Que político vivo, em qualquer canto do mundo, rivalizaria, em carisma, com o ex-presidente Bill Clinton dos EUA? E, além do carisma, também a fala (sempre substanciosa) e a serena autoridade. Sua Carismidade trouxe todos os seus dons e os depôs aos pés do presidente Barack Obama dos EUA, na Convenção do Partido Democrata em Charlotte, North Carolina. É possível que, sozinho, tenha conseguido a reeleição para Obama.

Mestre Tio Clinton-Bubba-meu-rei conseguiu vender o mais rarefeito ar engarrafado, a mais rarefeita das esperanças: uma promessa não cumprida, cuja alma transmigrou para Obama, que foi ali transmutado e convertido em único canal que poderá levar os eleitores àquela há tanto tempo empalidecida felicidade incompleta perdida dos anos 1990s.

E tudo baseado só em retidão fiscal e ímpeto humanitário; orçamento equilibrado; impostos mais altos para os absurdamente ricos; proteção para uma classe média já quase na lona; preocupação profunda com o suplício dos pobres e excluídos.

E feito, tudo, numa porrada – pegou e rasgou, meticulosamente, em pedacinhos, cada uma das “questões” Republicanas, em detalhes e com precisão quase dolorosa.

Comparem esse golpe e a cadeira vazia, semana passada, que derrotou um envelhecido ícone hollywoodiano – para nem falar do patético, miserável candidato Republicano à presidência. Tudo isso depois que a Primeira Dama Michelle Obama também já jogara o adversário para fora do ring, na véspera. Michelle – para incorporar uma metáfora do futebol latino-EUA – fez un golaço!

Michelle Obama para presidente? Com certeza, Michelle Obama para o presidente dela. Clinton foi todo urgência, exigência. Michelle foi toda sobre o tipo de homem que vive e respira, dentro de complexas decisões políticas.

Comparem isso e o casal Romney. Por mais que seja difícil escapar do explosivo subtexto racial, é caso, mais, da rica realeza norte-americana branca, certa de seus direitos assegurados por Deus versus “os usurpadores” – um casal de negros de combate, que alcançaram o sonho americano, de baixo para cima, porque são talentosos e cheios de pique.

Para citar o interlocutor Cadeira Vazia, “o cara tem de responder, na coragem: e agora, você confiaria em quem?”

Michelle deu uma de Tio Clinton-Bubba-meu-rei –, ao associar direta e profundamente a biografia de Barack narrada por ela às decisões políticas do presidente Obama. Ninguém poderia desejar entonação política mais poderosa. Um exemplo: “Éramos tão jovens, tão apaixonados e tão endividados…” – por causa de um empréstimo para estudar, ainda mais caro que a hipoteca que pagavam para morar. E a linha de ataque: “Por isso Barack tanto lutou para aumentar a ajuda para quem estuda.”

Aprender a esquecer

Contudo, a questão chave que atravessou todos aqueles discursos atentamente construídos e polidos, às vezes muito duros, na convenção dos Democratas – do governador de Massachusetts, Duval Patrick; ao prefeito de San Antonio e nova sensação dos EUA latinos, Julian Castro – foi se os EUA estão hoje em melhor situação do que há quatro anos. Não haveria avaliação positiva possível, se se deixassem prender nesse paletó apertado.

Então, trataram de ampliar o prazo. De Michelle ao Tio Clinton-Bubba-meu-rei, todos afirmaram que o Obama real, o grande centro-avante artilheiro do sonho (restaurado) da classe média dos EUA, só poderá brilhar, ou, no mínimo, só poderá começar a mostrar seus poderes e cumprir tudo que prometeu, se obtiver um segundo mandato.

Fato indiscutível é que Michelle e, sobretudo, Tio Clinton-Bubba-meu-rei, foram suficientemente transcendentes para fazer esquecer, dentre outras coisas, todos os traços da desastrada (para dizer o mínimo) política externa de Obama – da promessa quebrada de fechar Guantanamo, ao frenesi das guerras clandestinas movidas a drones.

Deem uma olhada na plataforma política dos Democratas.[4]

Sob um mar de platitudes, é mais que visível um confronto com a China como possível concorrente. O Oriente Médio é, essencialmente, questão de “inabalável compromisso” com “a segurança de Israel”; e “robusta cooperação no campo da segurança” com as petromonarquias do Conselho de Cooperação do Golfo, aqueles exemplares ímpares de governantes democráticos. O Irã não passa de praticante agressivo de “atividades desestabilizantes”.

