desenvolvimentista e distributivo porque isso significaria alargar o clube de proprietários e, em sua concepção, isso não iria multiplicar a riqueza mas dividir a já existente.

Por nunca ter apresentado um projeto de nação ao país, a elite brasileira não deixou outra alternativa às forças que estão na margem oposta desse processo histórico senão combates acirrados. Tivemos, entre tantos outros exemplos, Zumbi dos Palmares, João Cândido, os tenentes e a Guerrilha do Araguaia. Em escassos períodos de nossa história, tivemos governos com programas e esforços em torno de um projeto para o país, com metas para um desenvolvimento. Na ditadura, os governos geriram o país de forma a criar contendores com valores, idéias e metas radicalmente opostas.

O combate histórico ao poder ditatorial — em especial à ditadura militar — temperou as forças democráticas e progressistas. No entanto, pouca coisa mudou na essência do modo como a elite e o povo se vêem e se relacionam. É fácil compreender essa imutabilidade se percebermos que há apenas pouco mais de 26 anos o Brasil rompeu com a mais aguda inflexão desse pendor autoritário da elite brasileira no período republicano. Mas o idéia conservador permanece ativo.

Sentido dos protestos

Vejamos, por exemplo, o ponto de vista de FHC sobre os conflitos ocorridos durante a ditadura militar, exposto em 1995 durante a cerimônia de assinatura da lei que reconheceu a morte de desaparecidos políticos. "Culpado foi o Estado, por permitir a morte na tortura em suas dependências. Culpados foram as tendências fundamentalistas que, ao invés de reconhecer diferenças e procurar convergências, insistiram no maniqueísmo", discursou ele.

FHC só não explicou como era possível fazer tudo isso à frente de tropas, fuzis e canhões. "Conclamo a nação a virar esta página da história e olhar o futuro com a convicção de que episódios semelhantes nunca mais se repetirão", disse o então presidente. Como se sabe, as bandeiras que mobilizaram a resistência democrática à ditadura militar são atuais. Portanto, essa não é uma página que pode ser virada ao sabor dos interesses dos conservadores. Quanto a não repetir esses "episódios", isso não depende de governos como foram os de FHC. Depende da luta militante para que as liberdades democráticas conquistadas avancem no sentido de mudanças profundas na estrutura social brasileira.

Esse é o sentido dos protestos que se ergueram contra as decisões que limitam ou suspende as indenizações concedidas pela Comissão de Anistia. O jurista Dalmo de Abreu Dallari, por exemplo, disse, em artigo recentemente publicado pelo Observatório da Imprensa, que a “identificação do Judiciário com a Justiça, que não é feita somente por leigos, sendo comum também na linguagem dos especialistas da área jurídica, corresponde a uma idealização do papel do Poder Judiciário, que é desejável, mas, infelizmente, muitas vezes não se confirma na prática”.

Tentativas obscurantistas

Ele comentava a decisão do juiz José Carlos Zebulum, da 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que concedeu limiar suspendendo o pagamento de indenizações aos camponeses vítimas do terrorismo de Estado durante a Guerrilha do Araguaia — acatando proposta do obscuro deputado estadual carioca Flávio Bolsonaro, eleito pelo PP, defensor confesso das atrocidades praticadas pela ditadura militar. “Obviamente, o juiz, que decidiu rapidamente, não teve tempo para examinar com a necessária atenção a fundamentação legal do pedido, desprezando o pressuposto de que as indenizações foram concedidas mediante processos regulares em que constam todos os fundamentos de fato e de direito”, observa Dallari.

Já o presidente nacional do PCdoB, Renato Rabelo, classificou como “um escárnio” a decisão do TCU. Ele repudiou as “tentativas obscurantistas da direita” e esclareceu que a luta de ontem tem ligações com a luta de hoje. “Não podemos permitir tentativas obscurantistas como essas e o PCdoB lutará contra elas”, acrescentou. Renato Rabelo também lembrou a “outra tentativa reacionária”, da Justiça do Rio de Janeiro, que suspendeu o pagamento das reparações aprovadas pela Comissão de Anistia aos camponeses do Araguaia.

