A Folha de S. Paulo do dia 27 de março de 1964, em editorial intitulado "Até quando?", indagou: "Até quando as forças responsáveis deste país, as que encarnam os ideais e os princípios da democracia, assistirão passivamente ao sistemático, obstinado e agora já claramente declarado empenho capitaneado pelo presidente da República de destruir as instituições democráticas?" O jornal O Estado de S. Paulo do dia 14 de março disse: "(…) Depois do que se passou na Praça Cristiano Ottoni (…), após a leitura dos decretos presidenciais que violam a lei, não tem mais sentido falar-se em legalidade democrática, como coisa existente."

No dia anterior, cerca de duzentas mil pessoas participaram do famoso comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, no qual foi anunciado que o presidente acabara de assinar, no Palácio das Laranjeiras, o Decreto da Supra (Superintendência da Política Agrária), que propunha um plano de desapropriação dos latifúndios improdutivos acima de 500 hectares, por interesse social. O presidente mexeu num vespeiro. No dia 19 de março de 1964 — dia de São José, padroeiro da família — mulheres ricas paulistas lideraram a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", incitando o golpe militar. Em nome da família, de Deus e da liberdade o movimento estava defendendo os interesses terrenos dos latifundiários, banqueiros e industriais.

No dia seguinte, o jornal O Globo comentou: "Sirva o acontecimento para mostrar aos que pensam em desviar o Brasil de seu caminho normal, apresentando-lhe soluções contrárias ao ideal democrático e ensejando a tomada do poder pelos comunistas, que o povo brasileiro jamais concordará em perder a liberdade, nem assistirá de braços cruzados aos sacrifícios das instituições."

Diplomacia do governo Goulart irritava Washington

Essa onda começou a se levantar já no governo Jânio Quadros, quando a política externa brasileira não se alinhou ao anticomunismo que os Estados Unidos exportavam para a América Latina — principalmente após a revolução cubana. Quando o presidente condecorou o líder revolucionário "Che" Guevara com a Ordem Cruzeiro do Sul, os protestos direitistas se levantaram com força.

Para o imperialismo norte-americano e seus aliados internos, a simpatia que a revolução cubana despertava nos povos da região era um fato novo que precisava ser combatido antes de maiores conseqüências. Em 1963, a OEA (Organização dos Estados Americanos), que Fidel Castro chamava de "Ministério das Colônias de Washington", aprovou uma resolução, por 14 votos contra um e quatro abstenções, pedindo aos governos maior controle da "subversão comunista no hemisfério".

Em 1962, quando o governo norte-americano acelerou a ofensiva para tentar varrer os movimentos comunistas do continente, as posições diplomáticas do governo Goulart irritavam Washington. Os Estados Unidos organizavam encontros de chanceleres para discutir a situação em Cuba e o Brasil sempre manifestava-se contra as medidas propostas.

Na OEA, o representante brasileiro votou contra a expulsão de Cuba da organização. E os prepostos do imperialismo no Brasil manifestavam sua fúria contra o governo sem meias palavras. A cada lance dessa queda-de-braço, as organizações anticomunistas, amplamente apoiadas pela mídia — o jornal Tribuna de Imprensa, por exemplo, anunciou em manchete que a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade" foi uma "gigantesca passeata anticomunista" —, tornavam-se mais histéricas.

Organizações minúsculas e barulhentas

Organizações minúsculas e barulhentas começaram a brotar como cogumelos depois da chuva — uma tática dos conservadores para divulgar a imagem de que suas idéias expressavam a vontade popular. Outra tática adotada pelos golpistas foi a de organizar as mulheres das classes médias e altas para consolidar a idéia de um movimento em defesa da família, ameaçada pelos comunistas.

Antes, os conservadores criaram uma onda de que o "comunismo" estava às portas do poder com a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros. Os comunistas haviam apoiado Goulart nas campanhas para vice-presidente em 1955 e 1960 e os ministros militares tentaram impedir sua posse. Eles divulgaram um manifesto no qual disseram que no governo do vice de Jânio Quadros as Forças Aramadas seriam "transformadas" em "simples milícias comunistas".

