Aldo Arantes nunca teve um cargo executivo, o que geralmente conta muito na hora de avaliar a grandeza de um político. Apesar desse detalhe, o ex-deputado federal constituinte — por sinal, o único de Goiás avaliado, àquela época, com nota 10 — está inserido entre os maiores nomes da política goiana por sua história: bem antes de exercer um mandato, o hoje presidente do Partido Co­munista do Brasil (PC do B) em Goiás já tinha uma história que daria um livro.

E assim foi concebido “Alma em Fogo — Memórias de um Militante Político” (Fundação Maurício Grabois e Anita Garibaldi, 489 páginas), um relato das memórias de Aldo Arantes, que foi líder estudantil em Goiás e se tornou presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) durante um crucial período da história brasileira — entre 1961 e 1962, quando Jânio Quadros renunciou e criou-se a Campanha da Legalidade para garantir a posse do vice João Goulart. Depois, em 1962, ajudou a fundar a Ação Popular (AP), que agrupou a esquerda cristã no Brasil, e mais tarde foi incorporada pelo PC do B. Durante o regime militar, Aldo, já comunista e na luta contra a ditadura, foi preso e torturado. Ao contrário de muitos companheiros, teve a sorte de sobreviver para contar a história e até tentar mudá-la, com quatro mandatos eletivos de deputado federal e um de vereador.

Em entrevista exclusiva ao Jornal Opção, Aldo Arantes fala de seu livro, reconta sua trajetória, desde detalhes interessantes de sua infância até a militância atual, em que, apesar de estar fora do Legislativo, mantém agenda política interna e se mostra apoiador convicto dos governos de Lula e Dilma Rousseff. Vítima em primeiro grau da ditadura militar, ele faz defesa ardorosa da Comissão da Verdade. “O Estado era o agente torturador. Então, a Lei da Anistia não pode valer para os torturadores.”

Por que a presidente Dilma Rousseff está nessa crise de popularidade com essa movimentação das ruas? Qual sua interpretação sobre isso?

Acho que Dilma vai voltar a ter uma aprovação alta. E isso já começou. Avalio que o governo Lula significou uma transição profunda, que teve importantes repercussões em todos os setores, como as áreas sociais, mudança de padrão de vida, a questão da empregabilidade, da vida mais decente para o povo, um padrão salarial que se elevou, a cultura que desabrochou, a liberdade democrática, enfim, o nível de organização da sociedade e um conjunto de fatores. Mas onde está o problema nisso tudo? É que essas conquistas, contraditoriamente, geraram novos problemas. Na medida em que o poder de compra da classe média cresceu, mais gente viaja de avião e isso dá problema nos aeroportos; mais gente compra carro, isso dá problema no trânsito. Na medida em que a liberdade se amplia, a sociedade começa a exigir mais. Qual era a exigência maior das ruas? O que o povo exigia? Educação, saúde e transporte de qualidade? O que significa a exigência do povo? Saúde, educação. Significa saúde e educação particular? Não, isso já se tem. O povo está reivindicando saúde, educação e transporte públicos e de qualidade. E isso só é possível com a modificação do Estado brasileiro. Isso significa ampliar o papel do Estado para a sociedade. Hoje não se conseguiu fazer essa tradução ainda. E os que tentam fazer demagogia com isso querem é restringir mais ainda, querem um Estado mínimo, que é a concepção do PSDB. E como vai se resolver a situação? Se não se fizer uma reforma política, que crie novas condições para esse avanço, não tem como dar respostas a essas questões.  O problema está exatamente aqui. Os governos Lula e Dilma não tiveram condições políticas de fazer essa transição, essas reformas estruturais, começando com a reforma política.

Hoje sou secretário nacional da Comissão Nacional de Mobiliza­ção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que está hoje liderando um projeto nacional de iniciativa popular. O problema que a gente detectou é a influência do dinheiro, o financiamento privado, principalmente o de empresas, que representam mais de 95% de todo o financiamento público. O financiamento de pessoas é mínimo. E esse financiamento tem crescido nos últimos anos, o que significa que cada vez mais o poder político está sendo tomado por grupos econômicos, de grandes empresários, fazendeiros etc. e evidentemente que, na medida em que o poder político está constituído por essas forças, eles são impermeáveis a maiores avanços sociais e conquistas democráticas. Daí a presidente Dilma querer fazer um plebiscito, vamos saber o que o povo quer. E o que foi que os setores conservadores disseram? Que o povo não estava preparado para opinar sobre essas coisas. Um absurdo completo. Tanto assim que a OAB contratou uma pesquisa do Ibope, que é impressionante. A exigência do povo, 85%, que quer a reforma política.

O deputado Sandes Júnior (PP) diz que essa reforma política, pelo que ele conhece no Con­gresso, não sai antes de 2014. Quais são as características que a OAB mais considera?

Nós consideramos que têm dois problemas estruturais para uma reforma política democrática. Tem-se uma reforma antidemocrática, que procura limitar a participação da sociedade no poder político, e outra reforma, que procura ampliar. Não é suficiente falar de reforma política, é preciso definir qual. Para nós, a reforma democrática tem dois elementos estruturais: o financiamento de campanha e o sistema eleitoral.  Há a opção de financiamento exclusivo de campanha e o voto em lista. Nós temos de encontrar um caminho que possa combinar o aprofundamento do processo democrático com a cultura política cultural brasileira. Não dá para fazer o choque, senão a sociedade não aceita. Em relação ao financiamento de campanha, nós propomos um financiamento democrático, uma combinação de financiamento público com a possibilidade de financiamento individual, controlado rigorosamente, sobretudo sobre o caixa dois.

Há medidas rigorosas que implicam prisão e perda de mandato. Cha­mamos de “financiamento democrático” por proporcionar maior equilíbrio entre os candidatos, porque hoje a situação é grave. Tem candidato que tem muito dinheiro e outros que não têm nenhum. Esse é o mote para distorcer o processo democrático. E é bom que se diga que o financiamento público seria feito basicamente com recursos orçamentários, de recursos de penalidades relacionadas com a Justiça Eleitoral, que vai ser o grosso dos recursos, pois o privado será pequeno, mas poderá crescer. Mas de qualquer maneira não será o mais significativo, com a ideia de que a contribuição seja individual, de pessoa física e limitada a R$ 700, com rigoroso controle. O outro problema é do sistema eleitoral, até porque não há como fazer um financiamento democrático se o sistema não for alterado. Hoje ele parte do sistema constitucional, que é proporcional, que é o mais avançado, o distrital e distrital misto, se originou do poder feudal, das elites locais. O sistema proporcional vem com um processo de democratização, com a revolução burguesa, vem com a inserção de milhares de pessoas no processo político e que assegura o voto de opinião. Porque o distrital é o voto da elite local. Tem uma declaração do Tancredo Neves que cito no livro, dizendo que o sistema proporcional é o que assegura o voto de opinião, já o sistema majoritário transforma um parlamentar em um “vereador federal”.

O problema do sistema de hoje é o voto proporcional com lista aberta. Uma infinidade de candidatos e a eleição se dando em torno de indivíduos. Constituem-se os comitês eleitorais, que passam a ser pequenos partidos. Ganha quem tem mais dinheiro. O que propomos é o sistema proporcional com lista fechada em dois turnos. O sentido disso é que, no primeiro turno, se privilegie o debate em torno de ideias, um dos graves problemas do sistema político brasileiro é que se faz o debate em torno de indivíduos e acaba ga­nhando aquele que tem mais gra­na. A ideia para avançar a cultura po­lítica e também a composição do poder político é o financiamento democrático e a campanha que se dê em torno de ideias, de projetos. Afinal, o povo reclama que a re­presentação política não está sintonizada com as reivindicações que o povo apresenta. Então, no primeiro turno o eleitor votaria no partido, no programa do partido e em uma lista de candidatos, composta democraticamente por eleições primárias, não por cúpulas de partidos. No segundo turno, eleitor poderia opinar dentro da lista em que ele votaria, podendo alterar a posição dentro da lista. Digamos, pelo consciente eleitoral faz cinco deputados. Então, ele disputaria no segundo turno com os dez primeiros da lista pré-ordenada e caberia ao eleitor quais os cinco que seriam eleitos. Isso induz o militante a levar em conta a lista, mas permite ao eleitor, em última instância, decidir quem daquela lista que deve ser o mais votado.