Outra voz que se levantou contra os abusos obscurantistas foi a do deputado Chico Lopes (PCdoB-CE). Ele discursou na Câmara dos Deputados e disse que TCU precisa ter “a humildade de reconhecer que esse não é o seu papel, porque não há um fato gerador para arbitrar o que o ex-preso político pode receber ou não.” “Expresso minha concordância e me solidarizo com o presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, senhor Paulo Abrão, que tem feito um trabalho bom e equilibrado sobre a anistia no tocante a indenizações”, enfatizou.

Inversão de valores

O deputado ironizou a decisão do TCU, indagando como ele pretendia arbitrar o percentual que um anistiado deve receber; “Será pelas horas de tortura? Será pelas perseguições? Será pela perda de emprego?” Segundo Lopes, o TCU pode entender muito de contabilidade pública e de leis. Mas não de política. “Portanto, não cabe, de maneira alguma, essa interferência na defesa dos pagamentos porque não é da competência do Tribunal. A competência do Tribunal é auditorar, multar aqueles que utilizaram dinheiro público de maneira irregular”, disse ele.

Paulo Abrão também fez uma dura crítica ao TCU. Ele explicou que a alegação de rever as indenizações "demonstra a total inversão de valores existentes atualmente no cumprimento da agenda da transição democrática no Brasil.” “Qual será o verdadeiro custo da ditadura militar?”, indagou. O presidente da Comissão de Anistia deu uma aula sobre o assunto, detalhando que o valor das indenizações é estabelecido pela Constituição — obedecendo critérios como os prejuízos decorrentes do afastamento arbitrário do emprego ou outros meios de sobrevivência.

As indenizações também são alvo do PSDB no Congresso Nacional. O ex-senador Expedito Júnior (PSDB-RO) é autor de um projeto que propõe, entre outras mudanças, a dedução dos valores relativos aos danos materiais causados às vítimas da ditadura. Para o senador Inácio Arruda (PCdoB-CE), a proposta é golpista. “A esquerda faz oposição e a direita dá golpe”, disse. “Eu considero que matéria não terá guarida, mas como seguro morreu de velho, temos que estar atento para não sermos surpreendido”, observou.

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Leia íntegra da nota da Comissão de Anistia contra a decisão do TCU

Nota da Comissão de Anistia detalha posição contra TCU

Após a realização de coletiva de imprensa com o presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abrão Pires Junior nesta quinta-feira (12), o órgão emitiu nota em que detalha sua posição a respeito da decisão do Tribunal de Contas da União de rever as anistias concedidas às vítimas do regime militar. “A Comissão de Anistia manifesta preocupação no sentido de que a decisão do TCU incorra em um equívoco jurídico, político e um retrocesso histórico”, diz o documento a seguir.
Nota de opinião da comissão de anistia sobre a decisão do TCU em rever as anistias às vítimas do regime militar

A Comissão de Anistia tomou conhecimento, por meio da imprensa, de decisão do TCU que acolheu solicitação do procurador Marinus Marsico para que todas as indenizações concedidas como prestações continuadas sejam reapreciadas pelo Tribunal, com fulcro em suposto caráter previdenciário das mesmas e em possíveis ilegalidades.

Como contribuição ao debate democrático junto à sociedade e às instituições públicas brasileiras, a Comissão de Anistia manifesta preocupação no sentido de que a decisão do TCU incorra em um equívoco jurídico, político e um retrocesso histórico.

1. Do ponto de vista jurídico importam dois registros.

O primeiro o de que, para tentar comprovar a possível existência de “ilegalidades” nas indenizações utilizaram-se de 3 casos emblemáticos: Carlos Lamarca, Ziraldo Alves Pinto e Sérgio Jaguaribe.

