Após décadas de lutas e quatro anos de batalhas judiciais, hoje, a Suprema Corte da Argentina colocou um ponto final na disputa que adiava a aplicação integral da chamada Ley de Medios, ao declarar constitucionais quatro artigos da lei – 41, 45, 48 e 161 – que vinham sendo questionados pelo setor empresarial.

Ao contrário do que pleiteava, sobretudo, o Grupo Clarín, um dos maiores da América Latina na área das comunicações, a Justiça argentina considerou que o direito à liberdade de expressão não é afetado pela Ley de Medios e que o regime de licenças estabelecido pela norma não coloca em risco a sustentabilidade econômica do grupo. A decisão era o passo que faltava para que a lei pudesse contribuir, efetivamente, com a democratização dos meios de comunicação da Argentina. Na prática, a democracia venceu as corporações.

O artigo 161 consiste em um dos principais instrumentos no combate ao monopólio, pois estabelece que cada grupo deve ter até 24 licenças de TV à cabo e 10 licenças de serviços abertos (TV aberta, rádios AM e FM). Diz ainda que, caso os titulares das licenças de serviços não atendam à lei no prazo estabelecido, elas podem ser transferidas. Significa, portanto, que as empresas deverão devolver o excesso de concessões que possuem, uma adequação que deverá ser feita, de acordo com a resolução aprovada hoje, no prazo de um ano.

Como foi destacado por este blog, a Ley de Medios já promove medidas importantes. Por meio da legislação, foi possível instalar 152 rádios em escolas de primeiro e segundo graus, 45 TVs e 53 rádios FM universitárias, além de criar o primeiro canal na TV aberta e de 33 canais de rádio vinculados aos povos originários. Agora, as mudanças poderão ser mais profundas, estruturais. O Clarín, tomado como exemplo pela dimensão que possui, não poderá mais ter a posse de jornais, revistas e editora; emissoras de rádio; televisão aberta (o Canal 13, vinculado ao grupo, disputa a liderança do mercado com Telefe, este ligado à Telefónica) e de televisão por assinatura, serviço que abrange mais de 70% dos lares daquele país.

A decisão firmada hoje é o reconhecimento de reivindicações históricas dos movimentos sociais da Argentina. Vale ressaltar que a proposta foi produzida a partir de diálogos com regramentos internacionais sobre direito à comunicação, fixados pelas Organizações das Nações Unidas, pela Organização Internacional do Trabalho e por leis antimonopólicas existentes em diversos países. Mas mais que isso: ela é fruto de ampla mobilização popular, que teve como marco a fundação, em 2004, da Coalición por uma Radiodifusión Democrática, fórum que reuniu centenas de personalidades e organizações políticas, dentre as quais centrais sindicais, universidades, sindicatos e movimentos sociais.

O caminho para esta conquista foi longo. Ainda em 2004, a Coalición apresentou 21 propostas para democratizar a radiodifusão no país. A escolha do número ‘vinte e um’ não foi por acaso: era o mesmo número de anos passados desde o fim da Ditadura Militar, regime que havia sancionado a Lei 22.285, que até 2009, organizou o sistema de comunicação no país. Dentre os pontos da proposta popular, estava a concepção norteadora da comunicação como um direito humano: “Toda persona tiene derecho a investigar, buscar, recibir y difundir informaciones, opiniones e ideas, sin censura previa, a través de la radio y la televisión, en el marco del respecto al Estado de derecho democrático y los derechos humanos.” (COALICIÓN…, 21 Puntos Básicos por el derecho a la Comunicación, 2004).

Essa não foi a única inovação. De forma corajosa, os movimentos inscreveram na norma a divisão, de forma equânime, do espectro eletromagnético entre três prestadores – público, comercial e de gestão privada sem fins de lucro – deixando, portanto, resguardados 33% do espaço para entidades sem fins de lucro. Há, ainda, reservas para o Estado nacional; entes da federação; poder municipal; canais universitários, etc. No fundo, está a concepção da comunicação não como um negócio, mas como um serviço que deve ser voltado ao interesse público.

A partir de hoje, o continente latinoamericano passa a discutir comunicação a partir de outro patamar. Não mais tendo como referência apenas a concentração e o controle dos meios por parte das elites políticas locais. Trata-se de uma ruptura histórica que pode abrir caminhos para que o direito à comunicação sejam exercidos, na prática, por um número muito maior de sujeitos, em comparação com o que hoje vemos. Ao ser considerada constitucional, a Ley de Medios passa a ser, mais que nunca, uma referência normativa para a democratização das comunicações e para a garantia da liberdade de expressão em todo o mundo.

* Helena Martins é jornalista, mestra em Comunicação Social pela UFC e integrante do Conselho Diretor do Intervozes

Lei de Meios: quatro anos de batalha judicial entre Grupo Clarín e governo argentino

Quatro anos e 19 dias foi o tempo que transcorreu entre a sanção da LSCA (Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual), em 10 de outubro de 2009, e a possibilidade de que seja aplicada a todos os grupos de mídia na Argentina.