Essa proposta está sendo acatada amplamente, consideramos que a reforma política transcende interesses de grupos e partidos, é algo que diz respeito ao povo brasileiro e ao avanço democrático, e por isso nos parece que temos de criar um amplo movimento público em torno da reforma. Nas atuais condições, não há possibilidade de aprová-la no Congresso de forma democrática. O máximo que pode haver são algumas medidas de caráter antidemocrático, entre as quais a proibição da coligação proporcional, um absurdo completo, porque é uma opção, o partido faz ou deixa de fazer. Nossa proposta assegura a coligação proporcional, mas impede o uso do tempo de televisão para fazer negociata de partidos que não tem representação. Aí, a coligação se formará em torno de projetos, de ideias e não em torno de negociatas. E isso está tendo uma grande aceitação, vários partidos políticos já estão caminhando nesse sentido e a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil], também. Nossa pretensão é fazer um grande ato público envolvendo a juventude, provavelmente em São Paulo, para desencadear essa campanha nos moldes em que foi a das Diretas e a Constituinte, dar continuidade a um processo popular e de coleta de assinatura dos parlamentares para que eles se comprometam com a aprovação do projeto.

E sobre a sucessão em Goiás, o PC do B  tem uma aliança com o PT, que nas últimas eleições tem se aliado ao PMDB. Para 2014, como está o quadro?

O PC do B cada vez mais ganha espaço na política nacional. Durante algum tempo enfrentou algumas dificuldades em Goiás, mas está crescendo e vai crescer mais. E cresce exatamente pela seriedade com que o partido se conduz em torno dos objetivos da nação brasileira, contribuindo com o governo da presidente Dilma e do ex-presidente Lula, de forma altaneira, pontuando questões como a reforma política e outras, que são estruturais. É algo que já vinha colocando e agora, mais do que nunca, coloca com muita força as reformas como um conjunto e como medida fundamental para novos avanços democráticos, com destaque para a reforma política. E isso também se expressa em Goiás. Evidentemente, queremos estar juntos com o eixo que aprova esse projeto político que está em curso. No livro eu faço muita crítica a essa campanha dirigida contra o ex-presidente Lula e agora contra Dilma, que, no fim, quer desestabilizar um projeto político que colocou o Brasil e o povo brasileiro em uma nova condição de vida. Hoje o governo brasileiro é respeitado pela maioria da população brasileira e também internacionalmente. Quem viaja para fora percebe o grau de respeito e de admiração que se tem pelo Brasil hoje. Então, o que está em curso é uma tentativa no sentido de combater isso. Nós temos uma atitude muito firme de apoio a esse projeto e de consolidação desse núcleo que apoia a presidente Dilma neste momento, pela reeleição dela. Nesse sentido, o PC do B em Goiás vai estar em sintonia com esse projeto, com as forças que apoiam a reeleição e, principalmente, a continuidade e o aprofundamento dessas conquistas. Nós vamos discutir a plataforma que vamos sugerir aos partidos aliados para as próximas eleições. Isso passa por uma questão nuclear, que é a aliança entre PMDB E PT. Mas a discussão em torno de candidato é difícil antecipar. Estamos acompanhando o processo, que tem o ex-governador Iris Rezende, com quem temos uma relação próxima, e também com o prefeito de Goiânia, Paulo Garcia. Agora entrou no PMDB Júnior Friboi, que passa a ter certo papel na política goiana. É necessário um debate político interno de tal maneira que a gente possa sair com a candidatura conforme uma chapa majoritária que forme uma aliança com uma chapa de candidatos proporcionais para abarcar todas as forças políticas.

Tem-se um consenso de que o governador Marconi Perillo é um candidato difícil de ser derrotado. Depois de 16 anos, o sr. acha que chegou a hora?

Eu fui secretário de Marconi, mas acho que, apesar da relação pessoal que tive, cada vez mais o tucano retrocedeu. O papel que desempenhou em relação ao ex-presidente Lula, naquela questão do mensalão, causou problemas para ele e para o governo de Goiás, porque Lula lhe tinha muito respeito, o estimulava e o apoiava. Ele se aproximou de movimentos progressistas, da esquerda, como a UNE — que teve congresso realizado aqui — e o MST nas duas primeiras eleições, no segundo turno. Mas em determinado momento ele reorientou sua política de alianças em Goiás, o que me levou a sair do secretariado. Esse processo se agravou naquele momento em que Marconi fez aquela afirmação extremamente grave, de que o ex-presidente Lula seria um “canalha”, um absurdo completo, uma colocação inaceitável, de uma infelicidade profunda, que evidentemente o marca como uma pessoa que está tendo raiva em relação a uma pessoa que colocou o Brasil em outro patamar. Com essas posições — e eu não estou analisando meramente indivíduos, mas posições políticas —, ele foi se distanciando de aspirações democráticas do povo goiano. E ele hoje é um homem novo de ideias velhas. Quais são as ideias velhas? A do PSDB, do neoliberalismo, que a vida está demonstrando que está ultrapassado. E o que está em curso é um novo modelo de desenvolvimento que incorpore a população, que distribua renda, que dê ao papel do Estado o desenvolvimento econômico, em avançar em questões democráticas na sociedade. Nós temos todas as condições de emoldurar aqui uma política de avanço para Goiás, não podemos ficar em torno de nomes meramente. Temos de ter um nome e um programa, e que esse nome seja uma expressão de aliança.

Como o sr. avalia Antônio Gomide e de Paulo Garcia, ambos do PT, como prefeitos?

Todas as duas gestões são muito boas, com a particularidade que a do Paulo sucede a de um prefeito excelente, que foi Iris, que, nessa administração municipal, se revelou como um homem que soube ser sensível aos avanços da modernidade. Gomide tem um aspecto novo, porque inaugurou uma nova fase de administração em Anápolis, o que fica demonstrado pelo resultado das últimas eleições, em que ele teve um percentual extremamente alto. Sua administração corresponde não só em termos de seriedade, como também em termos de uma gestão pública de excelência depois de tantos prefeitos ruins. Então, estamos com um capital político bom, com Iris e sua experiência, com Paulo Garcia e outros quadros que podem compor uma chapa majoritária. Eu insisto em dizer que é decisivo um programa de mudanças: o problema não é meramente a discussão, mas o que os partidos oposição devem fazer é construir um projeto. E eu tenho certeza que o PCdoB vai contribuir com isso, realizando eventos, seminários, para formular uma proposta de alteração e de conteúdo democrático para Goiás.

E a terceira via, com Vanderlan Cardoso (PSB) e Ronaldo Caiado (DEM)?

Acho difícil, não vejo viabilidade. Discuto a essência. Não vejo que estas outras forças possam propor um programa mais avançado do que esse núcleo que sustenta o ex-presidente Lula e a presidente Dilma. Acho que a oposição aqui, não pode se satisfazer em discutir nomes, mas deve discutir ideias. E o PC do B vai ajudar com isso.

Em nível nacional o PSB está lançando o governador Eduardo Campos para presidente. Essa candidatura é para valer?

Pode ser para valer, mas tem o mesmo problema. Eduardo Cam­pos não tem espaço, porque o espaço para desenvolver um projeto avançado já está ocupado pela aliança entre PT, PMDB, PC do B, PDT e os outros partidos. Espero que reflua, pois, se mantiver essa decisão, vai terminar caindo nos braços dos setores conservadores. Do mesmo jeito ocorre com a candidatura de Marina Silva.

E Marina, especificamente, como o sr. avalia o pensamento dela, o projeto?

Eu discuto bastante no livro a questão ambiental, que é o mote fundamental de Marina, em minha opinião colocada incorretamente por ela. Comete-se um erro quando se absolutiza uma vertente do amplo processo de formação social. A contribuição que o setor ambientalista dá é colocar a importância, a gravidade e a premência da questão ambiental como elemento estruturante no modelo de desenvolvimento. Acho que isso é uma conquista, mas não pode levar a ideia de absolutização ou de ênfase maior a essa questão, de modo que chegue a eliminar possibilidades de crescimento econômico e da justiça social. Há de se pensar — e isso é uma visão marxista da questão ambiental — que a questão da natureza diz respeito à sobrevivência da própria humanidade. Marx fala disso em “O Capital”, mas ao mesmo tempo diz que nas relações o que deve predominar é a solução dos problemas dos homens, das pessoas, das mulheres, são as questões sociais.

