Hoje, talvez haja festa no arraial das moto-serras, dos garimpos clandestinos, das pindas, das bóias, dos aranzéis e redes ilegais. Pode haver alívio nos acampamentos dos caçadores, dos pendurados à espreita nas esperas nos pé de tamburil, pequizeiros e mirindiba. Por outro lado, se os seres inocentes pudessem falar, é para haver um gemido nos botos escorraçados pelos motores do Araguaia. As araras assustadas interromperão seus grasnidos rasgados no céu de junho. Das copas restantes, uivos sofridos de guaribas. Dos tremedais pantanosos, em guinchos e piados, as antas, as pacas, as capivaras. Um pesar percorrerá os cardumes que já reúnem suas hostes para celebrar a romagem da vida e da morte. Os jacarés, o mutum e a estrondosa ema engrossarão um coro de incelenças pelas lagoas, matas e cerrados. Já sem voz audível os bandos de tuiuiús, colhereiros, garças buscarão as sombras dos ocasos de sangue, desenhando lenços de partida, talvez definitiva. O carajá pintará o rosto e se cobriria de penas no aruanã. Leolidio Caiado Morreu. Foi um pioneiro amoroso e instintivo da defesa ambiental, quando seus contemporâneos estiravam varais ao sol com mantas de pirarucu, pintados, carnes de jacaré, de anta, veado, caititu, queixada. As pacas não. Eram saboreadas como o caviar dos barrancos, das sombras de mirindiba, quase ritualmente, entre goles de cachaça e histórias de aventuras possíveis. Leco sentou praça no incipiente batalhão dos ecologistas. Descobriu que os estoques da natureza eram finitos, poderiam acabar. Precisavam ser preservados para o futuro. Sertanista, participou das expedições Roncador-Xingu e Hermano Ribeiro. Conhecia, a remo e varejão, os rios, os bichos e as gentes carajá, javaés e xavantes. Quando ainda não existiam estudos científicos sobre o meio ambiente em Goiás, suas abordagens impressionistas e amorosas chamavam a atenção para o perigo do desmatamento, da caça e da pesca predatórias. Contrariou interesses e quando foi secretario de meio ambiente conseguiu uma moratória para os cardumes do Araguaia que vinham definhando ano a ano. Dois anos sem pesca. A natureza agradeceu e, nos anos seguintes voltaram as piracemas invadindo as praias, baixios, entre espadanadas de botos e piratingas. A fiscalização deteve um pouco a ação dos predadores individuais ou de pequenos grupos. Não viveu para ver estancada a ganância das açucareiras, a fronteira dos sojais, a expulsão dos últimos moradores do campo, a esbórnia dos agrotóxicos, da maquinaria pesada, engordada com dinheiro fácil de um governo sem amanhã. Como Carmo Bernardes, morto na utopia de que a razão do homem acabasse por selar um pacto de convivência com a natureza, Leco Caiado partiu agitando os lenços brancos de sua cabeleira, acenando paz. Paz nas águas, nos sertões. Paz aos animais e aos homens sofridos. Por isso, o coro dos que deploram sua falta é bem maior e seguirá crescendo em varas, bandos, magotes, chusmas, nuvens e piracemas.
Leco Caiado
Hoje, talvez haja festa no arraial das moto-serras, dos garimpos clandestinos, das pindas, das bóias, dos aranzéis e redes ilegais. Pode haver alívio nos acampamentos dos caçadores, dos pendurados à espreita nas esperas nos pé de tamburil, pequizeiros e mirindiba. Por outro lado, se os seres inocentes pudessem falar, é para haver um gemido […]
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