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    Comunicação

    Vai, João, ser gaúcho na vida

    Ele se apresenta como engenheiro agrônomo especializado em ovinocultura. Mora em um apartamento antigo na região central de Porto Alegre, longe de qualquer badalação. À primeira vista, João Carlos D’ávila Paixão Côrtes parece um típico gaúcho do interior, costeletas grandes emendadas com os cabelos grisalhos. Mas o homem de 83 anos, dono de um vasto […]

    POR: Mauro Graeff Júnior e Dionara Melo

    Ele se apresenta como engenheiro agrônomo especializado em ovinocultura. Mora em um apartamento antigo na região central de Porto Alegre, longe de qualquer badalação. À primeira vista, João Carlos D’ávila Paixão Côrtes parece um típico gaúcho do interior, costeletas grandes emendadas com os cabelos grisalhos. Mas o homem de 83 anos, dono de um vasto bigode branco que cobre o lábio superior, é uma lenda viva para o Rio Grande do Sul.

    Lenda viva não é força de expressão. Côrtes é um dos fundadores do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), criado na década de 50 em um grêmio estudantil e hoje espalhado por mais de 6 mil pontos nos cinco continentes. O movimento deu origem aos CTGs, centros de tradições gaúchas, e uma série de ritos do tradicionalismo dos pampas, como o desfile da Semana Farroupilha. A imagem do folclorista está imortalizada na estátua do Laçador, um dos maiores símbolos do Rio Grande. Para quem não sabe, o monumento do gaúcho pilchado a caráter na entrada de Porto Alegre não é de herói da Revolução Farroupilha. Côrtes serviu de modelo quando tinha 27 anos.

    A estátua de gesso é obra do escultor Antônio Caringi e foi encomendada para representar o Rio Grande do Sul em uma feira comemorativa do IV Centenário de São Paulo em 1954. Quatro anos depois, a peça de 4,45 metros de altura foi fundida em bronze e instalada em uma das entradas da capital gaúcha. O laçador é um gaúcho vestido de bota, bombacha, lenço no pescoço e tirador (espécie de avental de couro que os laçadores prendem à cintura para proteger o corpo do atrito do laço). A praça ao redor virou ponto de comemoração, principalmente futebolística. Não é raro o laçador ser vestido com o vermelho e branco do Internacional ou com o azul, preto e branco do arquirrival Grêmio.

    Radicado em Porto Alegre desde a juventude, Côrtes nasceu em Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai. Apesar do diploma de agrônomo, dedica a vida a pesquisar os costumes do estado. Nos últimos 60 anos, documentou tendências, escreveu livros, transcreveu partituras musicais, fez teatro e cinema e percorreu o mundo a expor as tradições do pampa. “Não fiquei preso ao galpão. A minha preocupação em estudar o antigo (as tradições) me levou à França, Itália, Escócia e Alemanha”, enumera ao relembrar as viagens feitas nas décadas de 50 e 60, época em que fez show no Olympia e no Hotel-de-Ville, além de apresentações em tevês e teatros.

    Atento ao português correto, sonoros “erres” e “esses”, Côrtes conversa pausadamente como se contasse uma história a crianças. Não gosta do estereótipo do gaúcho típico – rude, grosso, que fala errado. É um devorador de livros, consulta sites e está sempre ligado aos compromissos que chegam por e-mail. No ano passado, lançou um blog (paixaocortes.blogspot.com), administrado por seu filho. Anda de bota e bombacha, sim. Mas usa também calça e sapato. Não é de ostentar a pilcha só para mostrar seu gauchismo.

    Suas pesquisas renderam centenas de publicações distribuídas gratuitamente em escolas, secretarias de cultura e entidades ligadas à educação. Para ele, não basta. O octogenário continua a catalogar roupas, cantigas, danças, comidas. Cada novo passo de dança surgido no rincão ou na capital é devidamente registrado em seu acervo. Não gosta do status de ícone. Considera-se apenas um colaborador para que os hábitos e costumes sejam revitalizados. Sobre como se sente por estar imortalizado em uma estátua, é direto: “Não sou de holofotes, me criei no campo. Sou homem simples, só procuro acompanhar a evolução, sem modismos. Reproduzo o que é do povo para o povo”.

    O bibliófilo paulista Waldemar Torres, dono de um dos acervos mais variados sobre modernismo brasileiro, define Côrtes como o inventor do maior movimento regionalista da América Latina. “Ele fez todas as pesquisas como uma monografia, com trabalho de campo e fundamentação teórica.”

    A obra mais recente de Côrtes chama-se Paixão e o Momento, um compêndio com 87 publicações lançado em 2010. O autor agora finaliza um livro de 700 páginas sobre danças gaúchas. Em 2010, o lado escritor (apesar de preferir a alcunha de escrevinhador) ganhou destaque. O folclorista foi escolhido patrono da Feira do Livro de Porto Alegre. Sempre de lenço no pescoço (ao estilo gaúcho), virou celebridade no evento. Sua presença arrastou à feira uma multidão desacostumada ao mundo dos livros. De todos os cantos do estado partiram excursões para vê-lo. “Ele trouxe um público diverso, gente que nunca havia vindo à capital, todas movidas pela figura lendária representada por ele”, conta João Carneiro, presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro, responsável pela organização da feira. “Foram mais de mil fotos”, lembra o pesquisador.

    Gaúcho de bota e bombacha, o ex-ministro e ex-governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra lembra que Côrtes tem um grande valor para a história do estado. “Ele tem um papel muito importante na afirmação da identidade do gaúcho, na expressão de uma história em que se mesclam várias etnias.”

    A contribuição do comunicador, tradicionalista e compositor já foi reconhecida publicamente em outras oportunidades. Em um ranking elaborado pela RBS TV, afiliada da Rede Globo, em 2000, Côrtes figurou entre os 20 gaúchos que marcaram o século XX, ao lado de nomes como Getúlio Vargas, Erico Verissimo, Elis Regina, João Goulart, Lia Luft e Lupicinio Rodrigues.

    Côrtes não gosta de conjugar verbos só no passado. Sobre o seu legado, é lacônico: “Estou em plena atividade. Estou ótimo. A dança é uma forma de exercício. Eu danço, canto e me divirto”. E, a cada dia, reforça sua imagem de lenda no Rio Grande.

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    Fonte: CartaCapital

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