Como o trabalho da Comissão da Verdade? Parece haver uma crise.

Há concepções diferentes, eu não acompanho detalhes. Acho que é uma conquista importante do governo Dilma. Lula, durante seu governo, tentou criar, mas teve dificuldade, por pressão dos militares. Ele nunca declarou isso, mas é óbvio. E Dilma conseguiu aprovar a comissão, mas têm havido dificuldades para que essas coisas se esclareçam. Isso é um grave problema, um entrave para a democracia. É necessário que essas coisas sejam reveladas para que a sociedade seja vacinada sobre o que aconteceu. Há a interpretação de que a Lei da Anistia anistia os torturadores e isso não cabe nem na Constituição brasileira e muito menos no direito internacional. Não é possível que os torturadores anistiem a sim próprios: o Estado que era torturador não pode anistiar aqueles que torturavam. A partir do momento em que a constituinte definiu a tortura como sendo um crime inafiançável toda a legislação que foi elaborada anteriormente à Constituinte tem de ser revista. O que permanece são aqueles que não entram em choque com princípios constitucionais. Se algo entrou em choque, tem de ser reavaliada. No livro, faço uma análise da decisão do Supremo. Anteriormente, eu e o presidente do PCdoB, Renato Rabelo, estivemos com o ministro Eros Grau, o relator dessa matéria.

O fundamento dele é político, faz referências a fundamentos jurídicos e diz que antes da Constituinte houve um determinado momento que, para mim, não tem consistência. No fundo é um argumento político, de que houve um acordo, que este tem de ser respeitado e que quem teria de desfazê-lo seria o Congresso, não seria competência do Supremo. Primeiro, eu acho que não houve acordo nenhum. Quem disse que houve acordo? Com a ditadura militar? Houve um acatamento, uma aceitação dos parlamentares em voltar aquilo, mas mesmo muitos dos autênticos votaram contra. Essa história de que houve acordo não corresponde com a realidade. É o opressor falando de acordo com o oprimido. O que, aliás, aconteceu conosco. Nós tínhamos uma situação kafkiana — eu utilizei esse termo na prisão —, porque alguns dos que estavam presos não aceitavam serem libertados, dizendo que a anistia era uma maneira burguesa.

Ora, naquele momento o problema fundamental era sair da prisão, daí se criariam novas condições para poder lutar e acabar com o que estava aí. Como a anistia era restrita, não era estendida a alguns segmentos da luta de ações armadas, ela era uma concessão da ditadura, mas não deixava de ser uma conquista. Eu defendo, para o bem da democracia brasileira, que os torturadores sejam julgados e condenados, como foram aqueles que lutaram. Porque na verdade é o argumento deles dizer que ninguém foi julgado. Não! (enfático) Aqueles que lutaram, foram presos e torturados, já foram julgados, dessa forma. Agora é a hora de julgar quem praticou esses atos.

“Fiquei sabendo da morte de meu pai um mês depois”

Como o sr. decidiu escrever suas memórias? O sr. acha que é o momento de um balanço?

O momento da decisão foi após uma eleição em que fui derrotado. Fiquei muito chateado, decidi não ser mais candidato e resolvi começar a escrever. Minha decepção foi o fato de que eu tinha sido deputado constituinte nota 10, o único de Goiás, e terminei não sendo eleito na eleição seguinte. Isso me deixou profundamente decepcionado, eu então resolvi, achei que não era o caso de me candidatar e resolvi iniciar o livro de memórias. Mas depois, fruto de uma série de conversas, decidi ser candidato a vereador, o que foi uma decisão acertada, e então, em função disso, depois de ter iniciado as 20, 30 páginas eu deixei de lado e não voltei mais ao livro. Ocorre que o PCdoB tem a Fundação Maurício Grabois e lá tem o Centro de Memórias, dirigido por um historiador muito competente, Augusto Buonicori, da Unicamp, e ele começou insistir comigo, dizendo “olha Aldo, você tem de escrever um livro de memórias porque esteve presente em vários momentos importantes da história do Brasil”. O dirigente-geral dessa área é Adalberto Monteiro, goiano e meu amigo pessoal. Os dois começaram a insistir para que eu escrevesse o livro. Tenho uma atividade política intensa, mesmo sem mandato, e resisti um pouco. Mas percebi que eu precisava escrever. Aí, surgiu uma questão que foi a gota d’água. Em 2013, comemoram-se 50 anos de fundação da Ação Popular e 40 anos de incorporação da Ação Popular ao PC do B. Era um momento absolutamente oportuno. Isso que me fez com que eu, de uma vez por todas, acelerasse a publicação do livro.

O título é baseado no livro “Fausto”, de Goethe?

O título, “Alma e Fogo”, sim, é baseado em “Fausto”, que li na prisão e é muito significativo. Na conversação que ele tem, diz o seguinte: “É preciso que o queiras tendo a alma em fogo; com inspiração sincera e peito a te inflamar, os corações dominas da assistência logo.” Isso eu li na prisão e a leitura me sensibilizou. Hoje é meu livro de cabeceira, pela visão multilateral, rica e dialética, a capacidade que tem de analisar a riqueza, o capital, a pobreza, os trabalhadores rurais e o amor. Por exemplo, ele diz que, quando há conflito de um casal, a melhor alternativa é mandar a mulher para o norte e o homem para o sul. Veja que visão dialética: numa situação de conflito, o melhor é separar para esfriar os ânimos e, talvez, criar condições de retornar. Essa frase, no fundo, ela condensa o meu jeito de ser, fazer as coisas com convicção.

Seu livro é marcado por uma sinceridade muito grande. Muitas vezes usa-se as memórias para ajustar contas com o passado e contar histórias positivas. Nota-se que o sr. revela suas ingenuidades em alguns aspectos. Por exemplo, quando o sr. tinha 8 anos seu pai foi vender uma fazenda, explicou tudo e estava praticamente vendida. Aí o sr. falou: “Pai, o sr. esqueceu de falar da erva daninha que está matando o gado”. E seu pai não o repreendeu. Como se deu essa lembrança?

Têm certas coisas na vida que nos marcam. E isso não só pela minha atitude, mas também pela de meu pai. Ele não me repreendeu. Significa que em última instância ele percebeu que eu estava com a razão. Isso foi interessante.

O sr. conta uma história muito interessante, que é da sua mãe, que depois de certa idade ela resolveu estudar filosofia, mas precisava prestar vestibular e matemática era o calcanhar-de-aquiles. Como o sr. queria estudar enge­nha­ria, se dispôs a ser o professor, mas não tinha muita paciência, o que é normal. Ela teve de contratar o professor Nion Albernaz [ex-prefeito de Goiânia]. Ela fez o curso? Como foi?

Nion Albernaz era meu professor, excelente em matemática. Ela o contrata e eu tive uma atitude, própria de jovem, mas que, se com o olhar de hoje, é absurda: a mãe enfrentando dificuldade, que tinha deixado de estudar havia muitos anos, resolve fazer vestibular e eu que era bom de matemática, só faltava dizer que mamãe era burra. Então ela resolveu pedir o auxílio de Nion. E uma coisa que me marca até hoje é que nunca tivemos empregada doméstica, é o que falo no início do livro, primo pobre de uma família rica. Sou de origem de uma família de fazendeiros e de comerciantes de Anápolis, mas os meus pais enfrentaram problemas, tanto que essa foi uma das razões para termos mudado para Goiânia em busca de uma vida mais independente. Minha mãe era professora, meu pai trabalhava no Fisco e era uma vida difícil.  Não tínhamos empregada e algo que também me marcou profundamente foi a personalidade da minha mãe. Uma vez, ela estava na cozinha, que tinha um daqueles fogões à lenha, que deixava a parede toda preta. Então, minha mãe escreveu com giz uma fórmula matemática. Ela ficava lá, cozinhando e estudando. Isso me sensibilizou profundamente: uma mulher já de idade e estudando para passar no vestibular.  E passou no vestibular, fez Filosofia e se tornou professora da Universidade Católica. E foi essa relação com a universidade, que não era PUC ainda, que ela estabeleceu uma relação muito grande com o reitor da época, padre Machado, que foi a pessoa com quem ela se articulou para conseguir a minha bolsa de estudos para a Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O sr. queria fazer Engenharia e acabou fazendo Direito. Foi estudar na PUC do Rio por qual motivo?

