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    Comunicação

    Marília de Dirceu (1)

    Lira I Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, Que viva de guardar alheio gado; De tosco trato, d' expressões grosseiro, Dos frios gelos, e dos sóis queimado. Tenho próprio casal, e nele assisto; Dá-me vinho, legume, fruta, azeite; Das brancas ovelhinhas tiro o leite, E mais as finas lãs, de que me visto. Graças, Marília […]

    Lira I

    Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
    Que viva de guardar alheio gado;
    De tosco trato, d' expressões grosseiro,
    Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
    Tenho próprio casal, e nele assisto;
    Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
    Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
    E mais as finas lãs, de que me visto.
    Graças, Marília bela,
    Graças à minha Estrela!

    Eu vi o meu semblante numa fonte,
    Dos anos inda não está cortado:
    Os pastores, que habitam este monte,
    Com tal destreza toco a sanfoninha,
    Que inveja até me tem o próprio Alceste:
    Ao som dela concerto a voz celeste;
    Nem canto letra, que não seja minha,
    Graças, Marília bela,
    Graças à minha Estrela!

    Mas tendo tantos dotes da ventura,
    Só apreço lhes dou, gentil Pastora,
    Depois que teu afeto me segura,
    Que queres do que tenho ser senhora.
    É bom, minha Marília, é bom ser dono
    De um rebanho, que cubra monte, e prado;
    Porém, gentil Pastora, o teu agrado
    Vale mais q'um rebanho, e mais q'um trono.
    Graças, Marília bela,
    Graças à minha Estrela!

    Os teus olhos espalham luz divina,
    A quem a luz do Sol em vão se atreve:
    Papoula, ou rosa delicada, e fina,
    Te cobre as faces, que são cor de neve.
    Os teus cabelos são uns fios d'ouro;
    Teu lindo corpo bálsamos vapora.
    Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,
    Para glória de Amor igual tesouro.
    Graças, Marília bela,
    Graças à minha Estrela!

    Leve-me a sementeira muito embora
    O rio sobre os campos levantado:
    Acabe, acabe a peste matadora,
    Sem deixar uma rês, o nédio gado.
    Já destes bens, Marília, não preciso:
    Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
    Para viver feliz, Marília, basta
    Que os olhos movas, e me dês um riso.
    Graças, Marília bela,
    Graças à minha Estrela!

    Irás a divertir-te na floresta,
    Sustentada, Marília, no meu braço;
    Ali descansarei a quente sesta,
    Dormindo um leve sono em teu regaço:
    Enquanto a luta jogam os Pastores,
    E emparelhados correm nas campinas,
    Toucarei teus cabelos de boninas,
    Nos troncos gravarei os teus louvores.
    Graças, Marília bela,
    Graças à minha Estrela!

    Depois de nos ferir a mão da morte,
    Ou seja neste monte, ou noutra serra,
    Nossos corpos terão, terão a sorte
    De consumir os dois a mesma terra.
    Na campa, rodeada de ciprestes,
    Lerão estas palavras os Pastores:
    "Quem quiser ser feliz nos seus amores,
    Siga os exemplos, que nos deram estes."
    Graças, Marília bela,
    Graças à minha Estrela.

    Lira II

    Pintam, Marília, os Poetas
    A um menino vendado,
    Com uma aljava de setas,
    Arco empunhado na mão;
    Ligeiras asas nos ombros,
    O tenro corpo despido,
    E de Amor, ou de Cupido
    São os nomes, que lhe dão.

    Porém eu, Marília, nego,
    Que assim seja Amor; pois ele
    Nem é moço, nem é cego,
    Nem setas, nem asas tem.
    Ora pois, eu vou formar-lhe
    Um retrato mais perfeito,
    Que ele já feriu meu peito;
    Por isso o conheço bem.

    Os seus compridos cabelos,
    Que sobre as costas ondeiam,
    São que os de Apolo mais belos;
    Mas de loura cor não são.
    Têm a cor da negra noite;
    E com o branco do rosto
    Fazem, Marília, um composto
    Da mais formosa união.

    Tem redonda, e lisa testa,
    Arqueadas sobrancelhas;
    A voz meiga, a vista honesta,
    E seus olhos são uns sóis.
    Aqui vence Amor ao Céu,
    Que no dia luminoso
    O Céu tem um Sol formoso,
    E o travesso Amor tem dois.

    Na sua face mimosa,
    Marília, estão misturadas
    Purpúreas folhas de rosa,
    Brancas folhas de jasmim.
    Dos rubins mais preciosos
    Os seus beiços são formados;
    Os seus dentes delicados
    São pedaços de marfim.

    Mal vi seu rosto perfeito
    Dei logo um suspiro, e ele
    Conheceu haver-me feito
    Estrago no coração.
    Punha em mim os olhos, quando
    Entendia eu não olhava:
    Vendo o que via, baixava
    A modesta vista ao chão.

    Chamei-lhe um dia formoso:
    Ele, ouvindo os seus louvores,
    Com um gesto desdenhoso
    Se sorriu, e não falou.
    Pintei-lhe outra vez o estado,
    Em que estava esta alma posta;
    Não me deu também resposta,
    Constrangeu-se, e suspirou.

    Conheço os sinais, e logo
    Animado de esperança,
    Busco dar um desafogo
    Ao cansado coração.
    Pego em teus dedos nevados,
    E querendo dar-lhe um beijo,
    Cobriu-se todo de pejo,
    E fugiu-me com a mão.

    Tu, Marília, agora vendo
    De Amor o lindo retrato,
    Contigo estarás dizendo,
    Que é este o retrato teu.
    Sim, Marília, a cópia é tua,
    Que Cupido é Deus suposto:
    Se há Cupido, é só teu rosto,
    Que ele foi quem me venceu.

    Lira III

    De amar, minha Marília, a formosura
    Não se podem livrar humanos peitos.
    Adoram os heróis; e os mesmos brutos
    Aos grilhões de Cupido estão sujeitos.
    Quem, Marília, despreza uma beleza,
    A luz da razão precisa;
    E se tem discurso, pisa
    A lei, que lhe ditou a Natureza.

    Cupido entrou no Céu. O grande Jove
    Uma vez se mudou em chuva de ouro;
    Outras vezes tomou as várias formas
    De General de Tebas, velha, e touro.
    O próprio Deus da Guerra desumano
    Não viveu de amor ileso;
    Quis a Vênus, e foi preso
    Na rede, que lhe armou o Deus Vulcano.

    Mas sendo amor igual para os viventes,
    Tem mais desculpa, ou menos esta chama:
    Amar formosos rostos acredita,
    Amar os feios de algum modo infama.
    Que lê que Jove amou, não lê nem topa,
    Que ele amou vulgar donzela:
    Lê que amou a Dânae bela,
    Encontra que roubou a linda Europa.

    Se amar uma beleza se desculpa
    Em quem ao próprio Céu, e terra move:
    Qual é a minha glória, pois igualo,
    Ou excedo no amor ao mesmo Jove?
    Amou o Pai dos Deuses Soberano
    Um semblante peregrino:
    Eu adoro o teu divino,
    O teu divino rosto, e sou humano.

    Lira IV

    Marília, teus olhos
    São réus, e culpados,
    Que sofra, e que beije
    Os ferros pesados
    De injusto Senhor.
    Marília, escuta
    Um triste Pastor.

    Mal vi o teu rosto,
    O sangue gelou-se,
    A língua prendeu-se,
    Tremi, e mudou-se
    Das faces a cor.
    Marília, escuta
    Um triste Pastor.

    A vista furtiva,
    O riso imperfeito,
    Fizeram a chaga,
    Que abriste no peito,
    Mais funda, e maior.
    Marília, escuta
    Um triste Pastor.

    Dispus-me a servir-te;
    Levava o teu gado
    À fonte mais clara,
    À vargem, e prado
    De relva melhor.
    Marília, escuta
    Um triste Pastor.