Nessa linha golpista, os jornais carregavam na tinta para agitar febrilmente a bandeira anticomunista. A viagem do presidente à China rendeu manchetes berrantes. Uma simples reunião de trabalhadores era "noticiada" como a "marcha da revolução comunista". Leonel Brizola, que como governador do Estado do Rio Grande do Sul comandou a "cadeia da legalidade" em defesa da posse de Goulart, era um dos alvos preferenciais. No dia 26 de dezembro de 1963, ele atingiu o jornalista David Nasser, da revista O Cruzeiro e ativo conspirador pró-golpe, com dois potentes socos no saguão do aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro.

Maré conservadora convergiu para o golpe

O clima no país estava carregado de golpismo. O dono do jornal Tribuna de Imprensa, Carlos Lacerda, promoveu um ciclo de palestra da escritora Suzane Labin, venenosa anticomunista francesa, que veio ao Brasil lançar seu livro Em Cima da Hora. No dia 28 de de agosto de 1963, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, ela disse: "O ocidente não compreende que o combate que se deve dar aos comunistas é o da organização contra organização, homem por homem, alma por alma, vontade contra vontade. As nossas pátrias estão como um sonâmbulo à beira do precipício."

Essa maré conservadora convergiu para o golpe militar de 1964. O mentor operacional foi o adido militar de Washington no Brasil, general Vernon Walters, ex-oficial de ligação do Exército dos Estados Unidos junto à Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial. Walters era o confidente dos conspiradores militares e encorajou o general Humberto Castelo Branco, chefe do Estado-Maior do Exército que fora seu companheiro de quarto na Itália, a deflagrar o golpe. Uma semana antes da tomada do poder pelos golpistas, o adido militar norte-americano telegrafou a Washington dando os detalhes completos da conjura. Castelo Branco, já como presidente, ofereceu um jantar ao convidado especial Walters.

Doutrina de "segurança" anticomunista

O programa do golpe havia sido elaborado pela Escola Superior de Guerra, com ajuda de técnicos dos Estados Unidos. A doutrina dos golpistas e de seus apoiadores era a de que o Brasil deveria se alinhar incondicionalmente aos norte-americanos na marcha para a Terceira Guerra Mundial. Uma das primeiras medidas adotadas pela ditadura foi a elaboração de uma "doutrina de segurança nacional", baseada em dois conceitos: a divisão do mundo em dois blocos antagônicos e a adesão do Brasil ao "bloco democrático e cristão", sob a direção dos Estados Unidos — dos quais o Brasil deveria considerar-se um satélite privilegiado — para combater o bloco socialista, liderado pela União Soviética.

O Ato Institucional (AI) passou a ser o instrumento para a ditadura "legalizar" suas ações políticas não previstas na legislação e contrárias à Constituição. O AI-1, de 9 de abril de 1964, transferiu o poder aos militares golpistas e suspendeu por dez anos os direitos políticos de centenas de pessoas. Em outubro de 1965, o AI-2 concedeu à Justiça Militar a competência de julgar "crimes contra a segurança nacional".

A estrutura do poder ditatorial foi sendo montada gradativamente, com o Executivo concentrando funções e sob controle do Estado-Maior das Forças Armadas, do Alto Comando das Forças Armadas e do Departamento de Administração da Polícia Civil (este último um organismo de consulta). Foram também criados mais dois órgãos: o Conselho de Segurança Nacional (CSN) e o Serviço Nacional de Informações (SNI). O poder legislativo foi restringido — e, posteriormente, com o AI-5, fechado — e o poder judiciário limitado à função de supervisionar os atos determinados pelo CSN. Todos os suspeitos de atividades contra a "segurança nacional" passaram a ser julgados por tribunais militares.

Combate estratégico no Araguaia

O Brasil já havia passado por quarteladas — como a derrubada do governo de Getúlio Vargas em 1945 e a tentativa de impedir as posses de Juscelino Kubitschek e João Goulart. Mas em 1964 foi levado a cabo um projeto das forças mais reacionárias internas e externas, que vinha sendo gestado desde a criação da Escola Superior de Guerra em 1949, no berço da Guerra Fria.