Uma tia de um amigo morava lá e trabalhava no Instituto de Seleção e Orientação Profissional (Isop). E eu fui fazer a seleção e me disseram que minha aptidão era a política e que nesse sentido o curso que mais se aproximava da minha tendência seria Direito. No fundo, a minha tendência era a engenharia. Lem­bro-me de uma vez que fui orador da turma do Grêmio Literário Félix de Bulhões, do Lyceu de Goiânia, por três vezes sucessivas. O orador era escolhido no concurso de oratória — falo no livro sobre um dos concursos, em que citei o Canal de Suez, que na época estava sendo invadido pelos americanos, ingleses e franceses, o que foi minha primeira manifestação de cunho antiimperialista. Tive um bom desempenho, fui selecionado e um professor, que era também advogado, disse que eu não deveria fazer advocacia — naquele momento eu já estava convencido que eu tinha que fazer advocacia —, mas, sim, que eu precisava fazer Engenharia.

Você era católico, inclusive começou sua participação política como integrante de um grupo católico. Como foi essa ligação? Você ia à igreja mesmo?

Algumas coisas envolvem meus filhos e uma delas foi a seguinte. Eu sempre vivia na clandestinidade e era uma pessoa muito marcada pela liderança. Tive projeção nacional pela UNE, tanto que no Rio, pouco antes do golpe militar, chegavam a colocar nas paredes: “Já matou seu comunista hoje?” Tinha uma lista daqueles que deveriam morrer: entre eles, Leonel Brizola, Miguel Arraes e Aldo Arantes. Com isso, na vida clandestina, eu morava em São Paulo, em bairros da periferia, praticamente não ia ao Centro. Era só ir lá que encontrava alguma pessoa conhecida. Evitava viajar muito porque a situação era delicada. Como dirigente nacional da Ação Popular, eu participava de reuniões, mas tinha uma vida muito controlada, com muita segurança.

O lado positivo era dar atenção a meus filhos André e Priscila, os levava à aula. Depois, ia para os parquinhos, comuns em São Paulo. Então eu contava histórias para eles. Inventei a história dos coelhinhos — o Zico, o Zeca e o Zoca — que eram muito bons e ia incutindo certos princípios morais, de que papai gostava de pobre, de negros, de que lutava pela justiça e que a gente não devia mentir. Era uma série de conceitos que, progressivamente, ia sendo assumida pelas crianças. E vivíamos em uma clandestinidade rigorosa, não podia revelar onde morávamos. Eu insistia com os meninos para que não revelassem nossa casa. Eu morava na Vila Formosa, em São Paulo, e um dia, vindo do parquinho, o André, com 7 ou 8 anos, me fala: “Pai, o senhor sempre fala que a gente não deve mentir, mas ao mesmo tempo fala que não podemos falar onde a gente mora, e isso é mentira. Então pai, eu quero que me diga: eu falo a verdade ou falo a mentira?” Foi uma coisa assim que me deixou com a questão: como é que eu vou mostrar a essa criança que ela não tem de revelar esse fato? Na hora, me veio uma ideia, então perguntei: “Você está vendo o Zorro?” Ele: “Estou. pai.” Eu: “Você gosta do Zorro?” Ele respondeu: “Claro, claro que gosto”. E eu disse: “Você acha que o Zorro deveria revelar a identidade?” E ele: “De jeito nenhum. Se o Zorro revelar a identidade dele, o sargento Garcia vai prendê-lo. Pai, só tem uma pessoa que sabe a identidade do Zorro, que é o mudinho. E o mudinho não fala.”

Então falei que com o papai era assim. Se revelasse a identidade, eu seria preso. E ele falou: “Pai, então está resolvido, já entendi.” Tem outro fato, que foi quando meu pai faleceu. Ele era extremamente solidário, falou chorando para minha mãe cuidar de um irmão meu, que tinha problemas e que não me avisasse sobre a morte dele, senão eu iria ao enterro e seria preso. Ele disse isso um dia antes dele morrer. Com isso, minha mãe se acautelou e eu fiquei sabendo da morte do meu pai um mês depois. Ela me mandou algumas coisas, entre as quais uma caneta que tinha o nome completo dele: Galileu Batista Arantes. Minha ex-esposa era psicanalista, hoje é psicóloga, e tínhamos uma preocupação. A gente discutia como iríamos transmitir para as crianças realmente nossa situação. Para não criar uma situação complicada na cabeça deles, a gente mantinha o primeiro nome deles. André e Priscila, mas o sobrenome era trocado, tanto que no livro tem a ficha escolar deles com o nome frio, Guimarães Silva.

Meu pai também a gente falava só primeiro nome, Galileu. Um dia, o André foi a uma escrivaninha que eu tinha — que inclusive eu dei a ele pelo simbolismo — e abriu a caneta de meu pai e veio gritando com ela na mão: “Descobri, descobri!” E eu perguntei o que ele tinha descoberto e ele respondeu que tinha descoberto o nome da nossa família. “O vovô Galileu chama Galileu Arantes, então a nossa família é Arantes.” Aí eu falei para minha mulher que deveríamos conversar com os meninos. Sentamos nós quatro e me lembro como se fosse hoje. Expliquei a eles que papai e mamãe lutavam contra uma ditadura militar no Brasil contra o povo, que prendia e torturava; que queríamos devolver a democracia para o povo; que tínhamos de correr o risco e por isso éramos obrigados a mudar de nome para podermos continuar lutando. E falei: “O nome do papai é Aldo Arantes, o nome da mamãe é Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, o sobrenome da nossa família e de vocês é Almeida Cunha Arantes”. O André, mais velho, se voltou, olhando para o teto e repetiu três vezes: “Aldo, Aldo, Aldo… Pai, quer saber de uma coisa? Você não tem cara de Aldo, sua cara é de Roberto”. Roberto era o meu nome frio.

E quando começou sua militância realmente? Em 1961 você foi eleito presidente da UNE.

Minha militância começou no Lyceu de Goiânia. Meu irmão Joaquim de Prudêncio Arantes, o Sanito, era líder estudantil lá. Ele presidiu o Grêmio Literário Félix de Bulhões e elegeu Tarzan de Castro [político goiano nas décadas de 60 a 80] para o grêmio. Eu era o irmão menor que atuava ali, fui orador do grêmio não por indicação dele, mas pelo concurso, e participava daquele grupo. No Lyceu daquela época havia partidos e eu presidi um deles. O interessante é que os partidos de lá não eram partidos da sociedade, mas, sim, característicos dos estudantes. Então, eu comecei minha atividade de fato no Lyceu de Goiânia, depois tive certa atuação nesses congressos estudantis e fui para o Rio. Quando estávamos nesse processo tumultuado, procuramos o arcebispo de Goiânia, dom Fernando Gomes dos Santos. Fui com um grupo de 10 a 20 estudantes e ele se impressionou comigo. Ele me chamou para conversar no outro dia e nos tornamos grandes amigos — faço uma homenagem a ele no livro. Dom Fernando disse que queria me convidar para a JEC [Juventude Estudantil Católica]. Ele me explicou o que era e me convidou para representar os estudantes de Goiás no Congresso Norte e Nordeste da JEC, que seria realizado em Belém. Eu não era uma pessoa de grandes convicções religiosas, na verdade o que estava me motivando mais era a ação política. Mas era religioso, minha família era católica, então eu aceitei. Foi assim que começou a minha ação católica. Então, houve uma combinação entre a atividade e político-estudantil e a ação católica.