    Se vinha da herdade,
    Trazia dos ninhos
    As aves nascidas,
    Abrindo os biquinhos
    De fome ou temor.
    Marília, escuta
    Um triste Pastor.

    Se alguém te louvava,
    De gosto me enchia;
    Mas sempre o ciúme
    No rosto acendia
    Um vivo calor.
    Marília, escuta
    Um triste Pastor.

    Se estavas alegre,
    Dirceu se alegrava;
    Se estavas sentida,
    Dirceu suspirava
    À força da dor.
    Marília, escuta
    Um triste Pastor.

    Falando com Laura,
    Marília dizia;
    Sorria-se aquela,
    E eu conhecia
    O erro de amor.
    Marília, escuta
    Um triste Pastor.

    Movida, Marília,
    De tanta ternura,
    Nos braços me deste
    Da tua fé pura
    Um doce penhor.
    Marília, escuta
    Um triste Pastor.

    Tu mesma disseste
    Que tudo podia
    Mudar de figura;
    Mas nunca seria
    Teu peito traidor.
    Marília, escuta
    Um triste Pastor.

    Tu já te mudaste;
    E a faia frondosa,
    Aonde escreveste
    A jura horrorosa,
    Tem todo o vigor.
    Marília, escuta
    Um triste Pastor.

    Mas eu te desculpo,
    Que o fado tirano
    Te obriga a deixar-me;
    Pois basta o meu dano
    Da sorte, que for.
    Marília, escuta
    Um triste Pastor.

    Lira V

    Acaso são estes
    Os sítios formosos.
    Aonde passava
    Os anos gostosos?
    São estes os prados,
    Aonde brincava,
    Enquanto passava
    O gordo rebanho,
    Que Alceu me deixou?
    São estes os sítios?
    São estes; mas eu
    O mesmo não sou.
    Marília, tu chamas?
    Espera, que eu vou. 

    Daquele penhasco
    Um rio caía;
    Ao som do sussurro
    Que vezes dormia!
    Agora não cobrem
    Espumas nevadas
    As pedras quebradas;
    Parece que o rio
    O curso voltou
    São estes os sítios?
    São estes; mas eu
    O mesmo não sou.
    Marília, tu chamas?
    Espera, que eu vou.
    Meus versos alegre
    Aqui repetia:
    O eco as palavras
    Três vezes dizia,
    Se chamo por ele,
    Já não me responde;
    Parece se esconde,
    Casado de dar-me
    Os ais, que lhe dou.
    São estes os sítios?
    São estes; mas eu
    O mesmo não sou.
    Marília, tu chamas?
    Espera, que eu vou.

    Aqui um regato
    Corria sereno
    Por margens cobertas
    De flores, e feno:
    À esquerda se erguia
    Um bosque fechado,
    E o tempo apressado,
    Que nada respeita,
    Já tudo mudou.
    São estes os sítios?
    São estes; mas eu
    O mesmo não sou.
    Marília, tu chamas?
    Espera, que eu vou.

    Mas como discorro?
    Acaso podia
    Já tudo mudar-se
    No espaço de um dia?
    Existem as fontes,
    E os freixos copados;
    Dão flores os prados,
    E corre a cascata,
    Que nunca secou.
    São estes os sítios?
    São estes; mas eu
    O mesmo não sou.
    Marília, tu chamas?
    Espera, que eu vou.

    Minha alma, que tinha
    Liberta a vontade,
    Agora já sente
    Amor, e saudade,
    Os sítios formosos me agradaram,
    Ah! Não se mudaram;
    Mudaram-se os olhos,
    De triste que estou.
    São estes os sítios?
    São estes; mas eu
    O mesmo não sou.
    Marília, tu chamas?
    Espera, que eu vou.

    Lira VI

    Oh! Quanto pode em nós a vária Estrela!
    Que diversos que são os gênios nossos!
    Qual solta a branca vela,
    E afronta sobre o pinho os mares grossos;
    Qual cinge com a malha o peito duro,
    E marchando na frente das coortes,
    Faz a torre voar, cair o muro.

    O sórdido avarento em vão defende
    Que possa o filho entrar no seu tesouro;
    Aqui fechado estende
    Sobre a tábua, que verga, as barras d'ouro.
    Sacode o jogador do copo os dados;
    E numa noite só, que ao sono rouba,
    Perde o resto dos bens, do pai herdados.

    O que da voraz gula o vício adora,
    Da lauta mesa os seus prazeres fia.
    E o terno Alceste chora
    Ao som dos versos, a que o gênio o guia.
    O sábio Galileu toma o compasso,
    E sem voar ao Céu, calcula, e mede
    Das Estrelas, e Sol o imenso espaço.

    Enquanto pois, Marília, a vária gente
    Se deixa conduzir do próprio gosto,
    Passo as horas contente
    Notando as graças do teu lindo rosto.
    Sem cansar-me a saber se o Sol se move;
    Ou se a terra volteia, assim conheço
    Aonde chega o poder do grande Jove.

    Noto, gentil Marília, os teus cabelos.
    E noto as faces de jasmins, e rosas:
    Noto os teus olhos belos,
    Os brancos dentes, e as feições mimosas:
    Quem faz uma obra tão perfeita, e linda,
    Minha bela Marília, também pode
    Fazer os Céus, e mais, se há mais ainda.

    Lira VII

    Vou retratar a Marília,
    A Marília, meus amores;
    Porém como? Se eu não vejo
    Quem me empreste as finas cores:
    Dar-mas a terra não pode;
    Não, que a sua cor mimosa
    Vence o lírio, vence a rosa,
    O jasmim, e as outras flores.
    Ah! Socorre, Amor, socorre
    Ao mais grato empenho meu!
    Voa sobre os Astros, voa,
    Traze-me as tintas do Céu.

    Mas não se esmoreça logo;
    Busquemos um pouco mais;
    Nos mares talvez se encontrem
    Cores, que sejam iguais.
    Porém não, que em paralelo
    Da minha Ninfa adorada
    Pérolas não valem nada,
    E nada valem corais.
    Ah! Socorre, Amor, socorre
    Ao mais grato empenho meu!
    Voa sobre os Astros, voa,
    Traze-me as tintas do Céu.

    Só no Céu achar-se podem
    Tais belezas, como aquelas,
    Que Marília tem nos olhos,
    E que tem nas faces belas.
    Mas às faces graciosas,
    Aos negros olhos, que matam,
    Não imitam, não retratam
    Nem Auroras, nem Estrelas.
    Ah! Socorre, Amor, socorre
    Ao mais grato empenho meu!
    Voa sobre os Astros, voa,
    Traze-me as tintas do Céu.

    Entremos, Amor, entremos,
    Entremos na mesma Esfera,
    Venha Palas, venha Juno,
    Venha a Deusa de Citera,
    Porém não, que se Marília
    No certame antigo entrasse,
    Bem que a Páris não peitasse,
    A todas as três vencera.
    Vai-te, Amor, em vão socorres
    Ao mais grato empenho meu:
    Para formar-lhe o retrato
    Não bastam tintas do Céu

    Lira VIII

    Marília, de que te queixas?
    De que te roubou Dirceu
    O sincero coração?
    Não te deu também o seu?
    E tu, Marília, primeiro
    Não lhe lançaste o grilhão?
    Todos amam: só Marília
    Desta Lei da Natureza
    Queria ter isenção?

    Em torno das castas pombas,
    Não rulam ternos pombinhos?
    E rulam, Marília, em vão?
    Não se afagam c'os biquinhos?
    E a prova de mais ternura
    Não os arrasta a paixão?
    Todos amam: só Marília
    Desta Lei da Natureza
    Queria ter isenção?

