Em um badalado artigo, amplamente difundido pela mídia, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) deitou falação como advogado da “opinião pública”, que estaria clamando “por castigo” para os envolvidos na farsa do “mensalão”. Segundo ele, as decisões dos juízes comprovaram o veredicto popular: culpados. Se a hipótese de redução das penas vier a se confirmar, estará consagrada a percepção de que “os de cima” são imunes e só os “de baixo” vão para a cadeia, escreveu FHC.

O artigo termina com uma sentença implacável: “Ao acolher os embargos infringentes o STF assumiu responsabilidade redobrada. Ao julgá-los, sem se eximir de ser criterioso, o tribunal deverá cuidar para decidir com rapidez e evitar a percepção popular de que tudo não passou de um artifício para livrar os poderosos da cadeia.” Poucos dias depois, uma pesquisa Datafolha forçou a constatação de que valores de direita e de esquerda não influenciam a intenção de voto. Ao comentar a pesquisa em editorial, a Folha de S. Paulo disse que, “diferentemente do que se verifica em alguns países europeus, como França e Itália, a tradição brasileira nunca primou pela coerência ideológica no campo político”.

O editorial da Folha e o artigo de FHC se complementam para forjar mais uma escandalosa manobra política. No fundo dessa litania midiática está a tentativa de recuperar terreno para o projeto de país que eles representam e que guarda uma enorme diferença em relação aos dos governos de Luis Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Falta à direita brasileira, desde sempre, honestidade intelectual ao expor seus pontos de vista. As campanhas eleitorais pós-ditadura de 1964 são apenas capítulos mais recentes dessa história.

Bela tacada de Itamar Franco

Quando FHC começou a aparecer como candidato a presidente da República, em 1993, a manipulação midiática moldou o seu estilo de campanha, o que resultou em um processo eleitoral profundamente marcado pelo engodo. Sua nomeação para o cargo de ministro da Fazenda pelo então presidente Itamar Franco, que estava sob pressão da direita para aplicar o programa econômico do ex-presidente Fernando Collor de Mello, caiu como uma luva. Já em 1991, quando a crise batia à porta do Palácio do Planalto, um setor do tucanato capitaneado por ele defendeu a incorporação do partido ao governo. A manobra foi combatida pelo senador Mário Covas — o que não impediu, mais tarde, que FHC fosse o principal executor de uma espécie de golpe branco contra o presidente Itamar Franco ao comandar o processo de transição da economia para a ”estabilidade”.

Sua posse foi saudada por entidades patronais com expressões como “bela tacada de Itamar Franco”, “craque nota dez” e “arauto da modernidade”. Até o secretário de Estado norte-americano, Warrem Cristopher, ligou para parabenizar o novo ministro da Fazenda. FHC chegou dizendo que “precisamos botar a casa em ordem”. “Isso não significa intervenção no mercado”, ressaltou. Estava dada a senha. Ele afirmou que não reduziria os juros, que não alteraria o Programa Nacional de Desestatização — FHC manteve o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como comitê de administração das privatizações até o último dia de seu governo, em 31 de dezembro de 2002 — herdado de Collor e que lutaria pela “estabilidade”. “Nossa prioridade é o combate à inflação, sem matar o povo de fome”, declarou.

Embrião do superávit primário

FHC tomou posse prometendo “ordenar as finanças públicas e controlar o endividamento de Estados e municípios”. Eram as mesmas palavras de Collor — só que num tom mais ameno. Dias terríveis aguardavam a nação. A “arrumação da casa” começou com o chamado “Plano Verdade”, que consistia basicamente em arrochar investimentos públicos. A primeira investida de FHC contra os trabalhadores foi a ferrenha oposição à lei salarial aprovada pelo Congresso Nacional. Para ele, o reajuste mensal era uma “esquisitice que serve de âncora para a taxa de inflação”. O novo poderoso ministro da Fazenda agregou em sua pasta figuras notórias do conservadorismo econômico brasileiro — classificadas por ele como “notáveis” — e promoveu um festival de arbitrariedades assim que a poeira da posse abaixou.

Em 1994, FHC seria o principal personagem do país. Já em janeiro, ele ocupou a televisão para pressionar o Congresso Nacional a aprovar seu programa econômico e iniciar a sua indisfarçável campanha à Presidência da República. Com suas manobras, conseguiu aprovar o Fundo Social de Emergência (na prática, uma desvinculação parcial de recursos da área social para criar uma reserva monetária que serviria de garantia à “estabilização”). Era o embrião do superávit primário. Depois o nome do mecanismo passou a ser Fundo de Estabilização Fiscal e, mais tarde, Desvinculação das Receitas da União (DRU).