No Rio, já entrei de imediato na JUC [Juventude Universitária Católica]. Simultaneamente, entrei na política estudantil, porque logo no 1º ano me destaquei e fui representante da minha turma na chapa do Centro Acadêmico Eduardo Lustosa, cujo presidente era Cacá Diegues, cineasta, que é meu amigo até hoje e esteve envolvido com o lançamento do livro no Rio de Janeiro. Nesse meio tempo a JUC tinha força grande em vários diretórios acadêmicos da universidade e acabei sendo eleito presidente do DCE [diretório central dos estudantes]. No DCE, houve o problema da invasão de Cuba e até então a hegemonia na universidade era dos setores conservadores da direita, muito ligados a Carlos Lacerda, então governador da Guanabara. Como presidente do DCE, quando houve a invasão, eu emiti uma nota que saiu na primeira página dos jornais, como o “Jornal do Brasil”, denunciando o imperialismo norte-americano. Isso foi algo absolutamente inusitado para a Universidade Católica e os setores de direita fizeram uma mobilização para me depor do DCE. E em vez de ficarmos na atitude defensiva fomos para a ofensiva, o que resultou na semana social, em que a gente polemizou, em um processo de grande conscientização dos estudantes.

Fruto disso, criamos o manifesto do DCE da universidade, que teve a contribuição do padre Henrique de Lima Vaz, grande teólogo, um sujeito avançadíssimo, a quem também faço homenagem no livro. Isso também me projetou na política e no movimento estudantil e criou as condições para que eu fosse eleito presidente da UNE e iniciasse o processo de organização da Ação Popular, da qual eu e Betinho [Herbert de Souza, sociólogo que viria a ser idealizador da Campanha Contra a Fome, na década de 90] fomos os principais organizadores. Começou a haver um conflito: caminhávamos cada vez mais à esquerda, mais radical que o antigo Partidão. A juventude se entusiasmou e a JUC passou a ter uma liderança muito grande, mas em conflito com a alta hierarquia. No congresso em que eu me elegi, nós fizemos uma aliança com o Partidão, uma hegemonia nossa. Aí eu fui chamado pelo bispo auxiliar do Rio de Janeiro, dom Helder Câmara, que me comunicou que o Vaticano havia in­for­mado o cardeal do Rio, dom Eugênio de Barros Câmara, de que não admitia um militante da JUC fosse responsável pela UNE, que seria uma entidade comunista.

Portanto, dava uma indicação de afastamento, uma expulsão da JUC. Eu disse para dom Helder: “O senhor é meu amigo e amigo da UNE e não aceito isso por parte do senhor. Eu quero conversar com o cardeal.” E fomos conversar com o cardeal, um grupo de 10 a 15 pessoas que eram da JUC e da UNE. E o cardeal quis se justificar dizendo que era um dever dele e que não iria divulgar o meu afastamento, o que na verdade era a minha expulsão da JUC, e eu disse que ele estava enganado: “Para mim, se o senhor divulga ou deixa de divulgar, dá na mesma, mas o que considero é que o senhor está praticando um ato extremamente grave. Está retirando da Igreja Católica um contingente muito grande de jovens.” E fui para cima, de forma muito categórica, primeiro porque eu era muito afirmativo, era o meu estilo, a juventude era muito ousada e eu era. Continuo sendo um pouco, mas quem sabe naquela época eu era mais. Lembro-me de que foi criada uma situação de perplexidade completa. Na época tinha bonde no Rio de Janeiro e você ouvia passar um mosquito voando, entende? O fato é que eu terminei sendo expulso, o que criou condições para a fundação da Ação Popular.

Mas a Ação Popular também era ligada à esquerda católica.

O importante a dizer é que a formação da Ação Popular se deu no curso da UNE Volante, uma iniciativa de aproximar a UNE dos estudantes do Brasil inteiro. Nós tínhamos realizado um seminário nacional de reforma universitária, que tirava as diretrizes da luta pela reforma, entre as quais a participação de um terço dos estudantes nos órgãos colegiados, característica da tradição de lutas dos estudantes latino-americanos, sobretudo argentinos, da Universi­dade de Córdoba, que sensibilizou a juventude da América Latina toda.

E nós então pegamos essa bandeira e, quando fui eleito, realizamos esse seminário, que concluiu uma série de questões e resolvemos realizar o UNE Volante. Era uma caravana que contava a minha presença e de alguns diretores do Centro Popular de Cultura (CPC), algo que foi extremamente importante. O CPC tinha o setor de teatro, que acabou influenciando o teatro engajado, e o cinema de lá também influenciou o Cinema Novo, a música engajada. O CPC da Bahia tinha entre os seus integrantes Glauber Rocha [cineasta]. Na verdade, o CPC teve uma influência brutal nesse processo de criação artística engajada. Tanto que quando o Chico Buarque — ele surgiu depois do CPC — veio a Goiânia uma das justificativas que ele deu é que ele tinha o centro e a mim como referências. Tanto que ele justifica quando vem aqui, em coletiva à imprensa, que a razão era apoiar a minha candidatura a prefeito, porque eu tinha sido presidente da UNE e responsável pelo CPC, que marcou a própria criação artística cultural dele.

Com a UNE Volante percorremos praticamente todo o país. Eu estava mais voltado para as assembleias gerais, discutindo a reforma universitária, as apresentações do CPC. Juntamente com o Betinho, sobretudo ele, costurávamos no Brasil inteiro a formação da Ação Popular. Ao final da UNE Volante tínhamos uma UNE extremamente fortalecida no Brasil inteiro, tanto que surgiu com naturalidade a maior greve estudantil da história do Brasil. Criou-se um grau de representatividade que passou a ser um polo de representatividade contra a ditadura, pois na época, os outros segmentos eram pouco organizados. O movimento sindical era muito populista, o movimento sindical rural era muito insipiente e a UNE tinha um papel destacado na luta contra a ditadura.

Quando Jânio Quadros renunciou, em 1961, vocês tiveram uma atuação muito importante com a Frente da Legalidade, para evitar que o golpe acontecesse naquele ano. Junta­ram-se a UNE, os setores da esquerda e gente como os governadores Mauro Borges, em Goiás, e Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul. Como foi esse trabalho?

Eu estive com o presidente Jânio Quadros três dias antes da renúncia dele. Havia três ministros militares na porta dele, uma crise já criada, e ele mandou o presidente da UNE entrar e deixou os militares esperando. Eu tinha acabado de tomar posse e me lembro que vim a Goiânia, estava em frente ao Café Central comprando um terno — na minha posse, tive de arrumar um emprestado, porque, naquela época, presidente da UNE usava terno — e estava com meu pai quando o rádio deu a notícia da renúncia do Jânio Quadros, na hora. De imediato fui para o Rio e tomei conhecimento de que a sede da UNE havia sido invadida. Então me reuni com a diretoria e fomos para o Rio Grande do Sul, com um convite de Brizola. O Betinho foi comigo e dividimos o restante da diretoria pelo Brasil, para ajudar no processo de mobilização. Chegando lá, passei a falar na Rádio da Lega­li­da­de. Brizola se dirigia ao povo brasi­lei­ro e eu, aos estudantes. Foi um fa­to importante, pois, naquele momento, a entidade que tinha como coluna nacional o movimento estudantil, passou a jogar um papel fundamental nesse processo de mobilização nacional. Tanto que depois de assumir, o presidente João Goulart esteve na sede da UNE. Foi a primeira vez que um presidente da República esteve lá, para agradecer o papel dos estudantes na crise da legalidade.

Depois da adoção do parlamentarismo, uma medida necessária para que João Goulart assumisse, com o compromisso de que Tancredo Neves se tornasse primeiro-ministro, a historiografia passou a tratá-lo, em certo momento, como um presidente fraco. Mas o doutor em história Jorge Ferreira escreveu uma biografia que reexaminou o papel dele. E o sr. também faz essa revisão, ao dizer que era um homem progressista, conciliador e moderado. Qual era sua visão sobre Jango?