    Já viste, minha Marília,
    Avezinhas, que não façam
    Os seus ninhos no verão?
    Aquelas, com que se enlaçam,
    Não vão cantar-lhes defronte
    Do mole pouso, em que estão?
    Todos amam: só Marília
    Desta Lei da Natureza
    Queria ter isenção?

    Se os peixes, Marília, geram
    Nos bravos mares, e rios,
    Tudo efeitos de Amor são.
    Amam os brutos impios,
    A serpente venenosa,
    A onça, o tigre, o leão.
    Todos amam: só Marília
    Desta Lei da Natureza
    Queria ter isenção?

    As grandes Deusas do Céu
    Sentem a seta tirana
    Da amorosa inclinação.
    Diana, com ser Diana,
    Não se abrasa, não suspira
    Pelo amor de Endimião?
    Todos amam: só Marília
    Desta Lei da Natureza
    Queria ter isenção?

    Desiste, Marília bela,
    De uma queixa sustentada
    Só na altiva opinião.
    Esta chama é inspirada
    Pelo Céu; pois nela assenta
    A nossa conservação.
    Todos amam: só Marília
    Desta Lei da Natureza
    Não deve ter isenção.

    Lira IX

    Eu sou, gentil Marília, eu sou cativo;
    Porém não me venceu a mão armada
    De ferro, e de furor:
    Uma alma sobre todas elevada
    Não cede a outra força, que não seja
    A tenra mão de amor.

    Arrastem pois os outros muito embora
    Cadeias nas bigornas trabalhadas
    Com pesados martelos:
    Eu tenho as minhas mão ao carro atadas
    Com duros ferros não, com fios d'ouro,
    Que são os teus cabelos.

    Oculto nos teus meigos vivos olhos
    Cupido a tudo faz tirana guerra:
    Sacode a seta ardente;
    E sendo despedida cá da terra,
    As nuvens rompe, chega ao alto Empíreo:
    E chega ainda quente.

    As abelhas nas asas suspendidas
    Tiram, Marília, os sucos saborosos
    Das orvalhadas flores:
    Pendentes dos teus beijos graciosos
    O mel não chupam, chupam ambrosias
    Nunca fartos Amores.

    O Vento quando parte em largas fitas
    As folhas, que meneia com brandura;
    A fonte cristalina,
    Que sobre as pedras cai de imensa altura,
    Não forma um som tão doce, como forma
    A tua voz divina.

    Em torno dos teus peitos, que palpitam,
    Exaltam mil suspiros desvelados
    Enxames de desejos;
    Se encontram os teus olhos descuidados,
    Por mais que se atropelem, voam, chegam;
    E dão furtivos beijos.

    O Cisne, quando corta o manso largo,
    Erguendo as brancas asas, e o pescoço;
    A Nau, que ao longe passa,
    Quando o vento lhe infuna o pano grosso,
    O teu garbo não tem, minha Marília,
    Não tem a tua graça.

    Estima pois os mais a liberdade;
    Eu prezo o cativeiro: sim, nem chamo
    À mão de amor impia:
    Honro a virtude, e os teus dotes amo:
    Também o grande Aquiles veste a saia,
    Também Alcides fia.

    Lira X 

    Se existe um peito,
    Que isento viva
    Da chama ativa,
    Que acende Amor;
    Ah! Não habite
    Neste montado,
    Fuja apressado
    Do vil traidor.

    Corra, que o impio
    Aqui se esconde,
    Não sei aonde;
    Mas sei que o vi.
    Traz novas setas,
    Arco robusto;
    Tremi de susto,
    Em vão fugi.

    Eu vou mostrar-vos,
    Tristes mortais,
    Quantos sinais
    O impio tem.
    Oh! Como pé justo
    Que todo o humano
    Um tal tirano
    Conheça bem!

    No corpo ainda
    Menino existe;
    Mas quem resiste
    Ao braço seu?
    Ao negro Inferno
    Levou a guerra;
    Venceu a terra,
    Venceu o Céu.

    Jamais se cobrem
    Seus membros belos;
    E os seus cabelos
    Que lindos são!
    Vendados olhos,
    Que tudo alcançam,
    E jamais lançam
    A seta em vão.

    As suas faces
    São cor de neve;
    E a boca breve
    Só risos tem.
    Mas, ah! respira
    Negros venenos,
    Que nem ao menos,
    Os olhos vêem.

    Aljava grande
    Dependurada,
    Sempre atacada
    De bons farpões.
    Fere com estas
    Agudas lanças
    Pombinhas mansas,
    Bravos leões.

    Se a seta falta,
    Tem outra pronta,
    Que a dura ponta
    Jamais torceu.
    Ninguém resiste
    Aos golpes dela:
    Marília bela
    Foi quem lha deu.

    Ah! Não sustente
    Dura peleja
    O que deseja
    Ser vencedor.
    Fuja, e não olhe,
    Que só fugindo
    De um rosto lindo
    Se vence Amor.

    Lira XI

    Não toques, minha Musa, não, não toques
    Na sonorosa Lira,
    Que às almas, como a minha, namoradas
    Doces canções inspira:
    Assopra no clarim, que apenas soa,
    Enche de assombro a terra!
    Naquele, a cujo som cantou Homero,
    Cantou Virgílio a Guerra.

    Busquemos, ó Musa,
    Empresa maior;
    Deixemos as ternas
    Fadigas do Amor.

    Eu já não vejo as graças, de que forma
    Cupido o seu tesouro;
    Vivos olhos, e faces cor-de-rosa,
    Com crespos fios de ouro:
    Meus olhos só vêem graças, e loureiros;
    Vêem carvalhos, e palmas;
    Vêem os ramos honrosos, que distinguem
    As vencedoras almas.

    Busquemos, ó Musa,
    Empresa maior;
    Deixemos as ternas
    Fadigas do Amor.

    Cantemos o herói, que já no berço
    As serpes despedaça;
    Que fere os Cacos, que destrona as hidras;
    Mais os leões, que abraça.
    Cantemos, se isto é pouco, a dura guerra
    Dos Titães, e Tifeus,
    Que arrancam as montanhas, e atrevidos
    Levam armas aos Céus.

    Busquemos, ó Musa,
    Empresa maior;
    Deixemos as ternas
    Fadigas do Amor.

    Anima pois, ó Musa, o instrumento,
    Que a voz também levanto,
    Porém tu deste muito acima o ponto,
    Dirceu não sobe tanto:
    Abaixa, minha Musa, o tom, qu'ergueste;
    Eu já, eu já te sigo.
    Mas, ah! vou a dizer Herói, e Guerra,
    E só MARÍLIA digo.

    Deixemos, ó Musa,
    Empresa maior;
    Só posso seguir-te
    Cantando de Amor.

    Feres as cordas d'ouro? Ah! Sim, agora
    Meu canto já se afina:
    E a humana voz parece que ao som delas
    Se faz também divina.
    O mesmo, que cercou de muro a Tebas,
    Não canta assim tão terno;
    Nem pode competir comigo aquele,
    Que desceu ao negro Inferno.

    Deixemos, ó Musa,
    Empresa maior;
    Só posso seguir-te
    Cantando de Amor.

    Mal repito MARÍLIA, as doces aves
    Mostram sinais de espanto;
    Erguem os colos, voltam as cabeças,
    Param o ledo canto:
    Move-se o tronco, o vento se suspende;
    Pasma o gado, e não come:
    Quanto podem meus versos! Quanto pode
    Só de Marília o nome!

    Deixemos, ó Musa,
    Empresa maior;
    Só posso seguir-te
    Cantando de Amor.

    Lira XII

    Topei um dia
    Ao Deus vendado,
    Que descuidado
    Não tinha as setas
    Na impia mão.
    Mal o conheço,
    Me sobe logo
    Ao rosto o fogo,
    Que a raiva acende
    No coração.