No documento O Golpe de 1964 e seus Ensinamentos, redigido logo após a derrubada de João Goulart, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) avaliou que o ocorrido era resultado dos avanços de um projeto estratégico. Para combatê-lo, era necessário pôr em prática outro projeto estratégico: a União dos Brasileiros para Livrar o País da Crise, da Ditadura e da Ameaça Neocolonialista, título de outro documento dos comunistas. "Perigo sem precedente paira sobre o Brasil, sujeito a viver longo tempo sob o regime ditatorial, a ter seu desenvolvimento interrompido e a perder suas características de nação independente", disse o PCdoB. "Em tal circunstância, nenhum problema pode sobrepor-se ao objetivo de salvar o país desse perigo."

Numa certa altura, o texto do PCdoB apontou a guerrilha como uma das principais formas de luta contra a ditadura. "A idéia de que é indispensável empunhar armas para libertar o país do atraso e da opressão vem ganhando força", diz o documento. "A luta revolucionária em nosso país assumirá a forma de guerra popular". Essa história terminou com o combate entre militares golpistas e a Guerrilha do Araguaia, na primeira metade da década de 70 — e que, somado a outras ações da resistência democrática, foi fundamental para a derrubada da ditadura.

As forças militares mobilizadas para o combate final no Araguaia foram gigantescas. Os golpistas haviam avaliado a dimensão do movimento guerrilheiro e chegado à conclusão de que ele era resultado de um planejamento estratégico do PCdoB. Houve, no final das contas, um choque entre duas concepções para o país, radicalmente opostas — com a diferença de que uma mobilizou um ideal democrático e outra uma gigantesca máquina de guerra fascista. A história mostrou que o ideal democrático estava com a razão.

A estrutura social brasileira

A maioria dos jovens que viveu intensamente os "anos rebeldes" e amou os Beatles e os Rolling Stones lembra muito bem como foram os anos de chumbo no Brasil. Uns saíram ilesos, outros não. Passados 47 anos do golpe, que lição podemos tirar daquele episódio? Antes tudo, é preciso constatar que a disposição das peças no tabuleiro do Brasil de hoje tem como referência o fio condutor da nossa história e sua acentuada inflexão em 1964. O ponto de partida é o modo como aconteceu a colonização do Brasil. Para resolver o problema da falta de mão-de-obra, os colonizadores foram buscar força de trabalho capturada na África. Depois promoveram a rota de imigração que desembocou nas fazendas de café como trabalho barato.

A chegada dos novos colonos poderia ter sido uma grande esquina na história brasileira. O esforço do governo em manter a ordem estabelecida, no entanto, atendeu à lógica da colonização, garantindo a sobrevivência da estrutura oligárquica erguida pelos latifundiários — os escravos foram substituídos por uma nova modalidade de exploração. Essa tradição foi determinante na formação das relações interclasses no Brasil. Desde as capitanias hereditárias até a década de 1950, o Brasil viveu no campo. E mesmo quem já vivia em cidades dependia grandemente da atividade agrícola.

Foi tempo suficiente para que o sistema oligárquico ganhasse raízes fundas em nossa estrutura social. Ainda hoje o país abriga enormes feudos — e aqui o sentido não é literal, ou seja, não se limita ao campo —, controlados por coronéis e jagunços. A elite brasileira espera de seus subordinados uma reverência que, não raro, causa explosões de revoltas. E, quando elas ocorrem, a estrutura oligárquica as sufoca em sangue — como ocorreu no regime de 1964.

O que aconteceu ali foi o encontro dessa acentuada inflexão do nosso fio condutor histórico com os acirramentos da geopolítica mundial. Uma análise mais profunda mostra que a oligarquia brasileira nunca teve um projeto honesto de desenvolver o país tendo como norte o interesse nacional. Ela desgosta de um projeto desenvolvimentista e distribuitivo porque isso significaria alargar o clube de proprietários e, em sua concepção, isso não iria multiplicar a riqueza mas dividir a já existente.

Por nunca ter apresentado um projeto de nação ao país, a elite brasileira não deixou outra alternativa às forças que estão na margem oposta do processo histórico senão os combates acirrados. Tivemos, entre tantos outros exemplos, Zumbi dos Palmares, João Cândido, os tenentes e a Guerrilha do Araguaia. Os governos, tradicionalmente vinculados ao poder econômico, nunca funcionaram como elemento de equilíbrio nessa dicotomia.