Ele era um fazendeiro democrata, nacionalista e corajoso. Porque nas circunstâncias em que ele vivia, em que os conservadores eram muito fortes e arraigados, havia uma situação de fato delicada. Ocorre que ele colocou na ordem do dia a luta pelas reformas de base, uma reforma estrutural que até hoje a gente não conseguiu. Acho que um dos problemas, e de que eu trato no final do livro, é exatamente este. Por que o povo foi para as ruas? Porque exige transformações estruturais, há certos limites em que as ações do governo Lula e Dilma esbarram em problemas estruturais. Um deles é a representação política. Se há uma representação política construída à base de dinheiro, há um obstáculo às transformações mais profundas da sociedade. E naquele momento Jango colocou essa questão na ordem do dia. Reforma agrária, reforma tributária e reforma universitária são atos de coragem política. Particularmente, acho que no comício da Central do Brasil ele radicaliza, ao colocar o problema da desapropriação de terras em torno das rodovias, da desapropriação das refinarias de petróleo, que eram particulares, da lei reversa de lucros. Enfim, ele pontua uma série de medidas progressistas. É claro que nessas alturas dos acontecimentos a direita já estava se organizando há muito tempo. Alias, começa a se organizar logo após a posse dele. Há inclusive um filme interessantíssimo que se chama “O dia que Durou 25 Anos” sobre isso, muito bom. Passa em circuito cultural e é o primeiro filme que eu vejo absolutamente documentado sobre o papel dos americanos no golpe militar.

É chocante, por ser algo que a gente mais ou menos sabe, mas ali está documentado — os arquivos secretos, depois de 50 anos, foram abertos agora. O filme é baseado nos arquivos e há áudios — inclusive de presidentes dos Estados Unidos, tanto John Kennedy quanto Lyndon Johnson — e algumas filmagens confirmando de forma categórica a participação dos americanos em articulação com os militares e com setores conservadores. Em síntese, Jango era progressista, nas limitações que ele tinha. O que separa Jango de Lula e mesmo de Getúlio Vargas, por exemplo, é que o grau de compromisso do PT e de Lula com as transformações sociais foi evidentemente mais profundo do que anteriormente. Isso é que impediu a tentativa de golpe político contra Lula, como no caso do mensalão, pois têm raízes muito fortes, como nas camadas populares. Se fosse pela classe média e pelas elites, o teriam derrubado.

Mas é difícil derrubar por um golpe militar, é um golpe político. Jango também era um homem conciliador, diferentemente de Brizola. Cada um tem um papel na história, a gente tem de compreender. Em minha opinião, ele era excessivamente preocupado em não conduzir o Brasil a uma guerra civil. Brizola era mais afoito e foi isso que impediu o golpe. Também há isso: sem pessoas com a coragem de enfrentar a situação, em determinados momentos da história do país, em vez de avanço há retrocesso. A coragem de Brizola é que permitiu a resistência contra a tentativa de impedir a posse de João Goulart. Então, ele tem de ser valorizado: tinha um perfil envolvente, quando você conversava com Jango, ele te conquistava. Era algo impressionante, sempre convincente, procurando encontrar soluções. E ele tinha um profundo respeito pela UNE.

Há no livro uma foto com Jango e Tancredo. O que ela representa?

Não me lembro de detalhes, mas ela representa exatamente esse acesso que a UNE tinha.

E o dispositivo militar que o Jango tinha?

Era muito frágil. Na verdade eles estavam com medo e diziam para o presidente que tinham um forte esquema. Uma das pilastras era um general compadre de Jango. E esse general participou do golpe, era um conservador. Então, o esquema militar era muito frágil. Tanto que o golpe se deu praticamente sem nenhuma resistência.

Depois do golpe o sr. se uniu a Brizola, foi para o Uruguai, passou por Mato Grosso, foi para o Paraguai e conta essa história. Como foi esse momento? Havia a intenção de voltar ao Brasil e reagir?

Estabeleci uma relação muito próxima, não só política, mas também pessoal e afetiva, com Brizola. Com a crise da legalidade, quando saí do Rio Grande do Sul ele me deu de presente, como símbolo da resistência, um revólver 38, que acabei dando a um camponês, fato de que me arrependo. Quando fui para o Uruguai, estabelecemos uma relação muito próxima, uma espécie de comboio político — Brizola, Neiva Moreira, coronel Dagoberto, Max da Costa Santos, Betinho e eu, entre outros —, que discutia essa possibilidade de vinda para o Brasil. Mas Betinho e eu não sentimos tanta consistência na coisa. Daí resolvemos voltar ao Brasil para a reorganização a Ação Popular. Tínhamos mais confiança de que a coisa ia dar certo assim para lutar contra a ditadura.

O sr. conta uma coisa interessante: tinham recebido um dinheiro de Brizola, vindo de Cuba, e depois devolveram. Os cubanos ficaram surpresos…

Na verdade são duas coisas. Esse primeiro dinheiro, US$ 5 mil, era originário de uma ajuda dos cubanos. Eles deram-no para a luta contra a ditadura e isso foi intermediado pelo Betinho, pois o Brizola confiava muito na gente, o Betinho foi para Cuba… Ele então, num determinado momento, quando decidimos vir para o Brasil, resolveu nos entregar o dinheiro para organizarmos um grupo dele. Mas nós aplicamos o dinheiro na reorganização da Ação Popular. Até durante um tempo o Brizola ficou meio chateado, mas depois ele percebeu que investimos, com a seriedade que tínhamos — estava fora de cogitação a utilização do dinheiro para fins pessoais —, demos a destinação que achávamos mais correta.

O outro fato é mais à frente: a Ação Popular definiria em 1965, logo depois do golpe militar, romper com a visão reformista e adotamos uma posição revolucionária. Reorga­nizamos a Ação Popular, eu passei a ser o dirigente principal — no período anterior era o Betinho — e nós decidimos então pela luta armada. Naquele período, nós éramos in­fluenciados pela revolução cubana, com a diferença que nós éramos sensíveis ao trabalho de massa, com os camponeses, operários e os estudantes, que eram da própria origem da Ação Popular. E nesse ínterim nós encaminhamos uma pessoa para Cuba que acertou um treinamento de militantes da Ação Popular lá. Nes­se meio tempo eu fui à China. Naquele período, os chineses estavam com o pensamento de Mao Tsé-tung, defendiam um partido inteiramente novo, uma visão de que vivíamos uma nova etapa da sociedade e que era necessário um novo partido para se acertarem, do tipo maoísta.

Em função disso, os chineses estavam com uma atitude meio que de certa reserva ao PCdoB. O Partido Comunista chinês então convidou a Ação Popular para a China e eu fui. Lá, acertamos o treinamento dos militantes na China, mas em outra concepção, não do foco guerrilheiro, mas da guerra popular. Quando voltei ao Brasil, reparamos que havia a possibilidade de ir para Cuba. Aí fizemos uma reunião da Ação Popular e decidimos devolver US$ 15 mil ou US$ 17 mil, não me lembro bem. E houve uma posição unânime da Ação, o que revelava o caráter da direção. Mandamos um representante a Cuba, o Paulo Wright, que foi assassinado pela ditadura, e ele teve como comandante Pinheiro, uma das grandes lideranças da revolução cubana.  Sei que ele ficou perplexo com a atitude, porque disse “olha, queria reconhecer e elogiar vocês, foi a primeira vez que isso aconteceu em toda a relação com o movimento revolucionário na América Latina”.

E depois disso, como foi o trabalho de vocês contra a ditadura?

Na fase inicial, realizávamos um trabalho fundamentalmente político, conduzíamos um trabalho de preparação de bases militares. Nós lançamos duas questões que foram marcantes. A primeira foi a orientação, colocada em prática pela UNE, pelo voto nulo nas eleições de 1965. A Ação Popular levantou a palavra de ordem para o voto nulo, que teve boa repercussão. Depois, lançamos o movimento contra a ditadura, que era exatamente de aglutinação da sociedade civil na luta contra a ditadura. Ao lado disso, tinham as lutas estudantis. Esse processo foi se radicalizando. Veio 1968 e o Ato Institucional número 5 (AI-5), quando houve uma ação mais violenta da ditadura, que colocou a UNE e a entidades na clandestinidade. A UNE praticamente deixa de existir e há uma radicalização na luta.

E a gente se volta para uma ação propriamente clandestina. Nesse meio tempo, nós tínhamos mandado militantes para a China. Quando eles voltaram, organizamos uma escola de política militar no interior de Alagoas, a qual eu dirigi por um tempo. Nesse período tivemos uma série de problemas internos dentro da Ação Popular, que era dirigida pelo companheiro Jair Ferreira de Sá. Lá em Alagoas encontrei uma pessoa que fiquei sabendo que era goiana, Gilberto Franco Teixeira. Na época, não o conhecia pessoalmente. A gente fazia formação de quadros camponeses, em Pariconha, que na época era distrito de Água Branca, uma cidade próxima a Belmiro Gouveia.