    "Morre, tirano;
    Morre, inimigo."
    Mal isto digo,
    Raivoso o aperto
    Nos braços meus.
    Tanto que o moço
    Sente apertar-se,
    Para salvar-se
    Também me aperta
    Nos braços seus.

    O leve corpo
    Ao ar levanto;
    Ah! e com quanto
    Impulso o trago
    Do ar ao chão!
    Pôde suster-se
    A vez primeira;
    Mas à terceira
    Nos pés, que alarga,
    Se firma em vão.

    Mal o derrubo,
    Ferro aguçado
    No já cansado
    Peito, que arqueja,
    Mil golpes deu.
    Suou seu rosto;
    Tremeu gemendo;
    E a cor perdendo,
    Bateu as asas;
    Enfim morreu.

    Qual bravo Alcides,
    Que a hirsuta pele
    Vestiu daquele
    Grenhoso bruto,
    A quem matou;
    Para que prove
    A empresa honrada,
    Co'a mão manchada
    Recolho as setas,
    Que me deixou.

    Ouviu Marília
    Que Amor gritava;
    E como estava
    Vizinha ao sítio
    Valer-lhe vem.
    Mas quando chega
    Espavorida,
    Nem já de vida
    O fero monstro
    Indício tem.

    Então, Marília,
    Que o vê de perto
    De pó coberto,
    E todo envolto
    No sangue seu,
    As mãos aperta
    No peito brando,
    E aflita dando
    Um ai, os olhos
    Levanta ao Céu.

    Chega-se a ele
    Compadecida;
    Lava a ferida
    C'o prato amargo,
    Que derramou.
    Então o monstro
    Dando um suspiro,
    Fazendo um giro
    Co'a baça vista,
    Ressuscitou.

    Respira a Deusa;
    E vem o gosto
    Fazer no rosto
    O mesmo efeito,
    Que fez a dor.
    Que louca idéia
    Foi, a que tive!
    Enquanto vive
    Marília bela,
    Não morre Amor.

    Lira XIII

    Oh! quantos riscos,
    Marília bela,
    Não atropela
    Quem cego arrasta
    Grilhões de Amor!
    Um peito forte,
    De acordo falto,
    Zomba do assalto
    Do vil traidor.

    O amante de Hero
    Da luz guiado,
    C'o peito ousado
    Na escura noite
    Rompia o mar.
    Se o Helesponto
    Se encapelava,
    Ah! não deixava
    De lhe ir falar.

    Do Cantor Trácio
    A herocidade
    Esta verdade,
    Minha Marília,
    Prova também.
    Cheio de esforço
    Vai ao Cocito
    Buscar aflito,
    Seu doce bem.

    Que ação tão grande
    Nunca intentada!
    Ao pé da entrada
    Já tudo assusta
    O coração:
    Pendentes rochas,
    Campos adustos,
    Nem ervas dão.

    Na funda fralda
    De calvo monte,
    Corre Aqueronte,
    Rio de ardente,
    Mortal licor.
    Tem o barqueiro
    Testa enrugada,
    Vista inflamada,
    Que mete horror.

    Que seguranças!
    Que fechaduras!
    As portas duras
    Não são de lenhos;
    De ferro são.
    Por três gargantas,
    Quando alguém bate,
    Raivoso late
    O negro cão.

    Dentro da cova
    Soam lamentos;
    Não mostra aos olhos
    A escassa luz!
    Minos a pena
    Manda se intime
    Igual ao crime,
    Que ali conduz.

    Grande penedo
    Este carrega;
    E apenas chega
    Do monte ao cume,
    O faz rolar.
    A pedra sempre
    Ao vele desce,
    Sem que ele cesse
    De a ir buscar.

    Nas limpas águas
    Habita aquele:
    Por cima dele
    Verdejam ramos,
    Que pomos dão.
    Debalde a boca
    Molhar pretende.
    Debalde estende
    Faminta mão.

    Tem outro o peito
    Despedaçado:
    Monstro esfaimado
    Jamais descansa
    De lho roer.
    A roxa carne,
    Que o abutre come,
    Não se consome,
    Torna a crescer.

    Mas bem que tudo
    Pavor inspira,
    Tocando a lira
    Desce ao Averno
    O bom Cantor.
    Não se entorpece
    A língua, e braço;
    Não treme o passo,
    Não perde a cor.

    Ah! também quanto
    Dirceu obrara,
    Se precisara
    Marília bela
    De esforço seu!
    Rompera os mares
    C'o peito terno,
    Fora ao Inferno,
    Subira ao Céu.

    Aos dois amantes
    De Trácia, e Abido
    Não deu Cupido
    Do que aos mais todos
    Maior valor.
    Por seus vassalos
    Forças reparte,
    Como lhes parte
    Os graus de Amor.

    Lira XIV

    Minha bela Marília, tudo passa;
    A sorte deste mundo é mal segura;
    Se vem depois dos males a ventura,
    Vem depois dos prazeres a desgraça.
    Estão os mesmos Deuses
    Sujeitos ao poder impio Fado:
    Apolo já fugiu do Céu brilhante,
    Já foi Pastor de gado.

    A devorante mão da negra Morte
    Acaba de roubar o bem, que temos;
    Até na triste campa não podemos
    Zombar do braço da inconstante sorte.
    Qual fica no sepulcro,
    Que seus avós ergueram, descansado;
    Qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos
    Ferro do torto arado.

    Ah! enquanto os Destinos impiedosos
    Não voltam contra nós a face irada,
    Façamos, sim façamos, doce amada,
    Os nossos breves dias mais ditosos.
    Um coração, que frouxo
    A grata posse de seu bem difere,
    A si, Marília, a si próprio rouba,
    E a si próprio fere.

    Ornemos nossas testas com as flores.
    E façamos de feno um brando leito,
    Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
    Gozemos do prazer de sãos Amores.
    Sobre as nossas cabeças,
    Sem que o possam deter, o tempo corre;
    E para nós o tempo, que se passa,
    Também, Marília, morre.

    Com os anos, Marília, o gosto falta,
    E se entorpece o corpo já cansado;
    triste o velho cordeiro está deitado,
    e o leve filho sempre alegre salta.
    A mesma formosura
    É dote, que só goza a mocidade:
    Rugam-se as faces, o cabelo alveja,
    Mal chega a longa idade.

    Que havemos de esperar, Marília bela?
    Que vão passando os florescentes dias?
    As glórias, que vêm tarde, já vêm frias;
    E pode enfim mudar-se a nossa estrela.
    Ah! Não, minha Marília,
    Aproveite-se o tempo, antes que faça
    O estrago de roubar ao corpo as forças
    E ao semblante a graça.

    Lira XV

    A minha bela Marília
    Tem de seu um bom tesouro;
    Não é, doce Alceu, formado
    Do buscado
    Metal louro.
    É feito de uns alvos dentes,
    É feito de uns olhos belos,
    De umas faces graciosas,
    De crespos, finos cabelos;
    E de outras graças maiores,
    Que a natureza lhe deu:
    Bens, que valem sobre a terra
    E que têm valor no Céu.

    Eu posso romper os montes,
    Dar às correntes espaçosos
    Nos caudosos
    Turvos rios.
    Posso emendar a ventura
    Ganhando astuto a riqueza;
    Mas, ah! caro Alceu, quem pode
    Ganhar uma só beleza
    Das belezas, que Marília
    No seu tesouro meteu?
    Bens, que valem sobre a terra,
    E que têm valor no Céu.

    Da sorte que vive o rico
    Entre o fausto alegremente,
    Vive o guardador do gado
    Apoucado,
    Mas contente.
    Beije pois torpe avarento
    As arcas de barras cheias:
    Eu não beijo os vis tesouros,
    Beijo as douradas cadeias,
    Beijo as setas, beijo as armas
    Com que o cego Amor venceu:
    Bens, que valem sobre a terra,
    E que têm valor no Céu.