Ocorre que a decisão não abrangeu informações fundamentais. No caso do Coronel Carlos Lamarca, assassinado na Bahia, faltou a informação de que o direito devido à sua viúva é objeto de decisão da Justiça Federal meramente atualizada pelo Ministério da Justiça. Faltou registrar também que recentemente a Justiça Federal do Rio de Janeiro confirmou a correição da decisão da Comissão de Anistia no caso do jornalista perseguido Ziraldo e que possui situação idêntica a de Jaguar. Estaria a Justiça Federal cometendo ilegalidades?

Nos três casos, os critérios indenizatórios estão previstos na Constituição e na lei 10.559/2002. Vale ressaltar que o artigo 8º do ADCT prevê que a anistia é concedida “asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo”.

A segunda impropriedade reside em possível exorbitância das competências do TCU, que abrangem a apreciação da: “III – legalidade dos atos de admissão de pessoal e de concessão de aposentadorias, reformas e pensões civis e militares” nos termos do art. 71 da Constituição.
Ocorre que a lei 10.559/2002, criada por proposição do governo Fernando Henrique e aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional, em seu art. 1º, criou o específico “regime jurídico do anistiado político”, compreendendo como direito: “II – reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única ou em prestação mensal, permanente e continuada, asseguradas a readmissão ou a promoção na inatividade, nas condições estabelecidas no caput e nos §§ 1o e 5o do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;”. Ainda, o artigo 9º, caracteriza de forma inequívoca a reparação como parcela indenizatória, destacando que “Os valores pagos por anistia não poderão ser objeto de contribuição ao INSS, a caixas de assistência ou fundos de pensão ou previdência, nem objeto de ressarcimento por estes de suas responsabilidades estatutárias”. Avançando ainda mais, a lei prevê, em seu parágrafo único que “os valores pagos a título de indenização a anistiados políticos são isentos do Imposto de Renda”.

Se a equiparação entre a indenização reparatória e a previdência social fosse o objetivo da Lei n.º 10.559, não teria ela em seu artigo 1º estabelecido de forma expressa o referido “regime do anistiado político” em oposição aos regimes especiais da previdência já existentes à época. Justamente o oposto: o 9º artigo da lei determina que todos os benefícios decorrentes de anistia sob tutela previdenciária do INSS sejam convertidos para a modalidade indenizatória e pagos pelos Ministérios do Planejamento e da Defesa: “O pagamento de aposentadoria ou pensão excepcional relativa aos já anistiados políticos, que vem sendo efetuado pelo INSS e demais entidades públicas, bem como por empresas, mediante convênio com o referido instituto, será mantido, sem solução de continuidade, até a sua substituição pelo regime de prestação mensal, permanente e continuada, instituído por esta Lei”.

Assim, questão basilar no direito brasileiro, os direitos indenizatórios não se confundem com os direitos previdenciários. A tentativa de igualar as prestações mensais a um benefício de natureza previdenciária é um exercício imaginativo forçado, cujo resultado inadequado seria uma assimetria entre as reparações de prestação única e as reparações de prestação mensal.

Conforme a decisão, os perseguidos políticos que recebem reparação em prestação única seriam “indenizados” e os que recebem prestação mensal seriam titulares de “beneficio previdenciário”. A lei brasileira não estabelece esta distinção, ao contrário, dispõe que ambas as reparações são resultantes do mesmo fato gerador, são reguladas pelos mesmos requisitos, com regime jurídico próprio e, óbvio, sob o teto de uma mesma lei.

Neste sentido, estabelecer uma analogia entre a indenização em prestação mensal e a previdência social seria francamente exorbitante e ilegal, pois que procura, por meio do controle de contas, redefinir a natureza jurídica do regime do anistiado político, previsto na Constituição e regulamentado na Lei n.º 10.559/2002.