Nesse período estávamos organizando bases de apoio e fazíamos um trabalho de localização de áreas estratégicas para o início da luta armada. Nesse tempo há um processo de evolução, na medida em que há uma radicalização política de repressão. A direção da Ação Popular foi concluindo que os instrumentos políticos e teóricos de reação popular que tínhamos eram insuficientes para respostas aos problemas que vivíamos. Então começamos a se aproximar do marxismo. Essa ida minha à China nos aproximou do marxismo com o pensamento de Mao Tsé-tung e desencadeia-se outro processo, de luta política e ideológica, no sentido de transitar de uma visão religiosa para uma visão marxista: cria-se problemas com setores, inclusive com o de Paulo Wright, que era evangélico, muito sério e integro…

E outros viviam um dilema, também: como é que eu vou ser marxista se o marxismo tem uma visão que não acata a religião? E nós fizemos uma reflexão, que eu conto no livro também, na qual descobrimos sobre o tratamento que Lênin dava sobre essa questão. Num determinado momento, surgiu no partido bolchevique uma corrente de pares que se diziam vermelhos e que queriam entrar para o partido. E havia setores do partido que não admitiam isso, exatamente porque tinham convicções religiosas. Lênin, então, defendeu essa corrente de maneira categórica. Essa questão para nós foi fundamental e diz o seguinte: no partido político, o critério de militância é político; se o militante adota o programa do partido, ele é recebido. Então, o partido bolchevique incorporou em suas fileiras, em um momento de dificuldades, os padres vermelhos. E ele dizia que uma coisa era a política, outra coisa era a ideologia. O partido tem uma ideologia, mas ele não impõe a ideologia a ninguém. Era uma questão de convicção, de que a própria luta, o próprio contato com a realidade vai contribuir para essa transformação.

Para nós, a questão de política e religião na América Latina é mais profunda. Na Europa talvez se tenha razões, inclusive a Re­vo­lu­ção Francesa, que tinha um cu­nho profundamente anticlerical, pe­lo papel conservador que a Igreja europeia teve na Idade Mé­dia. Portanto, como força de re­sis­tência à revolução burguesa era mui­to fortemente colocada a questão religiosa. É uma situação di­ferente da América Latina, até por­que a convicção religiosa aqui é muito arraigada e tem amplos se­tores progressistas, tanto é que a Teologia da Libertação surgiu na A­­mérica Latina. Um dado importante que revelo no livro foi saber que o criador da Teologia da Li­ber­tação, Gustavo Gutierrez, se inspirou na experiência da JUC, da década de 60, entre 1961 e 1962, exatamente o período em que me refiro.

Como você avalia hoje a guerrilha?

Eu acho que a guerrilha foi um ato heroico e uma decisão que, naquele momento, demonstrava a disposição de luta do Partido Comunista do Brasil. A luta armada foi uma demonstração de coragem e os que faleceram na luta nós só temos a elogiar como heróis do povo brasileiro. Marx, ao analisar a comuna de Paris, fez essa avaliação: foram pessoas que se colocaram na luta pela construção de uma sociedade mais avançada.

Mas isso não retira a necessidade de utilizar o conteúdo da luta. A vida demonstrou que esse tipo de luta nas condições de uma sociedade altamente urbanizada, com o nível de consolidação muito forte do poder político, não é o melhor caminho.

A chacina se dá em 1976, no governo Geisel, que tinha um discurso que dizia que não aceitaria que militares fizessem isso. Chegou a punir militares pela morte de Vladimir Herzog e de Manoel Fiel Filho. Por que isso?

No fundo era uma política de Estado. Não dá para isentar. Fizeram uma política e estava em transição, porque a tortura e os assassinatos continuavam existindo. Mesmo depois da nossa prisão, criou-se uma situação mais grave, após os assassinatos de Fiel Filho e Herzog e dos três companheiros na Lapa — sendo que um deles era o [João Batista] Drummond, que era do PC do B de Goiás —, que estavam desarmados. Aquilo foi um morticínio, e mesmo depois ainda teve prisão com tortura no Rio de Janeiro. O fato objetivo é que estava havendo uma transição que envolvia medidas e não era um ato de boa vontade dos militares: refletia um momento em que estava crescendo muito a democracia no Brasil e no mundo e os militares estavam se isolando cada vez mais. Inclusive naquele momento estava tomando posse Jimmy Carter como presidente dos Estados Unidos, que fazia claramente a defesa dos direitos humanos. Quando eu estava sendo torturado chegaram a fazer referência a Carter e, sobretudo, a dom Paulo Evaristo Arns. Os torturadores tinham ódio dele, diziam que ele era um bandido, xingavam nomes feios, tinham ódio. Aí se podia perceber como era corajosa a atitude de dom Paulo.

Pessoas ligadas a Geisel se aproximaram muito de dom Paulo Evaristo Arns, como os generais Dilermando Gomes Monteiro e Golbery do Couto e Silva. Eles realmente o respeitavam, achavam que tinham de ter um interlocutor?

O problema é que nessas alturas, nesse momento de transição, eles procuravam encontrar certos elos e dom Paulo precisava ter canais para tentar por meio deles salvar vidas. E ele queria esse contato para sair, em certa medida, de um isolamento total.

Como é que foi o encontro de dom Evaristo Arns com Dilermando Monteiro?

Dom Evaristo foi procurado por minha mãe, que esteve comigo e com meu advogado, Luiz Eduardo Greenhalgh, e presenciaram minha situação. Eu estava com as marcas da tortura e prestei depoimento dizendo que eu estava sendo torturado no Dops, do Fleury, e no Doi-Codi, parece que eles faziam disputa de quem torturava mais. E minha mãe esteve comigo. Já havia um processo inicial de abertura e ela conseguiu uma autorização judicial para me visitar. Ela procurou dom Paulo Evaristo Arns, dizendo que tinha me visto, contou do meu depoimento da situação minha e dos outros presos que estavam sendo torturados, para saber que atitude ela poderia tomar. Dom Evaristo falou para ela que só tinha uma atitude a tomar: que denunciar a tortura, mas com a consciência de que poderia acontecer com ela o mesmo que ocorria comigo. E minha mãe disse que para me ajudar faria qualquer coisa. Ela foi para a imprensa, denunciou e teve repercussão. Alberto Dines [jornalista] fez um editorial na “Folha de S. Paulo” na época, saiu matéria na “Veja” e, depois desse fato, em 1977 — eu fui preso em 1976 —, quando saí da prisão fui procurar dom Paulo para agradecer a atitude que fez não só por mim, mas por todos os outros presos políticos de uma forma geral. Atitude corajosa, que demonstra o caráter e a firmeza política dele. E ele então me disse: “Vou te dizer uma coisa que nunca disse para ninguém. Quando assumiu o comando do segundo Exército o general Dilermando Monteiro, ele me procurou e disse que, no comando dele, não haveria tortura. E ele jurou perante esse Cristo que está aqui, que não haveria tortura.” E dom Paulo continuou, dizendo que o general tinha acrescentado que, quando ele, dom Paulo, tivesse qualquer suspeita de que estivesse havendo tortura, estava autorizado a enviar alguém para visitar as dependências do Doi-Codi para confirmar se havia ou não. E nesse ínterim, minha mãe o procurou. Tempos depois, o general ligou para ele pedindo para celebrar uma missa de aniversário do golpe militar. Dom Paulo disse que não iria. E o general insistiu duas, três vezes. Por fim, resolveu visitar dom Paulo, que lhe disse: “Não tenho condições de celebrar essa missa, pois o senhor assumiu o compromisso de que, se houvesse tortura, eu poderia mandar alguém de confiança para visitar as dependências do Doi-Codi. Estiveram aqui, vindos da França, dois membros da Comissão Internacional de Juristas Católicos para constatar a prisão do Aldo e dos colegas dele. E eu pedi a autorização e o comando do segundo exército não me concedeu. Portanto, o senhor não cumpriu o combinado, houve tortura, o senhor não autorizou as pessoas que eu indiquei fossem lá. Para esclarecermos essa situação, vamos inverter os papéis. Eu sou o general e senhor é o cardeal, partindo da preliminar que o senhor jurou aqui, diante de Cristo, que não haveria tortura. Portanto, o senhor, cristão que é, vai evidentemente colocar as questões a partir desse ponto de vista. Sabendo de tudo isso, o general chega para o senhor e pede que celebre uma missa sabendo que houve tortura, não houve a autorização para que as pessoas visitassem o Doi-Codi e eu chego para você e peço para celebrar a missa. E o senhor, celebraria a missa?” E o general abaixou a cabeça e disse que não celebraria, ou seja, ele revelou ali, de fato, que houve tortura. Posteriormente, esse mesmo general foi às páginas amarelas da Veja e disse que não houve tortura.