Grande contribuição à humanidade

FHC começava a dar forma ao seu programa de governo. Pela primeira vez, desde a Revolução comandada por Getúlio Vargas em 1930, o projeto liberal no Brasil começava a ter sujeito, predicado e objeto direto. Era a hora de aproveitar o vácuo deixado pela reviravolta no cenário mundial (no final dos anos 1980 e início dos 1990 a experiência socialista no Leste Europeu se esfarinhou e o projeto social-democrata, na Europa Ocidental, deu seus primeiros sinais de fraqueza). E, para ajudar, existiam os trilhos políticos adequados, construídos por uma mídia emergida do regime militar. Aí foi só encaixar a figura de FHC, cuidadosamente esculpida, para assumir a direção daquele processo.

FHC brandiu a “estabilidade” como se fosse a sua grande contribuição à humanidade. Uma inflação de 1,75% em setembro de 1994 e de 1,82% em outubro, depois de ter batido em quase 50% em junho, foi argumento suficiente para resolver aquela eleição já no primeiro turno. Mas uma das conclusões a que se pode chegar analisando os votos de 1994 é que eles representaram uma carta branca ao governo no que se referia ao controle inflacionário, não necessariamente a qualquer outro ponto de seu ideário direitista. Ao lado do trunfo do Plano Real, vendido por meio de um marketing internacional muito bem arquitetado, havia os outros quatro dedos da mão espalmada de FHC.

Campanha com slogan apelativo

Eles significavam para o eleitor a promessa de melhorias sociais e infra-estruturais no país. Nenhuma “reforma” de cunho liberal foi claramente referendada nas eleições. Elas vieram a reboque — eram as cláusulas do contrato escritas em letras minúsculas. Evidentemente, a presença do PFL — o atual DEM — na chapa majoritária era óbvia sugestão de que aquele governo não seria uma “social-democracia”. O liberalismo que norteou o governo FHC centrou-se no “ajuste” macroeconômico e soterrou praticamente todos os mecanismos do Estado que atuavam nas ações sociais e nacionais. Para conseguir o segundo mandato, este projeto utilizou-se de um novo engodo.

Eram mais do que óbvios os laços que uniram aquela política com a perda de empregos e o aumento da precariedade dos serviços públicos — como saúde, segurança, educação. Mas a campanha veio com um slogan apelativo: era preciso garantir as “conquistas” da “estabilidade” para dar prioridade aos outros dedos da mão espalmada, principalmente o combate ao desemprego. Era conversa de corda em casa de enforcado, como no provérbio.

Campanha midiática entrou em cena

Quesitos como o tratamento dispensado à crise bancária — que drenou uma dinheirama do Estado por meio do Proer —, corrupção desbragada, privatizações fraudulentas e repressão aos movimentos sociais — com destaque para a invasão do Exército durante a greve dos petroleiros e a criminalização dos movimentos que lutavam por reforma agrária — também praticamente não encontraram espaços no debate eleitoral. E a divisa da campanha do projeto neoliberal acabou criando uma interrogação para o eleitor: por que votar em Lula se FHC estava garantindo as “conquistas” da “estabilidade” e prometendo empunhar as principais bandeiras do candidato da oposição? Mas FHC merecia credibilidade? Esse dilema ficou evidenciado nas pesquisas de intenção de votos.

Em 10 e 11 de março de 1998, o Datafolha divulgava pesquisa mostrando FHC com 41% das intenções de votos no primeiro turno, contra 25% de Lula. No segundo turno, FHC venceria com 52% contra 35% de Lula. Em meados do ano, depois de meses a fio em que se dava por certo que não haveria segundo turno, o quadro começou a mudar. Na pesquisa de 8 e 9 de junho, as diferenças atingiram seu patamar mínimo: FHC teria 35% das intenções de voto no primeiro turno e Lula, 30%. No segundo turno, FHC ficaria com 45% e Lula com 44%. Ou seja: empate técnico. A campanha midiática entrou em cena e evitou a derrota — a direita venceu as eleições novamente no primeiro turno. Mas ficou na população aquele gosto amargo, uma sensação de ter sido enganada por aquela mão espalmada insistentemente levantada por FHC.

Uma campanha acertada

Quando FHC se reelegeu em 1998, logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente porque havia a esperança de uma mudança de rumo tacitamente prometida por ele. Como era uma impossibilidade evidente, à primeira chance houve a baldeação — em 2002 Lula foi eleito anunciando uma reorganização interna para que o Estado pudesse operar de forma mais eficiente no que toca à aplicação dos recursos. A prioridade às questões sociais, a remoção das grandes nódoas na infra-estrutura e a condução do processo de retomada do desenvolvimento nacional eram suas grandes bandeiras para iniciar a correção das graves injustiças do país.