2. Do ponto de vista político

O temerário gesto do TCU ao se “autoconceder” uma competência explicitamente inexistente na Constituição pode enfraquecer a própria democracia. Incorre em erro a idéia difundida de que “[…] quem paga não foi quem oprimiu. É o contribuinte. Não é o Estado quem paga essas indenizações. É a sociedade.”, expressa recentemente pelo patrocinador da causa. Todo o direito internacional e as diretivas da ONU são basilares em afirmar que é dever de Estado, e não de governos, a reparação a danos produzidos por ditaduras. O dever de reparação é obrigação jurídica irrenunciável em um Estado de Direito. Mais ainda: o sistema jurídico nacional reconheceu esta responsabilidade nas Leis n.º 9.140/1995 e n.º 10.559/2002 e o Supremo Tribunal Federal definiu de forma claríssima que tais reparações fundamentam-se na “responsabilidade extraordinária do Estado” absorvida dos agentes públicos que agiram em seu nome (ADI 2.639/2006, Relator Min. Nelson Jobim).

Deste modo, os critérios de indenização foram fixados pela Constituição de 1988 e pela Lei 10.559/2002 e qualquer alteração nestes critérios cabe somente ao poder Legislativo ou ao poder constituinte reformador, e não a órgãos de fiscalização e controle.

3. Do ponto de vista histórico tem-se que a anistia é um ato político onde reparação, verdade e justiça são indissociáveis. O dado objetivo é que no Brasil o processo de reparação tem sido o eixo estruturante da agenda ainda pendente da transição política. O processo de reparação tem possibilitado a revelação da verdade histórica, o acesso aos documentos e testemunhos dos perseguidos políticos e a realização dos debates públicos sobre o tema.

O Estado brasileiro demorou em promover o dever de reparação. Os valores retroativos devidos aos perseguidos políticos somente são altos em razão da mora do próprio Estado em regulamentar as indenizações devidas desde 1988. O somatório da inafastável dívida regressa é proporcionalmente igual à demora no processo de reparação. Questionar as “altas indenizações” tomando por base os valores dos retroativos, e não das prestações mensais em si importa em distorção dos fatos e do direito. Como a Constituição determina, os efeitos financeiros iniciam-se em outubro de 1988, o cálculo de retroativos que conduz aos altos valores é simplesmente aritmético, aplicada a prescrição qüinqüenal das dívidas do Estado. Não há, neste sentido, qualquer juízo administrativo sobre esse valor que possa ser corrigido sem flagrante desrespeito à Constituição.

Nas agendas das transições políticas, as Comissões de Reparação cumprem um duplo papel: juridicamente sanam um dano e, politicamente, fortalecem a democracia, restabelecendo o Estado de Direito e recuperando a confiança cívica das vítimas no Estado que antes as violou. É por esta razão que legislações especiais, como a Lei n.º 10.559, criam processos diferenciados para a concessão de reparações, com simplificação das provas (muitas vezes, como no caso brasileiro, parcialmente destruídas pelo próprio Estado) e critérios diferenciados de indenização (que não a verificação do dano moral e material). São órgãos públicos específicos para promover um amplo processo de oitiva das vítimas, registrar seus depoimentos, processar as suas dores e traumas, em um ambiente de resgate da confiança pública da cidadania violada com o Estado perpetrador das violações aos direitos humanos.

Após 10 anos de lenta e gradual indenização às vítimas, o anúncio público por parte do Estado brasileiro de revisar as impagáveis compensações decorrentes do “custo ditadura”, ou seja, dos desmandos cometidos pelo Estado nos períodos ditatoriais – como torturas, prisões, clandestinidades, exílios, banimentos, demissões arbitrárias, expurgos escolares, cassações de mandatos políticos, monitoramentos ilegais, aposentadorias compulsórias, cassações de remunerações, punições administrativas, indiciamentos em processos administrativos ou judiciais – pode implicar em quebra do processo gradativo de reconciliação nacional e de resgate da confiança pública daqueles que viram o seu próprio Estado agir para destruir seus projetos de vida.