Em escassos períodos de nossa história tivemos governos que levaram a cabo esforços conjuntos em torno de um projeto para o país, com metas para um desenvolvimento integrado. Salvo Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, João Goulart, e, mais recentemente, Luis Inácio Lula da Silva, sempre tivemos presidentes de governos que geriram o país de forma a criar contendores com valores, idéias e metas radicalmente opostas. Governaram de modo a fazer com que o século XIX nunca terminasse por aqui.

O modo de produção baseado na escravidão foi oficialmente abolido, o sistema político passou de monarquia a República e o país trocou o campo pela cidade. A estrutura social básica, no entanto, permaneceu. O que se viu no Brasil foi um aburguesamento das antigas classes enraizadas na colônia. A corte — famílias tradicionais, proprietárias e próximas ao poder — adotou superficialmente o padrão burguês de comportamento de modo a perpetuar o seu domínio político e econômico.

A partir desse raciocínio, não fica difícil entender as dificuldades que um projeto nacional honesto enfrenta para se instalar no país. Por isso, a luz no fim do túnel político de uma idéia de unidade nacional no Brasil sempre foi fraca. Getúlio Vargas e seu projeto de união nacional foram derrubados em 1945. Voltaram em 1950 e o presidente saiu morto do Palácio do Catete — então a sede do governo federal.

Juscelino Kubitschek quase não tomou posse. João Goulart assumiu precariamente e sofreu o golpe que instalou os setores mais reacionários no comando do país. Latifundiários, mídia, líderes políticos direitistas com pendores para o fascismo e clérigos alinhados com as idéias da idade média foram os principais artífices internos do golpe.

Esse quadro evoluiu, no Brasil, para a trama golpista abertamente apoiada pelo imperialismo norte-americano. A longa duração do reinado dos golpistas — um dos mais longos das ditaduras implantadas no contexto da Guerra Fria — se explica também pelo apoio oligárquico interno.

A visão de FHC sobre a ditadura militar

Claro que muitos outros países, incluindo os Estados Unidos, lançaram mão da escravatura como modo de produção após a superação desse sistema em suas formas originais na antiguidade. Só que nenhum deles manteve a escravidão até as barbas do século XX. Nenhum deles também foi dirigido, apesar da modernização trazida pela da Revolução de 1930, pelos interesses de suas oligarquias rurais até depois da Segunda Guerra Mundial.

É certo que o combate histórico ao poder ditatorial — em especial à ditadura militar — temperou as forças democráticas e progressistas. No entanto, pouca coisa mudou na essência do modo como a elite e o povo se vêem e se relacionam. É fácil compreender essa imutabilidade se percebermos que há apenas 27 anos rompemos com a mais aguda inflexão desse pendor autoritário da oligarquia brasileira no período republicano. Esta também se amoldou às mudanças. Ao ideal oligárquico histórico se juntou a nova direita, instrumentalizada pelo capital financeiro.

FHC expôs, em 1995, o seu ponto de vista a respeito da ditadura militar durante a cerimônia de assinatura da lei que reconhece a morte de desaparecidos políticos durante os anos de chumbo. "Culpado foi o Estado, por permitir a morte na tortura em suas dependências. Culpados foram as tendências fundamentalistas que, ao invés de reconhecer diferenças e procurar convergências, insistiram no maniqueísmo", discursou ele. FHC só não explicou como poderia se fazer tudo isso à frente de tropas, fuzis e canhões. "Conclamo a nação a virar esta página da história e olhar o futuro com a convicção de que episódios semelhantes nunca mais se repetirão", disse o então presidente.

Como se sabe, as bandeiras que mobilizaram a resistência democrática à ditadura militar estão aguardando solução. Portanto, essa não é uma página que pode ser virada ao sabor dos interesses da oligarquia. Quanto a não repetir esses "episódios", isso não depende de governos como foram os de FHC. Depende da luta militante para que as liberdades democráticas conquistadas avancem no sentido de mudanças profundas na estrutura social brasileira.

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Editor do Grabois.org