Tudo isso, enquanto a secretária de Estado Hillary Clinton chega a Pequim para, mais uma vez, dar lições aos chineses. Como diz, sem piedade, o Global Times:

“Clinton fracassa como secretária de Estado e sonega aos americanos a mais simples lógica: no longo prazo, os EUA serão forçados a cooperar com a China e a competir em pés de igualdade; com o tempo, terão cada vez menos recursos para dominar ou subjugar a China.”[5]

E ainda sem falar que Michelle e Tio Clinton-Bubba-meu-rei também tornaram possível esquecer o mantra de Tio Clinton-Bubba-meu-rei – “é a economia, estúpido!” – de modos que, com certeza, nem a Primeira Dama nem o ex-presidente algum dia previram.

O colapso de Lehman Brothers – o quarto maior banco de investimentos dos EUA – completará quatro anos na semana que vem. Foi a palha que quebrou a espinha do camelo financeiro – desencadeando um desastre global que ainda não acabou. Para lembrar Rimbaud, foi esse “Barco Bêbado”[6] financeiro que engoliu o que foi uma epifania global: a vitória de Obama em 2008.

Sim, as expectativas eram tão imensas que Obama não as poderia ter atendido, nem que aparecesse e se posicionasse, ele mesmo, como a encarnação da Esperança. O tempo passando, Obama parece ter sido reduzido ao papel de simples parafuso da máquina infernal.

Em resumo – apesar dos altos cumes aos quais chegaram Michelle e Tio Clinton-Bubba-meu-rei: Obama nunca será o novo Roosevelt. Não haverá New Deal – dentre outras razões, porque os Republicanos fizeram o impossível para sabotá-lo.

Mesmo assim, Michelle e Tio Clinton-Bubba-meu-rei foram suficientemente brilhantes para levar legiões a esquecer que Obama não atacou Wall Street; o Departamento de Justiça, por exemplo, não processará o Banco Goldman Sachs. Que a desigualdade de renda nos EUA aumenta dia a dia. Que algumas das empresas norte-americanas que mais lucros acumularam pagaram menos de zero em impostos entre 2008 e 2010.[7] Que apenas cinco megabancos grandes-demais-para-quebrar controlam 56% de toda a economia dos EUA. Que a maioria absoluta dos empregos criados durante o governo Obama são de baixos salários.

“O ontem passou… o ontem passou”[8]. Michelle e Tio Clinton-Bubba-meu-rei, pelo menos retoricamente, deram sobrevida ao sonho americano. Mas que equipamento terá Obama – o homem e o presidente, não o mito – para fazer a coisa, mesmo, a coisa real?

[1] Orig. Don’t stop … thinking about tomorrow. É verso de rock de mesmo título, sucesso da banda Fleetwood Mac (ver n. 2). Pode ser ouvido em http://www.youtube.com/watch?v=a8arvEzHsA8 [NTs]

[2] “Fleetwood Mac” é uma banda britânica (do soul ao rock), formado em 1967 [sobre o grupo, ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Fleetwood_Mac (NTs)]

[3] Bubba (ing.) é expressão que designa, familiarmente, o irmão mais velho, pressuposto com autoridade sobre irmãos mais jovens. Não encontramos equivalente em português. Talvez “mano”, mas é carinhoso-afetivo demais, nos vários registros em que ocorre em português. Optamos por “tio” e, para tentar neutralizar o traço (ainda muito afetivo) que há em “tio” nesse registro coloquial, ‘inventamos’ esse “meu rei”, que pode conter alguma ironia, pelo menos em alguns casos, em português do Brasil. É solução tentativa, à espera de ideia melhor [NTs].

[4] Em http://assets.dstatic.org/dnc-platform/2012-National-Platform.pdf

[5] 4/9/2012, Global Times, http://www.globaltimes.cn/content/730902.shtml

[6] Arthur Rimbaud (1854-1891), Le Bateau Ivre (1871). Leem-se os cem versos, na linda tradução de Augusto de Campos para o português do Brasil, em Rimbaud Livre, São Paulo: Perspectiva, Coleção Signos 14, 1986, edição bilíngue, p. 28-35, acessível emhttp://pt.scribd.com/doc/64120106/46771377-CAMPOS-Augusto-Rimbaud-Livre; ouvem-se os versos em http://www.youtube.com/watch?v=jhBHbVTsD20 [NTs].

[7] 11/3/2012, Huffington Post, http://www.globaltimes.cn/content/730902.shtml

[8] Orig. Yesterday’s gone…yesterday’s gone. Versos, também, da banda Fleetwood Mac (ver n. 1). Pode ser ouvido em http://www.youtube.com/watch?v=a8arvEzHsA8 [NTs]

 

Fonte: Asia Times Online

Traduçao: Vila Vudu