    Ama Apolo, e o fero Marte;
    Ama, Alceu, o mesmo Jove:
    Não é, não, a vã riqueza,
    Sim beleza,
    Quem os move.
    Posto ao lado de Marília
    Mais que mortal me contemplo:
    Deixo os bens, que aos homens cegam,
    Sigo dos Deuses o exemplo:
    Amo virtudes, e dotes;
    Amo enfim, prezado Alceu,
    Bens, que valem sobre a terra,
    E que têm valor no Céu.

    Lira XVI

    Eu, Glauceste, não duvido
    Ser a tua Eulina amada
    Pastora formosa,
    Pastora engraçada,
    Vejo a sua cor-de-rosa,
    Vejo o seu olhar divino,
    Vejo os seus purpúreos beiços,
    Vejo o peito cristalino;
    Nem há coisa, que assemelhe
    Ao crespo cabelo louro.
    Ah! que a tua Eulina vale,
    Vale um imenso tesouro!

    Ela vence muito, e muito
    À laranjeira copada,
    Estando de flores,
    E de frutos ornada.
    É, Glauceste, os teus Amores;
    E nem por outra Pastora,
    Que menos dotes tivera,
    Ou que menos bela fora,
    O meu Glauceste cansara
    As divinas cordas de ouro.
    Ah! que a tua Eulina vale,
    Vale um imenso tesouro!

    Sim, Eulina é uma Deusa;
    Mas anima a formosura
    De uma alma de fera;
    Ou inda mais dura.
    Ah! quando Dirceu pondera
    Que o seu Glauceste suspira,
    Perde, perde o sofrimento,
    E qual enfermo delira!
    Tenha embora brancas faces,
    Meigos olhos, fios de ouro,
    A tua Eulina não vale,
    Não vale imenso tesouro.

    O fuzil, que imita a cobra,
    Também aos olhos é belo:
    Mas quando alumeia,
    Tu tremes de vê-lo.
    Que importa se mostra cheia
    De mil belezas a ingrata?
    Não se julga formosura
    A formosura, que mata.
    Evita, Glauceste, evita
    O teu estrago, e desdouro;
    A tua Eulina não vale,
    Não vale imenso tesouro.

    A minha Marília quanto
    À natureza não deve!
    Tem divino rosto,
    E tem mãos de neve.
    Se mostro na face o gosto,
    Ri-se Marília contente;
    Se canto, canta comigo,
    E apenas triste me sente,
    Limpa os olhos com as tranças
    De fino cabelo louro.
    A minha Marília vale,
    Vale um imenso tesouro.

    Lira XVII

    Minha Marília,
    Tu enfadada?
    Que mão ousada
    Perturbar pode
    A paz sagrada
    Do peito teu?
    Porém que muito
    Que irado esteja
    O teu semblante!
    Também troveja
    O claro Céu.

    Eu sei, Marília,
    Que outra Pastora
    A toda hora,
    Em toda a parte
    Cega namora
    Ao teu Pastor.
    Há sempre fumo
    Aonde há fogo:
    Assim, Marília,
    Há zelos, logo
    Que existe amor.

    Olha, Marília,
    Na fonte pura
    A tua alvura,
    A tua boca,
    E a compostura
    Das mais feições.
    Quem tem teu rosto
    Ah! não receia
    Que terno amante
    Solte a cadeia,
    Quebre os grilhões.

    Não anda Laura
    Nestas campinas
    Sem as boninas
    No seu cabelo,
    Sem peles finas
    No seu jubão.
    Porém que importa?
    O rico asseio
    Não dá, Marília,
    Ao rosto feio
    A perfeição.

    Quando apareces
    Na madrugada,
    Mal embrulhada
    Na larga roupa,
    E desgrenhada
    Sem fita, ou flor;
    Ah! que então brilha
    A natureza!
    Estão se mostra
    Tua beleza
    Inda maior.

    O Céu formoso,
    Quando alumia
    O Sol de dia,
    Ou estrelado
    Noa noite fria,
    Parece bem.
    Também tem graça
    Quando amanhece;
    Até, Marília,
    Quando anoitece
    Também a tem.

    Que tens, Marília,
    Que ela suspire!
    Que ela delire!
    Que corra os vales!
    Que os montes gire
    Louca de amor!
    Ela é que sente
    Esta desdita,
    E na repulsa
    Mais se acredita
    O teu Pastor.

    Quando há, Marília,
    Alguma festa
    Lá na floresta,
    (Fala a verdade)
    dança com esta
    o bom Dirceu?
    E se ela o busca,
    Vendo buscar-se
    Não se levanta,
    Não vai sentar-se
    Ao lado teu?

    Quando um por outro
    Na rua passa,
    Se ela diz graça,
    Ou muda o gesto,
    Esta negaça
    Faz-lhe impressão?
    Se está fronteira,
    E brandamente
    Lhe fita os olhos,
    Não põe prudente
    Os seus no chão?
    Deixa o ciúme,
    Que te desvela:
    Marília bela,
    Nunca receies
    Dano daquela
    Que igual não for.
    Que mais desejas?
    Tens lindo aspecto;
    Dirceu se alenta
    De puro afeto,
    E pundonor.

    Lira XVIII

    Não vês aquele velho respeitável
    Que à muleta encostado
    Apenas mal se move, e mal se arrasta?
    Oh! quanto estrago não lhe fez o tempo!
    O tempo arrebatado,
    Que o mesmo bronze gasta.

    Enrugaram-se as faces, e perderam
    Seus olhos a viveza;
    Voltou-se o seu cabelo em branca neve:
    Já lhe treme a cabeça, a mão, o queixo,
    Não tem uma beleza
    Das belezas, que teve.

    Assim também serei, minha Marília,
    Daqui a poucos anos;
    Que o impio tempo para todos corre.
    Os dentes cairão, e os meus cabelos,
    Ah! sentirei os danos,
    Que evita só quem morre.

    Mas sempre passarei uma velhice
    Muito menos penosa.
    Não trarei a muleta carregada:
    Descansarei o já vergado corpo
    Na tua mão piedosa,
    Na tua mão nevada.

    Nas frias tardes, em que negra nuvem
    Os chuveiros não lance,
    Irei contigo ao prado florescente:
    Aqui me buscarás um sítio ameno;
    Onde os membros descanse,
    E o brando sol me aquente.

    Apenas me sentar, então movendo
    Os olhos por aquela
    Vistosa parte, que ficar fronteira;
    Apontando direi: "Ali falamos,
    "Ali, ó minha bela,
    "Te vi a vez primeira."

    Verterão os meus olhos duas fontes,
    Nascidas de alegria:
    Farão teus olhos ternos outro tanto:
    Então darei, Marília, frios beijos
    Na mão formosa, e pia,
    Que me limpar o pranto.

    Assim irá, Marília, docemente
    Meu corpo suportando
    Do tempo desumano a dura guerra.
    Contente morrerei, por ser Marília
    Quem sentida chorando
    Meus braços olhos cerra.

    Lira XIX

    Enquanto pasta alegre o manso gado,
    Minha bela Marília, nos sentemos
    À sombra deste cedro levantado.
    Um pouco meditemos
    Na regular beleza,
    Que em tudo quanto vive, nos descobre
    A sábia natureza.

    Atende, como aquela vaca preta
    O novilhinho seu dos mais separa,
    E o lambe, enquanto chupa a lisa teta.
    Atende mais, ó cara,
    Como a ruiva cadela
    Suporta que lhe morda o filho o corpo,
    E salte em cima dela.

    Repara, como cheia de ternura
    Entre as asas ao filho essa ave aquenta,
    Como aquela esgravata a terra dura,
    E os seus assim sustenta;
    Como se encoleriza,
    E salta sem receio a todo o vulto,
    Que junto deles pisa.