Entre 10 de outubro de 2009, quando o Congresso aprovou a lei, e 29 de outubro de 2013, quando a Suprema Corte da Argentina deu seu parecer final sobre a constitucionalidade de quatro artigos questionados pelo Grupo Clarín, recursos judiciais dilataram a aplicação plena da LSCA.

Fato que transformouo conglomerado de mídia e o governo argentino nos protagonistas de uma batalha judicial que dividiu opiniões e gerou um intenso debate sobre como regular a propriedade de meios de comunicação no país.

Pouco mais de duas semanas depois da promulgação da LSCA, o Grupo Clarín entrou com uma ação de inconstitucionalidade de quatro artigos da LSCA. Foram objetos de litígio o artigo 41, que regula transferências de licenças, o 48, em seu segundo parágrafo, que determina que não se pode alegar “direitos adquiridos” para manter licenças que excedam o limite estipulado pelo artigo 45 – também questionado – e o artigo 161, que estipula o prazo para adequação dos grupos de comunicação à LSCA.

Cautelares

Em dezembro de 2009, o juiz Edmundo Carbone ditou uma medida cautelar que bloqueou a aplicação dos artigos 41 e 161 da LSCA para o Grupo Clarín, autor da ação. Apesar de sempre terem estado vigentes para as demais empresas do setor, a AFSCA (Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual), organismo autárquico previsto pela LSCA, decidiu estender o benefício dado na justiça ao Clarín a todos os grupos de mídia da Argentina.

O Estado recorreu e em maio de 2010 a Câmara Civil e Comercial confirmou a sentença do juiz sobre o artigo 161, mas revogou a decisão a respeito do artigo 41. A cautelar se manteve com prazo indefinido até que a própria Câmara, em maio de 2011, definiu que a cautelar teria duração máxima de 36 meses. Um ano depois, em maio de 2012, a Corte se pronunciou sobre o assunto e definiu que o prazo começaria a contar a partir de 7 de dezembro de 2009, quando a medida foi ditada, e indicou que a medida provisória não poderia substituir a decisão sobre o mérito da questão.

Em sua sentença, a Suprema Corte também havia determinado que o prazo para a adequação à norma estava vencido desde 28 de dezembro de 2011, depois de prorrogado duas vezes pela AFSCA. A norma determina que a partir de sua sanção os grupos de comunicação que não estão adequados à norma têm um ano para fazê-lo.

Nasceu o “7D.” Entre maio e dezembro de 2012 a Argentina ficou na expectativa do que aconteceria no dia 7 do último mês do ano, quando o Grupo Clarín deveria começar o processo de desprendimento das licenças que excediam o limite estipulado pela LSCA. O governo batizou a data com a abreviatura e a mistificou, o que desencadeou uma batalha miditática com spots televisivos nos canais do Grupo Clarín e na TV Pública, contra a favor da aplicação plena da lei.

No dia 6 de dezembro de 2012 a Câmara Civil e Comercial prorrogou a cautelar que impedia a aplicação do artigo 161 até que o mérito fosse julgado e aguou a festa que o governo havia preparado.

Em 14 de dezembro, o juiz Horacio Alfonso, titular do Juizado Nacional no Civil e Comercial nº1, declarou a constitucionalidade dos quatro artigos questionados pelo Grupo Clarín e determinou “a imediata suspensão da cautelar” vigente desde dezembro de 2009.

O presidente da AFSCA, Martín Sabbatella, foi pessoalmente à sede do Grupo Clarín entregar uma notificação para que começasse o processo de adequação à LSCA, mas no mesmo dia a empresa apelou da sentença. Em 19 de dezembro Alfonso aceitou a apelação e elevou à segunda instância da Câmara Civil e Comercial a decisão sobre a constitucionalidade dos quatro artigos em litígio.

Em abril de 2013 a Câmara se pronunciou a favor do Grupo Clarín e declarou a inconstitucionalidade dos artigos em questão. O Estado apelou e em junho a causa foi elevada à Suprema Corte do país.

Última instância

Em agosto deste ano o órgão máximo da justiça argentina convocou uma audiência pública na que ouviu “amicus curiae” (amigos da corte), pessoas e entidades não vinculadas ao litígio, que defenderam os pontos de vista do Estado e do Grupo Clarín. A Suprema Corte também formulou perguntas específicas às equipes de defesa de ambas partes. Foi a última etapa antes da decisão final que tomou nesta terça-feira (29/10).

Depois de quatro anos, os artigos 41, 45, 48 e 161 da LSCA foram declarados constitucionais pela Suprema Corte da Argentina. A resolução reitera que o prazo para adequação à lei está vencido, do que se desprende que a partir desta quarta-feira (30/10) o Grupo Clarín deveria, por lei, começar a se desprender de suas licenças excedentes.

O artigo 45 determina que cada grupo somente pode ser concessionário, em nível nacional, de dez licenças de rádio e televisão aberta e 24 de televisão a cabo. Também estipula que nenhum canal de TV pode chegar a mais de 35% de alcance de mercado no país. Segundo dados da AFSCA, o Grupo Clarín possui 25 licenças de rádio e televisão aberta, 237 de TV a cabo em todo o país, e supera os 35% de participação no mercado nacional em licenças de rádio e TV aberta e a cabo.

Aline Gatto Boueri, para Opera Mundi