O sr. foi muito torturado? Lembra-se do rosto de algum dos torturadores? Eles falavam seus nomes?

Não. Eles torturavam com capuz. Era muita gente, foram vários métodos de tortura. No primeiro dia foram murros, pontapés, durante um bom tempo. E numa hora determinada eles paravam. E me botaram nu no chão, sentado em um quarto. Ouvi um vozerio que, posteriormente, na minha conclusão, eles estavam discutindo que tinham assassinado o meu irmão. Então, em função disso e provavelmente porque o processo inicial que nos conduziu à prisão vinha do Rio, resolveram nos levar no dia seguinte para o Rio de Janeiro. Lá, a tortura era a “geladeira”. Um método inglês de tortura, para não deixar marcas, em que você fica nu, encapuzado, sem dormir, com sons dos mais estridentes. Vão compondo os sons que mais te afetam. Eles colocam os três sons que mais agridem você, põem aquilo o tempo todo em altíssimo volume. E dentro da geladeira, eles oscilam altas temperaturas com temperaturas extremamente frias. Era uma máquina de fazer loucos, literalmente. Num determinado momento eu fiquei exasperado e comecei a bater a cabeça na parede. Aí, vinha um pouco de consciência, um pouco de determinação para sair daquela situação e. Aí eles vêm com uma tortura de forma mais direta, física e eu disse: “Me matem, me matem com dignidade!” Passaram a me levar para a chamada “cadeira do dragão”, tortura com choque elétrico e tudo que se pode imaginar. Fiquei sendo torturado por vários dias e depois volto para São Paulo, que iam oscilando entre os do Dops e do Doi-Codi.

E as sequelas? O sr. se lembra muito disso, sonha?

Não. As pessoas me perguntam muito sobre isso. No fundo, isso deve estar relacionado à convicção. Nunca vacilei acerca do caminho que tomei. Ao fim do livro tem uma parte que se chama “Palavras Finais”, em que retomo o que falei quando saí da prisão. Uma equipe de jornalistas foi cobrir nossa saída do presídio mais importante do Brasil, o Barro Branco, portanto toda a imprensa deu cobertura da saída dos presos, e como eu tinha tido uma liderança no movimento estudantil, me procuraram. E eles perguntaram o que eu faria se eu tivesse condições de refazer a minha vida. Eu disse que faria a mesma coisa, teria a mesma vida, foi uma opção que tomei. No final, reformulo dizendo que faria de novo o fundamental e retificaria erros que tivesse feito em termos políticos e pessoais.

O sr. está entre um dos defensores da revisão da Lei da Anistia?

Estou. Não é mágoa pessoal, é uma questão de justiça, é inaceitável, do ponto de vista da Justiça, e eu considero no direito brasileiro. E eu fui constituinte e na Constituição tem um dispositivo que diz que a tortura é um crime inafiançável, impassível de perdão, imprescritível. E o direito internacional diz que é um crime imprescritível, tanto que a Corte Internacional dos Direitos Humanos penaliza o Brasil por conta dos assassinatos na Guerrilha do Araguaia. Tem um problema político e não pessoal, que é a resistência dos militares brasileiros de fazerem a transição mais profunda no sentido da democracia brasileira. Eles procuram preservar graves erros, que são as agressões aos direitos humanos e isso acho que é um entrave para a democracia. Eu sou membro do Grupo de Trabalho do Araguaia — antes era Grupo de Trabalho do Tocantins (GTT) —, composto por representantes dos ministérios da Defesa, da Justiça e dos Direitos Humanos. E na fase anterior, tive a oportunidade de conversar com Nelson Jobim, que foi meu colega na Câmara dos Deputados — fomos constituintes juntos. Teve um evento em Marabá (PA), onde estavam presentes o comandante do Exército, general Enzo, e o ministro da Defesa, e eu disse em público que o grupo de trabalho não chegará a conclusões mais significativas se as Forças Armadas não derem as informações sobre o que ocorreu com os restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia. Por tudo o que aconteceu, eu estive lá inúmeras vezes participando das escavações, e a conclusão a que eu cheguei, fruto também dos depoimentos de moradores e de militares, é de que houve uma “operação limpeza”. Eles sumiram com os corpos.

Teve um militar, Pedro Cabral, coronel da Aeronáutica, que confirmou que retiraram e queimaram os corpos da Serra das Andorinhas…

Não se sabe direito o que aconteceu. Já procuraram várias vezes na Serra das Andorinhas e não encontraram. Têm depoimentos dizendo que queimaram e jogaram no mar. Eu participei de uma reunião com uns 30 militares que disseram — e isso está gravado — que participaram da operação limpeza. Na época tinham vários que participavam, principalmente o Curió. E por que eles não sabem? É que, na fase inicial da operação limpeza, os militares de mais baixa patente participavam. Mas na continuidade, eles estavam fora, só sabem de onde retiraram, mas não sabem para onde foram os corpos, nem os dos trabalhadores, nem os dos camponeses. Eu dizia nessa reunião é que na verdade que a contribuição de soldados e camponeses é interessante, mas nada resolve o problema essencial. O que se descobriu até agora foram os corpos enterrados em cemitérios, o que foi na fase inicial da guerrilha, e são alguns corpos só. Mas a grande maioria ficou perdida com a operação limpeza. Então, esse grupo de trabalho não se perde totalmente porque na verdade a pesquisa em cemitérios, com muita dificuldade, encontra um ou outra coisa, poucos, como já encontrou. Houve resistência dos militares para que a Comissão da Verdade não fosse criada, que nem levanta possibilidade de condenação dos torturadores, apenas quer saber o que aconteceu na história do Brasil.

Em relação aos grupos estrangeiros na Amazônia, o que realmente eles estão fazendo?

É claro que tem gente séria, grandes cientistas, mas precisamos saber distinguir quem está fazendo pesquisa. Têm hoje grupos interessados em preservar os recursos naturais da Amazônia pelos interesses dos grandes grupos monopolistas. E falo disso no livro também. Hoje a questão dos recursos naturais é decisiva para o futuro da humanidade. E há uma degradação constante. Ontem por exemplo, diziam que terminou o prazo de recursos naturais em relação ao que a Terra teria de conseguir reproduzir novamente esses recursos, e exatamente ontem foi o dia que terminou. Mas, quem é o responsável? É inaceitável que outros países queiram nos fazer parar de crescer — porque os europeus defendem essa ideia de desenvolvimento zero. E é essa a grande polêmica da China, do Brasil e da Índia nas conferências internacionais, o que coloca em discussão o problema do direito ao desenvolvimento. Um país atrasado que tem o povo passando fome não pode, com o argumento da questão ambiental, paralisar seu crescimento. Isso quem deve fazer são os europeus e os americanos. E eles têm uma proposta para parar o desenvolvimento? Considero que essa visão acentuada da pré-candidata Marina leva a isso. Tanto assim que os setores conservadores da sociedade estão incensando a candidatura dela, isso não é gratuito. Não quer dizer que ela tenha a mesma posição que o PSDB tem, mas, no fundo, ela tem uma posição intermediária. Hoje há uma polarização entre a política defendida por PT, PMDB e PCdoB e outros e a política da aliança defendida pelo PSDB.

Entrevista- Jornal Opção, conduzida por Euler de França Belém

Edição 1991 de 1º a 7 de setembro de 2013

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