    Que gosto não terá a esposa amante,
    Quando der ao filhinho o peito brando,
    E refletir então no seu semblante!
    Quando, Marília, quando
    Disser consigo: "É esta
    "De teu querido pai a mesma barba,
    "A mesma boca, e testa."

    Que gosto não terá a mãe, que toca,
    Quando o tem nos seus braços, c'o dedinho
    Nas faces graciosas, e na boca
    Do inocente filhinho!
    Quando, Marília bela,
    O tenro infante já com risos mudos
    Começa a conhecê-la!

    Que prazer não terão os pais ao verem
    Com as mães um dos filhos abraçados;
    Jogar outros luta, outros correrem
    Nos cordeiros montados!
    Que estado de ventura!
    Que até naquilo, que de peso serve,
    Inspira Amor, doçura.

    Lira XX

    Era uma frondosa
    Roseira se abria
    Um lindo botão.
    Marília formosa
    O pé lhe torcia
    Com a branca mão.

    Nas folhas viçosas
    A abelha enraivada
    O corpo escondeu.
    Tocou-lhe Marília,
    Na mão descuidada
    A fera mordeu.

    Apenas lhe morde,
    Marília gritando,
    C'o dedo fugiu.
    Amor, que no bosque
    Estava brincando,
    Aos ais acudiu.

    Mal viu a rotura,
    E o sangue espargido,
    Que a Deusa mostrou;
    Risonho beijando
    O dedo ofendido,
    Assim lhe falou:

    "Se tu por não tão pouco
    "O pranto desatas,
    "Ah! dá-me atenção;
    "E como daquele,
    "Que feres, e matas,
    "Não tens compaixão?"

    Lira XXI

    Não sei, Marília, que tenho,
    Depois que vi o teu rosto;
    Pois quanto não é Marília,
    Já não posso ver com gosto.
    Noutra idade me alegrava,
    Até quando conversava
    Com o mais rude vaqueiro:
    Hoje, ó Bela, me aborrece
    Inda o trato lisonjeiro
    Do mais discreto pastor
    Que efeitos são os que sinto?
    Serão efeitos de Amor?

    Saio da minha cabana
    Sem reparar no que faço:
    Busco o sítio aonde moras,
    Suspendo defronte o passo.
    Fito os olhos na janela,
    Aonde, Marília bela,
    Tu chegas ao fim do dia;
    Se alguém passa, e te saúda,
    Bem que seja cortesia,
    Se acende na face a cor.
    Que efeitos são os que sinto?
    Serão os efeitos de Amor?

    Se estou, Marília, contigo,
    Não tenho um leve cuidado;
    Nem me lembra se são horas
    De levar à fonte o gado.
    Se vivo de ti distante,
    Ao minuto, ao breve instante
    Finge um dia o meu desgosto:
    Jamais, Pastora, te vejo
    Que em seu semblante composto
    Não veja graça maior.
    Que efeitos são os que sinto?
    Serão os efeitos de Amor?

    Ando já com o juízo,
    Marília, tão perturbado,
    Que no mesmo aberto sulco
    Meto de novo o arado.
    Aqui no centeio pego,
    Noutra parte em vão o sego:
    Se alguém comigo conversa,
    Ou não respondo, ou respondo
    Noutra coisa tão diversa,
    Que nexo não tem menor.
    Que efeitos são os que sinto?
    Serão os efeitos de Amor?

    Se geme o bufo agoureiro,
    Só Marília me desvela,
    Enche-se o peito de mágoa,
    E não sei a causa dela.
    Mal durmo, Marília, sonho
    Que fero leão medonho
    Te devora nos meus braços:
    Gela-se o sangue nas veias,
    E solto do sono os laços
    À força da imensa dor.
    Ah! que os efeitos, que sinto,
    Só são efeitos de Amor.

    Lira XXII

    Muito embora, Marília, muito embora
    Outra beleza, que não seja a tua,
    Com avermelha roda, a seis puxada,
    Faça tremer a rua.

    As paredes da sala, aonde habita,
    Adorne a seda, e o tremó dourado;
    Pendam largas cortinas, penda o lustre
    Do teto apainelado.

    Tu não habitarás palácios grande,
    Nem andarás no coches voadores;
    Porém terás um Vate, que te preze,
    Que cante os teus louvores.

    O tempo não respeita a formosura;
    E da pálida morte a mão tirana
    Arrasa os edifícios dos Augustos,
    E arrasa a vil choupana.

    Que belezas, Marília, floresceram,
    De quem nem sequer temos a memória!
    Só podem conservar um nome eterno
    Os versos, ou a história.

    Se não houvesse Tasso, nem Petrarca,
    Por mais que qualquer delas fosse linda,
    Já não sabia o mundo, se existiram
    Nem Laura, nem Clorinda.

    É melhor, minha Bela, ser lembrada
    Por quantos hão de vir sábios humanos,
    Que ter urcos, ter coches, e tesouros,
    Que morrem com os anos.

    Lira XXIII

    Num sítio ameno
    Cheio de rosas,
    De brancos lírios,
    Murtas viçosas;

    Dos seus amores
    Na companhia
    Dirceu passava
    Alegre o dia.

    Em tom de graça
    Ao terno amante
    Manda Marília
    Que toque, e cante.

    Pega na lira,
    Sem que a tempere,
    A voz levanta,
    E as cordas fere.

    C'os doces pontos
    A mão atina,
    E a voz iguala
    À voz divina.

    Ela, que teve
    De rir-se a idéia,
    Nem move os olhos
    De assombro cheia:

    Então cupido
    Aparecendo,
    À Bela fala
    Assim dizendo:

    "Do teu amado
    "A lira fias,
    "Só porque dele
    "Zombando rias?

    "Quando num peito
    "Assento faço,
    "Do peito subo
    "À língua, e braço.

    "Nem creias que outro
    "Estilo tome,
    "Sendo eu o mestre,
    "A ação teu nome."

    Lira XXIV

    Encheu, minha Marília, o grande Jove
    De imensos animais de toda a espécie
    As terras, mais os ares,
    O grande espaço dos salobros, rios,
    Dos negros, fundos mares,
    Para sua defesa,
    A todos deu as armas, que convinha
    A sábia natureza.

    Deu as asas aos pássaros ligeiros,
    Deu ao peixe escamoso as barbatanas;
    Deu veneno à serpente,
    Ao membrudo elefante a enorme tromba,
    E ao javali o dente.
    Coube ao leão a garra;
    Com leve pé saltando o cervo foge;
    E o bravo touro marra.

    Ao homem deu as armas do discurso,
    Que valem muito mais que as outras armas;
    Deu-lhe dedos ligeiros,
    Que podem converter em seu serviço
    Os ferros, e os madeiros;
    Que tecem fortes laços,
    E forjam raios, com que aos brutos cortam
    Os vôos, mais os passos.

    Às tímidas donzelas pertenceram
    Outras armas, que têm dobrada força,
    Deu-lhes a Natureza
    Além do entendimento, além dos braços
    As armas da beleza.
    Só ela ao Céu se atreve;
    Só ela mudar pode o gelo em fogo,
    Mudar o fogo em neve.

    Eu vejo, eu vejo ser a formosura,
    Quem arrancou da mão de Coriolano
    A cortadora espada.
    Vejo que foi de Helena o lindo rosto,
    Quem pôs em campo armada
    Toda a força da Grécia.
    E quem tirou o cetro aos reis de Roma?
    Só foi, só foi Lucrécia.

    Se podem lindos rostos, mal suspiram,
    O braço desarmar do mesmo Aquiles;
    Se estes rostos irados
    Podem soprar o fogo da discórdia
    Em povos aliados;
    És árbitra da terra:
    Tu podes dar, Marília, a todo o mundo
    A paz, e a dura guerra.