Lula fez, em 1989, 1994 e 1998, campanhas acertadas: costurou alianças, cortou o Brasil vicinal com a Caravana da Cidadania e discutiu o futuro econômico do país. Não desceu aos subníveis do discurso de Collor, em 1989, e da mídia, em 1994, quando o seu candidato a vice, José Paulo Bisol, foi acusado de manipular verbas do orçamento para beneficiar suas terras — o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, teve de pagar indenização de R$ 1,191 milhão ao ex-candidato a vice de Lula por causa dessa infâmia publicada em 1994 —, e se esforçou para forjar um amplo bloco político de centro-esquerda de oposição ao projeto neoliberal.

Naquele episódio de 1994, ficou claro que o ataque sem escrúpulos a este bloco continuava sendo uma das principais armas da direita. Só que de maneira mais sofisticada, menos explícita do que a usada por Collor. Na mesma ocasião, o tropeço de Rubens Ricupero — aquele que faturava o que era bom e escondia o que era ruim —, sucessor de FHC no Ministério da Fazenda, não representou qualquer arranhão à campanha tucana. A mídia viu no primeiro caso um “tropeço” de enorme gravidade e quase nenhuma no segundo. Nas eleições de 1998, Lula foi derrotado por outra série de escandalosas manobras — como a aprovação fraudulenta da reeleição de FHC e a corrupção eleitoral. 

Campanha de baixa reputação

O processo político que trouxe o país do fim da ditadura de 1964 até os dias atuais mostra nitidamente que o PSDB é o esteio de um condomínio de poder que já abrigou outras legendas — UDN, PSD e Arena, para ficar só no período desde que Getúlio Vargas modernizou o quadro partidário brasileiro — e várias vezes caminhou pelo outro lado da fronteira democrática para golpear qualquer projeto de país de corte nacional e progressista. Isso porque seu projeto de governo, quando revelado com realismo, afasta qualquer possibilidade de vitória democrática.

Em junho de 1996, em pleno auge da histeria neoliberal, uma pesquisa divulgada pela revista Veja mostrou que 62% dos conceitos que a elite brasileira atribuía a si própria eram negativos. E a esquerda apareceu como a ala progressista em plena poeira dos muros que tombaram da Tchecoslováquia à Sibéria. E quando foi possível à esquerda dialogar com todos os setores que não queriam mais seguir pelo caminho neoliberal, a derrota da direita foi inevitável.

Em 2006, quando supunha-se que Lula imporia margens folgadas sobre seus adversários, a mídia esmerou-se na produção e ressurreição de “escândalos” para fazer a direita dar um salto decisivo e impedir a vitória de Lula no primeiro turno. Geraldo Alckmin, o candidato tucano, optara por uma tática de campanha de baixa reputação. Os ”escândalos” apenas cumpriram o papel de degraus cronológicos decisivos no apagar das luzes da campanha do primeiro turno e tentar ganhar, como a direita fez em 1989, no verbo, na rasteira, na trapaça. Mas não deu — no segundo turno Lula obteve a reeleição.

Luta política não admite irresponsabilidades

Houve, sem dúvidas, muita demagogia barata por parte dos candidatos que ajudaram Alckmin a ir para o segundo turno. E muita desinformação, falta de seriedade com a importância do voto ou estultícia mesmo de certos partidos de “esquerda”. Tomemos o exemplo de Heloisa Helena, a candidata da coligação PSOL-PSTU-PCB, que em meio ao fogaréu ateado pela mídia para sapecar a candidatura à reeleição de Lula permaneceu impávida, sustentando a contundência, com a bandeira da “ética” em punho, se imaginando uma Joana d’Arc que se recusava a renegar seus “princípios”. Com essa escola, foi relativamente fácil eleger Dilma em 2010. 

São exemplos que encerram uma verdade: a luta política não admite irresponsabilidades. Lula e Dilma foram taxados de ingênuos por tender à verdade e de despreparados por não contra-atacar a direita em seu terreno marrom e nortearam suas campanhas, de modo geral, pela ética, pela transparência de dizer francamente o que iriam fazer na Presidência. Ganharam de candidatos que se recusaram a debater projetos e se pautaram pelos factoides, pelas frases de efeito. O artigo de FHC e o editorial da Folha de S. Paulo indicam que os mesmos expedientes sórdidos serão as bandeiras da direita para 2014.