Tantos anos depois, torna-se inoportuno e injustificável para as vítimas, o Estado valer-se da criação de procedimentos de revisão diferentes daqueles inicialmente estipulados, estabelecendo uma instância revisora com um controle diferenciado, impondo ao perseguido político mais uma etapa para a obtenção de direito devido desde 1988, ampliando a flagrante violação ínsita na morosidade do Estado em cumprir com seu dever de reparar.

É importante destacar que a Comissão de Anistia não se opõe que o TCU promova fiscalização de legalidade concreta. A propósito, o Ministério da Justiça já observou algumas destas recomendações em outras oportunidades. O que não se pode concordar, neste momento é com o fato de que a Corte de Contas abandone seu papel de fiscal de contas arvorando-se verdadeiramente em nova instância decisória para a concessão dos direitos reparatórios. O sentido das Comissões de Reparação é o de estabelecer um procedimento mais simples, célere e homogêneo que o procedimento judicial, como forma de garantir a restituição dos direitos às vítimas ainda em vida ou aos seus familiares. Não guarda qualquer relação com este objetivo remeter ao TCU o trabalho arduamente realizado por 7 diferentes Ministros da Justiça ao longo de 10 anos.

A inclusão de um procedimento revisor nos dias de hoje pode abalar a confiança cívica que as vítimas depositaram no Estado democrático e a própria reparação moral consubstanciada no pedido oficial de desculpas a ele ofertado pelo Estado, prejudicando o processo de reconciliação nacional.

Trata-se de um grave retrocesso na agenda da transição política e da consolidação dos Direitos Humanos no Brasil. Em outros países que enfrentaram regimes de exceção a agenda nacional move-se no sentido de avançar, com o Chile abrindo a integralidade dos arquivos disponíveis, a Espanha retirando estátuas e denominações de espaços públicos alusivas à ditadura de Franco, a Argentina condenando torturadores, e todos os países (desde o fatídico episódio nazista na Alemanha) estabelecendo programas de reparação às vítimas e depurando do serviço públicos aqueles que promoveram violações graves aos direitos humanos. Esta decisão no Brasil orienta-se no sentido oposto: recoloca sob o plano da incerteza e da insegurança as reparações destinadas às vítimas ao invés de lançar-se sobre a investigação dos perpetradores.

É imperativo avançar com a localização e abertura dos arquivos das Forças Armadas; com a proteção judicial das vítimas, com uma reforma ampla dos órgãos de segurança; com a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos entre outras tantas medidas já dadas pelo exemplo dos países que viveram experiências similares à nossa e pelo que está disposto nos tratados internacionais sobre a matéria. Caberia agora ao Brasil debruçar-se sobre os arquivos das vítimas, não para querer rever os critérios criados pelo legislador democrático diante do incomensurável custo-ditadura, mas sim para encontrar-se com os milhares de relatos das atrocidades impostas aos anônimos que os meios de comunicação ainda não se interessaram em propalar.

Por fim, a Comissão de Anistia reconhece a legitimidade do TCU para o controle de contas pontual e concreto, mas opõe-se ao extrapolamento ora em curso que pretende identificar o regime indenizatório com o regime previdenciário e proclamar uma nova instância revisora de todas as indenizações mensais. A Comissão de Anistia ainda reconhece todas as demais formas de controle da Administração Pública a que está submetida, como as esferas de controle interno e o próprio Ministério Público Federal.

Se há algum ponto positivo a ser extraído da decisão de ontem no caso desta ser mantida por instâncias recursais superiores, trata-se da possibilidade reaberta para que o Estado, uma vez mais, possa através de um órgão público dar publicidade às histórias de violações praticadas durante os anos de exceção no Brasil. Numa eventual reapreciação de todo o conjunto de processos julgados espera-se que o Tribunal de Contas, não transforme um processo de reparação política em processo meramente contábil e saiba ouvir e divulgar os relatos das vítimas, verificando com a devida sensibilidade histórica a legalidade de todas as concessões empreendidas pelo Ministério da Justiça. Somente deste modo a atual medida poderá contribuir para o fortalecimento da democracia e dos direitos humanos.