    Lira XXV

    O cego Cupido um dia
    Com os seus Gênios falava
    Do modo, que lhe restava
    De cativar a Dirceu.
    Depois de larga disputa,
    Um dos Gênios mais sagazes
    Este conselho lhe deu:

    As setas mais aguçadas,
    Como se em rocha batessem,
    Dão no peito seu, e descem
    Todas quebradas ao chão.
    Só as graças de Marília
    Podem vencer um tão duro,
    Tão isento coração.

    A fortuna desta empresa
    Consiste em armar-se o laço,
    Sem que sinta ser o braço,
    Que lho prepara, de Amor:
    Que ele vive como as aves,
    Que já deixaram as penas
    No visco do caçador.

    Na força deste conselho
    O raivoso Deus sossega,
    E à tropa a honra entrega
    De o fazer executar.
    Todos pretendem ganhá-la;
    Batem as asas ligeiros,
    E vão as armas buscar.

    Os primeiros se ocultaram
    Da Deusa nos olhos belos:
    Qual se enlaçou nos cabelos,
    Qual às faces se prendeu.
    Um amorinho cansado
    Caiu dos lábios ao seio,
    E nos peitos se escondeu.

    Outro Gênio mais astuto
    Este novo ardil alcança,
    Muda-se numa criança
    De divino parecer.
    Esconde as asas, e a venda;
    Esconde as setas, e quanto
    Pode dá-lo a conhecer.

    Ela que vê um menino
    Todo de graças coberto,
    Tão risonho, e tão esperto
    Ali sozinho brincar,
    A ele endireita os passos;
    Finge Amor ter medo, e a Deusa
    Mais que empenha em lhe pegar.

    Ela corria chamando;
    Ele fugia, e chorava:
    Assim foram onde estava
    O descuidado Pastor.
    Este, mal viu a beleza,
    E o gentil menino, entende
    A malícia do traidor.

    Põe as mãos sobre os ouvidos,
    Cerra os olhos, e constante
    Não quer ver o seu semblante,
    Não o quer ouvir falar.
    Qual Ulisses noutra idade
    Para iludir as Sereias
    Mandou tambores tocar.

    Cupido, que a empresa via,
    Julga o intento frustrado,
    E de raiva transportado
    O corpo na chão lançou.
    Traçou a língua nos dentes;
    Meteu as unhas no rosto,
    E os cabelos arrancou.

    O Gênio, que se escondia
    Entre os peitos da Pastora,
    Ergueu a cabeça fora,
    E o sucesso conheceu.
    Deixa o sossego em que estava,
    E vai ligeiro meter-se
    No peito do bom Dirceu.

    Apenas do brando peito
    Lhe tocou a neve fria,
    Com o calor, que trazia,
    Lhe abrasou o coração.
    Dá o Pastor um suspiro,
    Abre os seus olhos, e solta
    Do apertado ouvido a mão.

    Logo que viram os Gênios
    Ao triste Pastor disposto
    Para ver o lindo rosto,
    Para as palavras ouvir,
    Cada um as armas toma,
    Cada um com elas busca
    Seu terno peito ferir.

    Com os cabelos da Deusa
    Lhe forma um Cupido laços,
    Que lhe seguram os braços,
    Como se fossem grilhões.
    O Pastor já não resiste;
    Antes beija satisfeito
    As suas doces prisões.

    Lira XXVI

    O destro Cupido um dia
    Extraiu mimosas cores
    De frescos lírios, e rosas,
    De jasmins, e de outras flores.

    Com as mais delgadas penas
    Usa de uma, e de outra tinta,
    E nos ângulos do cobre
    A quatro belezas pinta.

    Por fazer pensar a todos
    No seu liso centro escreve
    Um letreiro, que pergunta:
    "Este espaço a quem se deve?"

    Vênus, que viu a pintura,
    E leu a letra engenhosa,
    Pôs por baixo "Eu dele cedo;
    "Dê-se a Marília formosa."

    Lira XXVII

    Alexandre, Marília, qual o rio,
    Que engrossando no inverno tudo arrasa,
    Na frente das coortes
    Cerca, vence, abrasa
    As cidades mais fortes.
    Foi na glória das armas o primeiro;
    Morreu na flor dos anos, e já tinha
    Vencido o mundo inteiro.

    Mas este bom soldado, cujo nome
    Não há poder algum, que não abata,
    Foi, Marília, somente
    Um ditoso pirata,
    Um salteador valente.
    Se não tem uma fama baixa, e escura,
    Foi por se pôr ao lado da injustiça
    A insolente ventura.

    O grande César, cujo nome voa,
    À sua mesma Pátria a fé quebranta;
    Na mão a espada toma,
    Oprime-lhe a garganta,
    Dá Senhores a Roma.
    Consegue ser herói por um delito;
    Se acaso não vencesse, então seria
    Um vil traidor proscrito.

    O ser herói, Marília, não consiste
    Em queimar os Impérios: move a guerra,
    Espalha o sangue humano,
    E despovoa a terra
    Também o mau tirano.
    Consiste o ser herói em viver justo:
    E tanto pode ser herói pobre,
    Como o maior Augusto.

    Eu é que sou herói, Marília bela,
    Segundo da virtude a honrosa estrada:
    Ganhei, ganhei um trono,
    Ah! não manchei a espada,
    Não roubei ao dono.
    Ergui-o no teu peito, e nos teus braços:
    E valem muito mais que o mundo inteiro
    Uns tão ditosos laços.

    Aos bárbaros, injustos vencedores
    Atormentam remorsos, e cuidados;
    Nem descansam seguros
    Nos palácios cercados
    De tropa, e de altos muros.
    E a quantos nos não mostra a sábia história
    A quem mudou o Fado em negro opróbrio
    A mal ganhada glória.

    Eu vivo, minha Bela, sim, eu vivo
    Nos braços do descanso, e mais do gosto:
    Quando estou acordado
    Contemplo no teu rosto
    De graças adornado:
    Se durmo, logo sonho, e ali te vejo.
    Ah! nem desperto, nem dormindo sobe
    A mais o meu desejo.

    Lira XXVIII

    Cupido tirando
    Dos ombros a aljava
    Num campo de flores
    Contente brincava.

    E o corpo tenrinho
    Depois, enfadado,
    Incauto reclina
    Na relva do prado.

    Marília formosa,
    Que ao Deus conhecia,
    Oculta espreitava
    Quanto ele fazia.

    Mal julga que dorme
    Se chega contente,
    As armas lhe furta,
    E o Deus a não sente.

    Os Faunos, mal viram
    As armas roubadas,
    Saíram das grutas
    Soltando risadas.

    Acorda Cupido,
    E a causa sabendo,
    A quantos o insultam
    Responde, dizendo:

    "Temíeis as setas
    "Nas minhas mãos cruas!
    "Vereis o que podem
    "Agora nas suas."

    Lira XXIX

    O tirano Amor risonho
    Me aparece e me convida
    Para que seu jugo aceite;
    E quer que eu passe em deleite
    O resto da triste vida.

    "O sonoro Anacreonte
    (Astuto o moço dizia)
    "Já perto da morte estava,
    "Inda de amores cantava;
    "Por isso alegre vivia.

    "Aos negros, duros pesares
    "Não resiste um peito fraco
    "Se o amor o não fortalece:
    "O mesmo Jove carece
    "De Cupido, e mais de Baco."

    Eu lhe respondo: "Perjuro,
    "Nada creio do que dizes;
    "Porque já te fui sujeito,
    "Inda conservo no peito
    "Estas frescas cicatrizes.

    "Se o mundo conhece males,
    "Tu os maiores fizeste,
    "Sim, tu a Tróia queimaste,
    "Tu a Cartago abrasaste,
    "E tu a Antônio perdeste."

    Amor, vendo que da oferta
    Algum apreço não faço,
    Me diz afoito que trate
    De ir com ele a combate
    Peito a peito, braço a braço.

