Nossa geração está se despedindo de muitas coisas. Não é só a juventude que escorreu por calçadas, becos e alamedas de sonho. Despedimo-nos de coisas simples, presas apenas ao mínimo olhar cotidiano. O vendedor de raspadinha, uma mistura de gelo e coloridos sabores artificiais, que rondavam as feiras, os campos de futebol de poeira e as portas das igrejas. Já se foram os líricos lambe-lambes, que surpreendiam os casais sérios, os meninos empertigados, guardando o breve momento em preto e branco, em poses de originalidade repetida. Ainda, escassos, uns vendedores de quebra-queixo. Também uns teimosos amoladores de tesouras e alicates. Fazem parte de uma paisagem evanescente que vamos deixando para trás. Partes de nossas impressões, de nossa estima com as coisas do mundo. Muitos desses ofícios cederam à velocíssima necessidade de consumir as coisas e a vida. Heróicos, alguns resistem. Vestígios de uma arqueologia lírica. Rupestres mensagens que irão povoar os museus e a memória das pessoas. Em casa, cultivo um ritual de ir às feiras. Vou à da Vila Nova, do Ateneu e do Cepal no Setor Sul. Tenho o encargo de comprar frango caipira, pequi, guariroba, legumes e verduras, que bem conheço essas coisas, de meu tempo de menino feirante. Não me enganam com o tomate, a abobrinha, as bananas. Sei distinguir as folhagens e não compro coentro por salsa. Sei os nomes das ervas, a idade das aves e as peças de carne de sol. Entre as obrigações da feira, ultimamente, a gente aqui de casa me acrescentou mais uma: levar as panelas sem serventia, sem cabos, amassadas, para um artesão de nome José que faz ponto na feira do Cepal. Vejo que não sou o único. Há uma fila se formando. Três, quatro, até cinco fregueses, quase todos homens, submissos como eu, com as sacolas cheias de panelas para seu José dar atendimento. Achei que as minhas estavam velhas, decadentes. Mas me animei quando vi meus companheiros de fila arrancar de sacos, sacolas, embornais suas peças carentes de socorro. Uma panelinha de alumínio enegrecida, amassada, com dois ou três buracos no fundo. O dono entrega, fica de olho. Seu José bate, desempena, enfia uns rebites de alumínio, rebate tudo, lixa e entrega ao orgulhoso proprietário. Seu José não se vangloria de sua arte. Acha que esse serviço não dá dinheiro. Isso responde a um perguntador de plantão. Seus filhos não querem saber do ofício, sabem de sua menos valia. Na verdade um saber humilde, um serviço de emergência. Mas para os donos das panelinhas restauradas é puro orgulho. Elas voltarão ao fogo honesto dos lares. Continuarão cantando a fervura do feijão, do arroz e de uma eventual costela com mandioca. Um riso confortável saúda a panela humilde, depois de ter recebido umas massagens, um lifting, uma plástica que salva do lixo sua pobre carcaça. Não se exibirão nas colunas sociais, nem querem o glamour das matronas esticadas, nem das moçoilas turbinadas. Sabem que as esperam o incansável fogo, as mãos em acrobacias culinárias. Nunca se sentirão vazias, querendo enfiar alguma alma sem rumo em um corpo remanufaturado. Não pretendem ser panelinhas políticas, nem de cartolas de futebol, nem de igrejinhas, muito menos panelinhas literárias. Essas vão sendo emborcadas com seus dejetos. Para elas não há José, nem plástica, nem botox, nem enxerto ou remendo que dê jeito.
Panelas e panelinhas
Nossa geração está se despedindo de muitas coisas. Não é só a juventude que escorreu por calçadas, becos e alamedas de sonho. Despedimo-nos de coisas simples, presas apenas ao mínimo olhar cotidiano. O vendedor de raspadinha, uma mistura de gelo e coloridos sabores artificiais, que rondavam as feiras, os campos de futebol de poeira […]
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