    Vou buscar as minhas armas;
    Cinjo primeiro que tudo
    O brilhante arnês, e à pressa
    Ponho um elmo na cabeça,
    Tomo a lança, e o grosso escudo.

    Mal no campo me apresento,
    Marília (oh Céus!) me aparece:
    Logo que os olhos me fita,
    O meu coração palpita,
    A minha mão desfalece.

    Então me diz o tirano:
    "Confessa, louco, o teu erro;
    "Contra as armas da beleza
    "Não vale a externa defesa
    "Dessa armadura de ferro."

    Lira XXX

    Junto a uma clara fonte
    A mãe de Amor s assentou,
    Encostou na mão o rosto,
    No leve sono pegou.

    Cupido, que a viu de longe,
    Contente ao lugar correu;
    Cuidando que era Marília
    Na face um beijo lhe deu.

    Acorda Vênus irada:
    Amor a conhece; e então
    Da ousadia, que teve,
    Assim lhe pede o perdão:

    "Foi fácil, ó Mãe formosa,
    "Foi fácil o engano meu;
    "Que o semblante de Marília
    "É todo o semblante teu."

    Lira XXXI

    Minha Marília,
    Se tens beleza,
    Da Natureza
    É um favor.
    Mas se aos vindouros
    Teu nome passa,
    É só por graça
    Do Deus de amor,
    Que tanto inflama
    A mente, o peito
    Do teu Pastor.

    Em vão se viram
    Perlas mimosas,
    Jasmins, e rosas
    No rosto teu.
    Em vão terias
    Essas estrelas,
    E as tranças belas,
    Que o Céu te deu;
    Se em doce versos
    Não as cantasse
    O bom Dirceu.

    O voraz tempo
    Ligeiro corre:
    Com ele morre
    A perfeição.
    Essa, que o Egito
    Sábia modera,
    De Marco impera
    No coração;
    Mas já Otávio
    Não sente a força
    Do seu grilhão.

    Ah! vem, ó Bela,
    E o teu querido,
    Ao Deus Cupido
    Louvores dar;
    Pois faz que todos
    Com igual sorte
    Do tempo, e morte
    Possam zombar:
    Tu por formosa,
    E ele, Marília,
    Por te cantar.

    Mas ai! Marília,
    Que de um amante,
    Por mais que cante,
    Glória não vem!
    Amor se pinta
    Menino, e cego:
    No doce emprego
    Do caro bem
    Não vê defeitos,
    E aumenta quantas
    Belezas tem.

    Nenhum dos Vates,
    Em teu conceito,
    Nutriu no peito
    Néscia paixão?
    Todas aquelas,
    Que vês cantadas,
    Foram dotadas
    De perfeição?
    Foram queridas;
    Porém formosas
    Talvez que não.

    Porém que importa
    Não valha nada
    Seres cantada
    Do teu Dirceu?
    Tu tens, Marília,
    Cantor celeste;
    O meu Glauceste
    A voz ergueu;
    Irá teu nome
    Aos fins da terra,
    E ao mesmo Céu.

    Quando nas asas
    Do leve vento
    Ao firmamento
    Teu nome for:
    Mostrando Jove
    Graça extremosa,
    Mudando a Esposa
    De inveja a cor;
    De todos há de,
    Voltando o rosto,
    Sorrir-se Amor.

    Ah! não se manche
    Teu brando peito
    Do vil defeito
    Da ingratidão:
    Os versos beija,
    Gentil Pastora,
    A pena adora,
    Respeita a mão,
    A mão discreta,
    Que te segura
    A duração.

    Lira XXXII

    Num noite sossegado
    Velhos papéis revolvia,
    E por ver de que tratavam
    Um por um a todos lia.

    Eram cópias emendadas,
    De quantos versos melhores
    Eu compus na tenra idade
    A meus diversos amores.

    Aqui leio justas queixas
    Contra a ventura formadas,
    Leio excessos mal aceitos,
    Doces promessas quebradas.

    Vendo sem-razões tamanhas
    Eu exclamo transportado:
    "Que finezas tão mal-feitas!
    "Que tempo tão mal passado!"

    Junto pois num grande monte
    Os soltos papéis, e logo,
    Porque relíquias não fiquem,
    Os intento pôr no fogo.

    Então vejo que o Deus cego
    Com semblante carregado
    Assim me fala, e crimina
    O meu intento acertado:

    "Queres queimar esses versos?
    "Dize, Pastor atrevido,
    "Essas Liras não te foram
    "Inspiradas por Cupido?

    "Achas que de tais amores
    "Não deve existir memória?
    "Sepultando esses triunfos,
    "Não roubas a minha glória?"

    Disse Amor; e mal se cala,
    Nos seus ombros a mão pondo,
    Com um semblante sereno
    Assim à queixa respondo:

    "Depois, Amor, de me dares
    "A minha Marília bela,
    "Devo guardar umas liras,
    "Que não são em honra dela?

    "E que importa, Amor, que importa,
    "Que a estes papéis destrua;
    "Se é tua esta mão, que os rasga,
    "Se a chama, que os queima, é tua?"

    Apenas Amor me escuta
    Manda que os lance nas brasas;
    E ergue a chama c'o vento,
    Que formou batendo as asas.

    Lira XXXIII

    Pega na lira sonora,
    Pega, meu caro Glauceste;
    E ferindo as cordas de ouro,
    Mostra aos rústicos Pastores
    A formosura celeste
    De Marília, meus amores.
    Ah! pinta, pinta
    A minha Bela!
    E em nada a cópia
    Se afaste dela.

    Que concurso, meu Glauceste,
    Que concurso tão ditoso!
    Tu és digno de cantares
    O seu semblante divino;
    E o teu canto sonoroso
    Também do seu rosto é digno.
    Ah! pinta, pinta
    A minha Bela!
    E em nada a cópia
    Se afaste dela.

    Para pintares ao vivo
    As suas faces mimosas,
    A discreta natureza
    Que providência não teve!
    Criou no jardim as rosas,
    Fez o lírio, e fez a neve.
    Ah! pinta, pinta
    A minha Bela!
    E em nada a cópia
    Se afaste dela.

    A pintar as negras tranças
    Peço que mais te desveles,
    Pinta chusmas de amorinhos
    Pelos seus fios trepando;
    Uns tecendo cordas deles,
    Outros com eles brincando.
    Ah! pinta, pinta
    A minha Bela!
    E em nada a cópia
    Se afaste dela.

    Para pintares, Glauceste,
    Os seus beiços graciosos,
    Entre as flores tens o cravo,
    Entre as pedras a granada,
    E para os olhos formosos,
    A estrela da madrugada.
    Ah! pinta, pinta
    A minha Bela!
    E em nada a cópia
    Se afaste dela.

    Mal retratares do rosto
    Quanto julgares preciso,
    Não dês a cópia por feita;
    Passa o outros dotes, passa,
    Pinta da vista, e do riso
    A modéstia, mais a graça.
    Ah! pinta, pinta
    A minha Bela!
    E em nada a cópia
    Se afaste dela.

    Os seus pés, quando passeiam,
    Pisando ternos amores;
    E as mesmas plantas calcadas
    Brotando viçosas flores.
    Ah! pinta, pinta
    A minha Bela!
    E em nada a cópia
    Se afaste dela.

    Pinta mais, prezado amigo,
    Um terno amante beijando
    Suas douradas cadeias;
    E em doce pranto desfeito,
    Ao monte, que temo no peito.
    Ah! pinta, pinta
    A minha Bela!
    E em nada a cópia
    Se afaste dela.

    Nem suspendas o teu canto,
    Inda que, Pastor, se veja
    Que a minha boca suspira,
    Que se banha em pranto o rosto;
    Que os outros choram de inveja,
    E chora Dirceu de gosto.
    Ah! pinta, pinta
    A minha Bela!
    E em nada a cópia
    Se afaste dela.

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